Há alguns anos, dei
uma palestra sobre Virginia Woolf. No momento das perguntas, o assunto
que pareceu despertar mais interesse entre o público era se Woolf não
deveria ter tido filhos. Atenciosa, respondi que ela, ao que consta,
pensou em ter filhos no começo do casamento, depois de ver a alegria da
irmã, Vanessa Bell, com os seus. Mas, com o tempo, ela passou a
considerar a maternidade uma ideia imprudente, talvez devido a sua
instabilidade psíquica. Ou talvez, sugeri, Woolf quisesse ser escritora e
dedicar sua vida à arte, o que fez com extraordinário sucesso. Durante a
apresentação, eu havia citado de maneira positiva passagens sobre a
necessidade de matar “o Anjo do Lar”, a voz interior que instrui muitas
mulheres a se sacrificar como servas da vida doméstica e do ego
masculino. Fiquei surpresa que o conselho de asfixiar o espírito da
feminilidade convencional suscitasse essa conversa.
O que eu devia ter dito àquela plateia era que especular sobre o
status reprodutor de Woolf constituía um desvio absurdo e enfadonho das
magníficas questões presentes em sua obra. (Creio que a certa altura
falei “Foda-se essa merda”, passando o sentido geral da coisa e
encerrando o assunto.) Afinal, filhos muita gente faz, mas Ao Farol e As Ondas só uma pessoa fez, e era por causa disso que estávamos debatendo Woolf.
Perguntas daquele tipo me eram bem familiares. Dez anos antes,
durante uma conversa que deveria girar em torno de um livro meu sobre
política, um entrevistador britânico insistiu que, em vez de falar sobre
os frutos da minha mente, deveríamos falar sobre os frutos do meu
ventre – ou a falta deles. Ele me perguntava obstinadamente por que eu
não tinha filhos. E não se dava por satisfeito com nada que eu dissesse.
Parecia defender que eu deveria ter filhos, que era incompreensível
que eu não tivesse, e assim tínhamos que ficar falando sobre os filhos
que eu não fiz, em vez de falar sobre os livros que eu havia feito.
Quando saí dali, minha assessora de imprensa escocesa – uma moça
miúda, de 20 e poucos anos, com sapatilhas cor-de-rosa e um belo anel
de noivado – estava espumando de raiva. E esbravejou: “Ele nunca
perguntaria isso a um homem.” Tinha razão. (Hoje em dia, uso esse
argumento para rebater alguns entrevistadores: “Você perguntaria isso a
um homem?”) Perguntas como essa parecem nascer da ideia de que não
existem mulheres – esses 49% da espécie humana com necessidades tão variadas e desejos tão misteriosos quanto os outros 51% –, mas apenas a mulher,
aquela que deve casar, ter filhos, permitir que os homens entrem e os
bebês saiam, como um elevador da humanidade. Essas questões, na
essência, não são perguntas e sim declarações que afirmam que nós, com a
veleidade de nos imaginarmos como indivíduos, definindo nosso próprio
curso, estamos erradas. O cérebro é um fenômeno individual que gera as
mais variadas criações; o útero gera apenas um tipo de criação.
Quanto a mim, não tenho filhos por diversas razões: lido muito bem
com os anticoncepcionais; a despeito de gostar de crianças e adorar ser
tia, também aprecio a solidão; fui criada por gente bruta e infeliz e
não quis reproduzir essa forma de criação nem criar seres humanos que
pudessem sentir por mim aquilo que às vezes eu sentia por meus pais; o
planeta não tem condições de sustentar mais gente do Primeiro Mundo, e o
futuro é muito incerto; e eu realmente queria escrever livros,
vocação que, tal como a exerço, exige muito. Não sou dogmática contra
ter filhos. Poderia ter tido em outras circunstâncias e estaria bem –
como estou agora.
Há pessoas que, embora queiram ter filhos, não os têm por várias
razões – pessoais, médicas, emocionais, financeiras, profissionais;
outras não querem, e ninguém tem nada a ver com isso. Só porque é uma
pergunta passível de resposta não significa que a pessoa tenha obrigação
de respondêla ou que ela deva ser feita. A pergunta que o
entrevistador me fez foi indecente, pois pressupunha que as mulheres
deveriam ter filhos e que as atividades reprodutoras de uma mulher eram
um assunto naturalmente público. Sobretudo, a pergunta pressupunha
que, para as mulheres, só existia uma maneira certa de viver.
Mas mesmo dizer que só existe uma maneira certa de viver pode ser uma
formulação demasiado otimista, visto que as mães também são
sistematicamente consideradas relapsas. A mãe pode ser tratada como
criminosa se deixar o filho sozinho por cinco minutos, mesmo que o pai
da criança a tenha deixado sozinha por vários anos. Algumas mulheres
me disseram que, depois de terem tido filhos, passaram a ser tratadas
como seres apáticos desprovidos de inteligência, que não merecem
consideração. Muitas tiveram de ouvir que não podem ser levadas a sério
como profissionais porque em algum momento vão engravidar. E muitas
mães que de fato se saem bem no exercício da profissão são suspeitas de
estar negligenciando alguém. Não existe uma resposta satisfatória para a
pergunta “Como é ser mulher”; o truque talvez esteja em saber repelir o
questionamento.
Falamos sobre questões abertas, mas
também há as fechadas, aquelas para as quais só há uma resposta certa,
pelo menos no que concerne a quem pergunta. São indagações que nos
forçam a concordar com elas ou que nos ferem quando delas divergimos;
que trazem suas próprias respostas e cujo objetivo é coagir e punir.
Uma das minhas metas na vida é me tornar bem rabínica, conseguir
responder perguntas fechadas com perguntas abertas, ter autoridade
interna para frear a aproximação de intrusos e pelo menos me lembrar de
questionar: “Por que você está perguntando isso?” Descobri que essa é
sempre uma boa resposta para uma questão antipática, e as perguntas
fechadas costumam ser antipáticas. Mas, no dia do meu interrogatório
sobre filhos, fui tomada de surpresa (e estava com um sério jet lag) e só fiquei pensando: Por que é tão previsível que façam essas perguntas tão infames?
Talvez parte do problema seja termos aprendido a questionar as
coisas erradas sobre nós mesmos. Nossa cultura está impregnada de uma
espécie de psicologia pop que pergunta obsessivamente: Você é feliz? E
perguntamos isso num reflexo tão condicionado que parece a coisa mais
natural do mundo querer que um farmacêutico numa máquina do tempo vá
entregar um lote de tranquilizantes e antipsicóticos em Bloomsbury, o
bastante para a vida toda, pois assim seria possível reorientar uma
incomparável estilista literária feminista para a produção de uma
ninhada de bebês Woolf.
As perguntas sobre a felicidade geralmente pressupõem que sabemos
como deve ser uma vida feliz. Muitas vezes se descreve a felicidade como
o resultado de uma longa fieira de coisas – casamento, prole, bens
próprios, experiências eróticas –, embora baste um milionésimo de
segundo para nos lembrarmos de um monte de gente que tem tudo isso e
mesmo assim é infeliz.
Recebemos fórmulas padronizadas a torto e a direito, mas essas
fórmulas costumam falhar. Apesar disso, elas não param de chegar. E
chegam, e chegam. Convertem-se em prisões e castigos; a prisão
imaginária acorrenta muita gente na prisão de uma vida que segue as
receitas à risca, e mesmo assim é tremendamente infeliz.
Talvez o problema seja literário: recebemos um roteiro único sobre o
que é ter uma boa vida, ainda que não sejam poucos aqueles que sigam o
script fielmente e mesmo assim têm uma vida ruim. Falamos como se
existisse um único enredo bom e um único final feliz, embora as
inúmeras formas que uma vida pode assumir floresçam – e murchem – ao
nosso redor.
Mesmo os que vivem a melhor versão do roteiro familiar nem sempre
têm a felicidade como recompensa. Não é algo necessariamente ruim.
Conheço uma mulher que viveu um casamento de muito amor por setenta
anos. Sua vida é cheia de sentido, e ela vive de acordo com seus
princípios; é amada e respeitada pelos seus descendentes. Mas eu não
diria que ela é feliz; sua compaixão pelos vulneráveis e a preocupação
com o futuro lhe dão uma visão sombria do mundo. Para descrever o que
ela experimenta, em vez de felicidade, precisamos de uma linguagem
melhor. Existem critérios totalmente diferentes para uma boa vida, que
podem ser mais importantes para alguns – amar e ser amado, ter
satisfação, honra, sentido, profundidade, engajamento, esperança.
Parte de meu empenho como escritora
tem sido encontrar formas de valorizar o que é impalpável e subestimado,
em descrever sombras e matizes de significado, em celebrar a vida
pública e a vida solitária, em encontrar – na expressão de John Berger –
“outra maneira de contar”, o que também explica por que é tão
desalentador esse repisar constante das mesmas velhas maneiras de
contar.
A conservadora “defesa do casamento”, que na verdade não passa de
uma defesa do velho esquema hierárquico que era o casamento
convencional antes que as feministas começassem a transformá-lo,
infelizmente não é monopólio dos conservadores. Muita gente em nossa
sociedade se aferra à piedosa crença de que, para os filhos, a família
heteronormativa apresenta uma aura mágica maravilhosa, o que leva muitos
casais a se manter em casamentos infelizes, destrutivos para todos os
que estão por perto. Conheço gente que hesitou por muito tempo antes
de sair de um casamento pavoroso, porque a velha fórmula insiste que
uma situação que é terrível para um ou para os dois genitores será, de
alguma maneira, benéfica para os filhos. Mesmo mulheres com maridos
violentamente abusivos são, com frequência, pressionadas a continuar em
situações tidas como tão maravilhosas que tais detalhes nem vêm ao
caso. A forma prevalece sobre o conteúdo. No entanto, tenho visto a
alegria do divórcio e as inúmeras formas que podem ser assumidas por
famílias felizes, cada vez mais variadas, desde um genitor só e um
filho só até incontáveis configurações de múltiplos lares e famílias
ampliadas.
Depois que escrevi um livro sobre mim e minha mãe, que se casou com
um profissional liberal muito bruto, teve quatro filhos e vivia nervosa
de raiva e infelicidade, uma entrevistadora me emboscou ao perguntar se
era por causa do meu pai violento que eu não conseguira encontrar um
companheiro. A pergunta vinha carregada de pressupostos espantosos
sobre o que eu queria fazer com minha vida e o direito da entrevistadora
de nela se intrometer. O livro The Faraway Nearby [O Próximo Distante]
discorria de maneira serena e indireta, eu pensava, sobre minha longa
jornada rumo a uma vida de fato agradável, e era uma tentativa de dar
conta da fúria da minha mãe, inclusive falando de sua origem estar no
fato de ela ter ficado presa a expectativas e papéis femininos
convencionais.
Tenho feito da minha vida o que decidi fazer, e não era isso que
minha mãe ou a entrevistadora imaginavam. Decidi escrever livros, estar
cercada por gente inteligente e generosa e ter grandes aventuras.
Algumas dessas aventuras incluem homens – casos passageiros, grandes
paixões e relações duradouras – e incluem também desertos distantes,
mares árticos, cumes de montanhas, levantes e desastres, exploração de
ideias, arquivos, registros e vidas.
As receitas da sociedade para a
realização pessoal parecem gerar grande infelicidade, tanto nas pessoas
que são estigmatizadas porque não podem ou não querem adotálas como
naquelas que as adotam, mas não encontram a felicidade. Claro que
existem pessoas com vidas bem convencionais que são muito felizes.
Conheço algumas, assim como conheço muitos monges, padres e freiras no
celibato e sem filhos, gays divorciados e todo o leque de entremeio.
No verão passado, minha amiga Emma entrou na igreja acompanhada do pai, e
o marido dele foi logo atrás acompanhando a mãe de Emma; os quatro,
mais o novo marido dela, formam uma família excepcionalmente amorosa e
unida, que luta pela justiça em suas atividades políticas. Neste verão,
nos dois casamentos a que fui havia dois noivos e nenhuma noiva; no
primeiro deles, um dos noivos chorou porque passara a maior parte da
vida privado do direito de casar e nunca pensou que veria seu próprio
casamento.
Apesar disso, as mesmas e velhas perguntas continuam rondando –
ainda que pareçam mais uma espécie de sistema coercitivo do que
questões de fato. Na visão de mundo tradicional, a felicidade é algo
essencialmente parti cular e egoísta. As pessoas sensatas buscam seu
interesse particular e, quando se saem bem, supõe-se que sejam felizes. A
própria definição do que significa ser humano é estreita, e o
altruísmo, o idealismo e a vida pública (exceto como fama, prestígio ou
sucesso material) não têm muito lugar na lista de desejos. Raramente
surge a ideia de buscar significado na vida; as atividades corriqueiras
não só são tidas como intrinsecamente significativas, mas são tratadas
como as únicas opções dotadas de significado.
Uma das razões pelas quais as pessoas se prendem à maternidade como
elemento essencial da identidade feminina é a crença de que são os
filhos que permitem consumar a capacidade de amar. Mas há tantas coisas a
amar além da prole, tantas coisas que precisam de amor, tantas outras
tarefas no mundo que cabem ao amor…
São muitas as pessoas que questionam as escolhas dos que não têm
filhos, tidos como egoístas por recusar os sacrifícios que acompanham o
papel de genitor; elas se esquecem de que, para quem ama intensamente
os filhos, talvez sobre menos amor pelo resto do mundo. Christina
Lupton, escritora que também é mãe, apresentou recentemente algumas
coisas que teve de abandonar quando estava tomada pelas exigentes
tarefas da maternidade, entre elas:
Todas as maneiras de cuidar do mundo que não são tão facilmente
validadas quanto cuidar dos filhos, mas que são, da mesma forma,
fundamentalmente necessárias para que os filhos cresçam bem. Refiro-me
aqui à escrita, à criação, à política e ao ativismo; à leitura, ao
discurso público, aos protestos, ao ensino, à realização de filmes… As
coisas que mais valorizo e das quais acredito que virá qualquer melhoria
na condição humana são, em sua maioria, brutalmente incompatíveis com o
trabalho concreto e imaginativo de cuidar dos filhos.
Uma das coisas fascinantes na súbita
aparição de Edward Snowden, alguns anos atrás, foi a incapacidade de
muita gente em entender como um rapaz podia abrir mão da receita da
felicidade – salário alto, emprego estável, casa no Havaí – para se
tornar o foragido mais procurado do planeta. Ao que parece, a premissa
dessas pessoas é que, como todos são egoístas, Snowden só poderia estar
fazendo aquilo por ser interesseiro e querer atenção ou dinheiro.
Na primeira onda de comentários, Jeffrey Toobin, o especialista jurídico daNew Yorker,
escreveu que Snowden era “um narcisista enfatuado que merece ir para a
cadeia”. Outro especialista anunciou: “Eu acho que o que temos em
Edward Snowden é apenas um jovem narcisista que pensa que é mais
inteligente do que todos nós.” Outros imaginaram que ele estava
revelando os segredos do governo americano a soldo de um país inimigo.
Snowden parecia um sujeito de outro século. Em seus contatos
iniciais com o jornalista Glenn Greenwald, ele se nomeava Cincinnatus – o
estadista romano que agia em prol da sociedade, sem procurar se
promover. Era sinal de que Snowden formara seus ideais e modelos longe
das fórmulas padronizadas de felicidade. Outras épocas e outras
culturas costumavam fazerperguntasdiferentes das que fazemos agora: O
que de mais significativo você pode fazer com sua vida? Qual é sua
contribuição para o mundo ou para sua comunidade? Você vive de acordo
com os seus princípios? Qual será seu legado? O que significa sua vida?
Talvez nossa obsessão com a felicidade seja uma maneira de não
responder a essas outras perguntas, uma maneira de ignorar a amplitude
que as nossas vidas podem ter, o resultado que o nosso trabalho pode
trazer, a abrangência que o nosso amor pode alcançar.
Há um paradoxo no cerne da questão da felicidade. Há alguns anos,
Todd Kashdan, professor de psicologia na Universidade George Mason,
divulgou estudos concluindo que as pessoas que julgam importante ser
feliz são as que têm maior probabilidade de se deprimir: “Organizar a
vida tentando ser mais feliz, fazer da felicidade o objetivo primeiro
da vida atrapalha a pessoa ser de fato feliz.”
Finalmente tive meu momento rabínico na Inglaterra. Depois de superar o jet lag,
fui entrevistada ao vivo por uma mulher com uma entonação compassiva e
elegante. “Então”, ela disse, num trinado, “você foi ferida pela
humanidade e se refugiou nas paisagens da natureza.” A conotação era
óbvia: eu, um excepcional e deplorável exemplar, estava ali em
exposição, uma estranha no ninho. Virei para o público e perguntei:
“Algum de vocês já foi ferido pela humanidade?” Riram comigo; naquele
momento, percebemos que todos tínhamos nossas esquisitices, estávamos
todos no mesmo barco, e que é para isso mesmo – para cuidar das nossas
feridas, ao mesmo tempo aprendendo a não ferir os outros – que estamos
aqui. E também pelo amor, que vem sob inúmeras formas e pode ser
dirigido a inúmeras coisas. Há muitas perguntas na vida que valem a
pena fazer, mas talvez, se formos sábios, nós possamos entender que nem
toda pergunta precisa de resposta.
–
Trecho do livro A Mãe de Todas as Perguntas, a ser lançado este mês pela Companhia das Letras.
IMAGEM: RICHARD RUSSELL
Fonte: http://piaui.folha.uol.com.br/wp-content/uploads/2017/08/131_questoescontemporaneas.jpg - Acesso 27/09/2017
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