'A colaboração entre os trabalhadores organizados em
sindicatos e o jovem precariado urbano é a única maneira de reverter a
atual tendência de declínio do sindicalismo',
ressalta Braga.
Em"A rebeldia do precariado", sociólogo analisa reações de trabalhadores precarizados no Brasil, África do Sul e Portugal
Em tempos de precarização de direitos trabalhistas, crise econômica e silêncio nas ruas,
Ruy Braga, professor da Universidade de São Paulo (USP) e especialista
em sociologia do trabalho, lança seu olhar aos trabalhadores urbanos
fragilizados do chamado Sul global.
A
partir de comparações etnográficas em Portugal, África do Sul e Brasil,
Braga constata que, apesar dos efeitos negativos, a difusão do
neoliberalismo, da mercantilização do trabalho e da terra promovem
consequentes resistências populares.
A crise da globalização neoliberal iniciada em 2008 e seus resultados nas semiperiferias é fundamentada no livro A rebeldia do precariado (Editora Boitempo), lançado neste sábado 9.
Sobre
o caso brasileiro, o cientista social argumenta que “a lógica das
políticas socioeconômicas impostas pelo governo ilegítimo de Michel
Temer só é compreensível a partir do jogo de forças necessário à
ampliação do precariado urbano, pois são orientadas pelos ataques à
proteção trabalhista e previdenciária que afastam os trabalhadores dos
direitos sociais”.
Confira a entrevista:
CartaCapital: Quem compõe o precariado do Sul global?
Ruy Braga: É
basicamente formado pelos setores das classes trabalhadoras e das
classes médias em vias de proletarização localizados em sociedades
semiperiféricas, que oscilam entre o aprofundamento da exploração econômica
e a ameaça da exclusão social e que, portanto, são mais diretamente
atingidos pelo recrudescimento da mercantilização do trabalho, das
terras urbanas e do dinheiro que acompanhou a crise da globalização após
2008.
CC: O sindicalismo é tratado com grande ênfase no livro. Como comparar o sindicalismo brasileiro atual com o sindicalismo português e sul-africano?
RB:
Nos últimos dez anos, o sindicalismo português renovou-se em diálogo
com as demandas dos jovens, das mulheres e dos trabalhadores precários,
além de liderar um histórico ciclo de greves gerais contra as políticas
de austeridade impostas pela Troika em acordo com o antigo governo de Passos Coelho.
Os sindicatos sul-africanos,
refiro-me ao Cosatu, sobretudo, sempre mantiveram seu apoio ao governo
do Congresso Nacional Africano (ANC), mesmo quando o ANC decidiu
implementar políticas privatizantes e neoliberais.
Como
resultado, tivemos a participação ativa do sindicato dos mineiros, o
NUM, no massacre de Marikana em agosto de 2012, a expulsão do sindicato
dos metalúrgicos, o NUMSA, e o aumento da tensão no sindicalismo de base
com a criação de novos sindicatos, como o dos carteiros de
Johanesburgo, por exemplo.
Eu diria que o sindicalismo brasileiro
tem oscilado de uma “posição sul-africana” de apoio a governos
genericamente neoliberais para uma “posição portuguesa” de maior
abertura aos trabalhadores precários e oposição aberta a um governo
austericida por meio, inclusive, do recurso à greve geral.
Nos
três países analisados no livro, Portugal, Brasil e África do Sul,
procurei destacar que a auto-organização política dos trabalhadores
precários, sobretudo, os mais jovens, foi um fator de dinamização do
movimento sindical tradicional.
CC: As profundas mudanças no sindicalismo são resultado da queda da consciência de classes?
RB: Sim. No mundo todo, cito estes dados no livro, as taxas de sindicalização são declinantes.
Trata-se de uma tendência ligada à globalização do capital que, nos
últimos 30 anos, revolucionou a oferta de força de trabalho ao conduzir
centenas de milhões de trabalhadores chineses e indianos para o mercado
mundial, comprimindo o valor da força de trabalho e aprofundando a competição pelo emprego entre os próprios trabalhadores em diferentes países.
Além
disso, tivemos o colapso das experiências socialistas burocráticas o
que produziu um efeito ideologicamente deletério sobre as formas
tradicionais de solidariedade classista.
CC: Como a competitividade diária nas fábricas e empresas tem impactado nas perspectivas de futuro do precariado brasileiro?
RB:
Trata-se de uma situação politicamente muito delicada, pois não podemos
esquecer que, nas últimas décadas, a sociedade brasileira aumentou os
investimentos em educação, inclusive em nível superior, formando uma
geração mais escolarizada e que agora vê suas expectativas de progresso
ocupacional por meio da aquisição de qualificações frustradas pela
precarização do trabalho.
O
mercado de trabalho brasileiro transformou-se num mecanismo de produção
de ressentimentos sociais em massa. E isso vai piorar muito quando os efeitos da reforma trabalhista começarem a surgir.
CC: Muito tem se falado a respeito da despolitização geral dos trabalhadores no Brasil. Como você avalia esse diagnóstico?
RB: Entendo que, durante os governos de Lula e Dilma,
ocorreu um processo mais ou menos generalizado de desmobilização dos
movimentos sociais, em especial, do movimento sindical no país.
Tratou-se
da generalização de uma forma de fazer política que colocou mais ênfase
nas negociações com o governo federal, os políticos, os empresários,
etc, do que na organização das bases dos sindicatos.
Em
suma, apostou-se numa solução burocrática dos conflitos sociais e não
na auto-organização dos trabalhadores. E isso produz certa despolitização. Por muito tempo, tendeu-se a pensar, mais ou menos assim: “O governo é nosso e vai nos favorecer”.
CC: Como
o marxismo do [geógrafo David] Harvey utilizado em seu livro pode nos
auxiliar na análise da reforma trabalhista e da terceirização
instituídas por Temer e pelo Congresso?
RB: O golpe trabalhista imposto ao país pelo governo ilegítimo de Michel Temer é um exemplo clássico daquilo que David Harvey,
nas trilhas teóricas de Rosa Luxemburgo, chamou apropriadamente de
“acumulação por espoliação”. Ou seja, tendo em vista a crise econômica,
governos e empresas buscam restaurar a acumulação capitalista
por meio da mercantilização de direitos sociais. Quando você desmonta a
proteção trabalhista você comprime o valor da força de trabalho,
barateando os custos das empresas, inclusive aqueles custos rescisórios
assegurados pela CLT.
Vale
observar que o conceito de acumulação por espoliação não se restringe à
proteção do trabalho, abarcando a mercantilização das terras, da
natureza e do dinheiro. Taxas de juros exorbitantes que sequestram a
renda dos trabalhadores e a entrega de áreas de proteção ambiental para a
exploração da indústria de mineração também são bons exemplos de
acumulação por espoliação.
CC: A precarização do trabalho e a exclusão social possuem fatores originários na era Lula?
CC: A precarização do trabalho e a exclusão social possuem fatores originários na era Lula?
RB:
Do ponto de vista do mercado de trabalho, a era Lula foi marcada por
uma “combinação esdrúxula”, para lembrarmos uma expressão de Chico de
Oliveira, entre formalização e precarização.
CC: Por que?
RB: Como
os motores da acumulação nacional deslocaram-se da indústria de
transformação para a indústria pesada, construção civil, mineração,
serviços e setor financeiro, o país experimentou uma etapa de
multiplicação de empregos que pagam até 1,5 salário mínimo.
Além
disso, por serem semi-qualificados, estes empregos passam por ciclos de
intensificação do trabalho e de degradação das condições de produção
bastante conhecidos pela literatura especializada que produzem um
aumento da rotatividade, uma compressão salarial e, portanto, um
aprofundamento da precarização.
Talvez a melhor maneira de ilustrar esta situação seja lembrar que durante os governos petistas,
o emprego terceirizado no país saltou de 2,3 milhões, em 2002, para
12,7 milhões, em 2014. A maior parte desses empregos é formal, porém,
ainda assim, paga muito mal e é marcadamente precário.
CC: O que as greves de 2016 e de 2017 revelaram no Brasil?
RB:
O balanço das greves de 2016 no país revelou que a classe trabalhadora
continua muito ativa em termos grevistas, o número total de greves
medido pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos
Socioeconômicos (DIEESE) é ligeiramente superior ao de 2013, porém, o
perfil destas greves é agudamente defensivo, geralmente associado à
revisão de demissões e à perda de direitos trabalhistas. Ou seja, o
montante ainda é notável, mas são greves mais ligadas às perdas e não
aos avanços da organização dos trabalhadores.
A grande novidade é que em 2017 tivemos uma greve geral nacional claramente
política muito bem sucedida e que paralisou 30 milhões de
trabalhadores, o que demonstra que este instrumento pode ser ainda muito
útil na interpelação dos governos e na defesa dos direitos sociais.
RB:
O primeiro grande desafio consiste em aproximar organizacionalmente os
trabalhadores precários dos trabalhadores sindicalizados. Para tanto, é
necessário um impulso no sentido da desburocratização dos sindicatos e,
consequentemente, de uma aproximação das lideranças do movimento
sindical de suas bases, em especial, dos setores mais explorados e
espoliados.
Em
segundo lugar, é necessário que este novo sindicalismo supere suas
dificuldades estratégicas e consiga articular-se internacionalmente, em
um movimento coerente capaz de promover campanhas internacionais de
solidariedade capazes de pressionar diferentes empresas e governos em
nome dos interesses mais gerais dos trabalhadores.
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Reportagem por Beatriz Drague Ramos
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publicado
09/09/2017
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