Roberto Arriada Lorea*
No tempo das
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707), não se cogitava
de liberdade para escolher ser ou não ser religioso. No seu Livro
Primeiro, título II, dita-se "como são obrigados os pais, mestres, amos e
senhores, a ensinar, ou fazer ensinar, a doutrina cristã, aos filhos,
discípulos, criados e escravos", enquanto seu Livro Quinto, título I,
reza "que se denunciem ao Santo Ofício os hereges e os suspeitos de
heresia ou judaís- mo". Forjou-se, assim, a maioria católica no Brasil,
naturalizando-se o tratamento desigual àqueles que pensam diferente de
"nós".
A memória de um Brasil confessional e intolerante deve
ser preservada, para que as novas gerações sejam capazes de compreender
que os valores democráticos, que garantem o respeito à crença do outro,
são conquistas da laicidade e não da religião. O Estado laico não
discrimina por motivos religiosos, não afirma ou nega a existência de
Deus, tampouco estabelece hierarquia entre milhares de crenças
professadas no Brasil, relegando essa questão à liberdade de cons-
ciência de cada cidadão. A laicidade, portanto, fomenta a diversidade
religiosa inerente a uma sociedade justa, livre e solidária.
Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a ONU pauta o tema da
liberdade religiosa. Em 1981, aprovou a Declaração sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Fundadas na Religião
ou Convicção. Mais recentemente, em 1995, aprovou a Declaração de
Princípios sobre a Tolerância, enfatizando que "tolerância não é
concessão, condescendência, indulgência. A tolerância é, antes de tudo,
uma atitude ativa, fundada no reconhecimento dos direitos universais da
pessoa humana e das liberdades fundamentais do outro".
Nas
democracias modernas, a tolerância aparece como uma necessidade política
e jurídica para a vida em sociedade. Nesse contexto, o papel do Estado
não é promover a religiosidade, mas assegurar tanto a liberdade de
crença quanto de não crença. No Brasil, o artigo 19, I, da Constituição
Federal estabelece a separação entre o Estado e as instituições
religiosas, proibindo a subvenção a cultos e qualquer forma de aliança. O
ensino religioso, quando desejado, pode ser facilmente obtido no seio
da família e no âmbito das instituições religiosas.
Atuando
na defesa do Estado laico, a Procuradoria-Geral da República ajuizou
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4.439) requerendo ao STF que
declare inconstitucional o ensino confessional proposto no acordo
firmado entre o Estado brasileiro e a Santa Sé (Decreto 7.107/2010).
Sustenta, acertadamente, não ser admissível que "se transforme a escola
pública em espaço de catequese e proselitismo religioso, católico ou de
qualquer outra confissão".
O Brasil ainda não superou sua
herança religiosa de valorização da desigualdade. Nossa cultura jurídica
do tipo "nós e eles" se expressa quando legitimamos tratamento desigual
em razão do pertencimento religioso, racial ou étnico, de gênero,
sexual, social, político e cultural. Ensinar às crianças, nas escolas
públicas, que as pessoas devem ser valoradas de acordo com seu
pertencimento religioso significa retroceder ao tempo das Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia, promover a crença na desigualdade e
fomentar a intolerância.
--------------------
* ROBERTO
ARRIADA LOREA Juiz de Direito em Porto Alegre, membro da Associação dos
Juízes para a Democracia (AJD) lorea.laicidade@gmail.com
Fonte: 16/07/2017 - http://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=caaeb10544b465034f389991efc90877
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário