Martha Medeiros*
O que sabemos nós sobre aquele que parece radiante ou sobre aquele outro que parece à beira do suicídio?
Durante
alguns anos, convivi com uma senhora que trabalhou a vida inteira numa
casa de família. Praticamente criou os filhos dessa família, que depois
cresceram e seguiram amparando-a. Era uma mulher de alma boa, mas com
uma vida desértica. Não sabia ler nem escrever. Não sabia identificar os
números. Falava um português sofrível. Nasceu e viveu no interior do
Rio Grande do Sul. Conheceu Porto Alegre, mas na capital não conseguia
pegar um ônibus ou fazer compras sozinha. Não teve filhos. Não se tem
notícia de algum namorado, é bem possível que nunca tenha amado um
homem. Colecionava bonecas mesmo depois de adulta. Era de uma
ingenuidade assombrosa. Assistia televisão, mas entendia muito pouco do
que via. Era uma mulher inocente que desconhecia a maldade, o sarcasmo,
as segundas intenções. Cozinhava bem, seu grande dom. Fora isso, ter
seis ou 60 anos não fazia a menor diferença, a não ser no aspecto
físico. Nunca deixou de ser uma criança.
Soube que ela
faleceu essa semana. Eu não a via há muitos anos e, quando soube da
notícia, senti a melancolia natural de quem passa a recordar de alguém
que já não habita esse mundo. Que eu saiba, não aconteceu nada de genial
na vida dela, nada de minimamente empolgante, e isto me soou como um
desperdício. Que graça tem viver a repetição sistemática dos dias, qual o
sentido de existir sem arte, sem conhecimento, sem paixão, sem
questionamentos? Me perguntei se ela teria sido feliz.
Imediatamente
caí em mim: se bem a conhecia, ela nem sonhava com a possibilidade de
haver outra opção que não a de ser feliz. Dava a impressão de que não
reconhecia a existência de alternativas: ou isso ou aquilo. Só conhecia
"isso": a vida dela, do jeito que era, sem desejos ou frustrações.
Agradar às pessoas ao redor parecia ser a única coisa que queria fazer.
Talvez tenha sido carrancuda algumas vezes, ou egoísta, ou desaforada:
certamente foi, não era uma planta, e sim um ser humano. Mas nenhuma
dessas reações vinha acompanhada de alguma consciência filosófica, de
algum embasamento teórico. Ela não conectava suas emoções aos porquês.
Impossível uma criatura dessas não ser feliz _ ou perceber que é
infeliz. Simplesmente, ela não racionalizava sobre seu estado de
espírito. Não tinha recursos intelectuais para tal. Assim como ela,
quantas outras vivem dessa maneira? Um mundaréu de gente, todos
ignorantes de si próprios, mas nem por isso insatisfeitos.
Certa
vez escrevi uma crônica chamada Minha Felicidade Não É a Sua, inspirada
em um livro de Carlos Moraes. Lembrei dessa crônica ao pensar nessa
senhora. O que sabemos nós sobre aquele que parece radiante ou sobre
aquele outro que parece à beira do suicídio? Eles podem parecer o que
for e seguiremos sem saber de nada, sem saber de onde eles extraem
prazer e dor. É um atrevimento nos outorgar o direito de reconhecer,
apenas pelas aparências, quem sofre e quem não.
Essa senhora
que nunca leu, nunca viajou, nunca amou, nunca fez sexo, ou seja, que
nunca experimentou os requintes e dissabores da vida adulta, parece ter
desperdiçado sua vida. Mas estar no mundo apenas por estar, vá saber,
pode ser uma forma sofisticadíssima de paz.
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* Jornalista. Escritora
Fonte: Foto:
Gabriel Renner / Gabriel Renner
Fonte: http://zh.clicrbs.com.br/rs/opiniao/colunistas/martha-medeiros/noticia/2017/09/descansou-em-paz-9891239.html
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