segunda-feira, 25 de setembro de 2017

A última fronteira

Yuval Noah Hari* 

BATUTA - O robô YuMi, da suíça ABB, regeu a orquestra que acompanhou Andrea Bocelli em apresentação neste mês na Itália (Remo Casilli/Reuters)

Se a arte diz respeito a algo mais profundo do que as emoções, é possível que os algoritmos se tornem grandes artistas?

Em algum momento nas próximas décadas, um sistema externo que junta e analisa ondas infinitas de dados biométricos provavelmente conseguirá entender, muito melhor do que eu, o que está acontecendo dentro do meu corpo. Tal sistema transformará a política e a economia por permitir a governos e corporações que prevejam e manipulem desejos humanos. E qual será seu impacto sobre as expressões artísticas? Continuará a arte como a última linha defensiva contra o surgimento dos algoritmos oniscientes?

No mundo moderno, a arte normalmente é associada às emoções humanas. Tendemos a achar que artistas canalizam suas forças psicológicas e que o propósito da arte é conectar-nos com nossas emoções ou inspirar novos sentimentos. Por isso, quando avaliamos a arte, tendemos a julgá-la pelo impacto emocional e a acreditar que a beleza está nos olhos de quem a vê.

Essa perspectiva acerca da arte se desenvolveu durante a época do romantismo, no século XIX, e amadureceu há exatamente 100 anos, em 1917, quando Marcel Duchamp comprou um mictório ordinário, produzido em massa, e o declarou um objeto de arte. Nomeando-a Fonte, ele assinou e submeteu a peça a uma exposição de arte. Em inúmeras salas de aula ao redor do mundo, estudantes de arte do 1º ano são apresentados à imagem da Fonte de Duchamp, e espontaneamente se inicia uma calorosa discussão. É arte! Não é! É, sim! De jeito nenhum!

Depois de deixar que os alunos desabafem, o professor direciona a conversa ao levantar as já tradicionais perguntas “O que exatamente é arte? E como nós determinamos se algo é uma obra de arte ou não?”. Depois de mais alguns minutos de discussão, o professor guia então os alunos na direção correta: “A arte é qualquer coisa que as pessoas acham que é arte, e a beleza está nos olhos de quem vê”. Se as pessoas acham que um mictório é uma obra de arte linda — então é isso. Existiria alguma autoridade superior para dizer que as pessoas estariam erradas?

E se as pessoas estão dispostas a pagar milhões de dólares por determinada obra de arte — então é isso que ela vale. Afinal de contas, o cliente tem sempre razão.

Em 1952, o compositor John Cage superou Duchamp ao criar 4’33. A peça, originalmente composta para piano mas atualmente também apresentada por orquestras sinfônicas completas, consiste em quatro minutos e 33 segundos nos quais nenhum dos instrumentos toca uma única nota. A peça encoraja a audiência a observar suas experiências internas para examinar o que é música, o que nós esperamos dela, e como a música é diferente dos barulhos aleatórios da vida cotidiana. A mensagem é que são nossas próprias expectativas e emoções que definem a música e que separam a arte do barulho.

Se a arte é definida por emoções humanas, o que acontece quando algoritmos são capazes de entender e manipular as emoções humanas melhor do que Shakespeare, Picasso ou Lennon? Afinal de contas, emoções não são fenômenos místicos — são um processo bioquímico. Por isso, tendo acesso a um volume suficiente de dados biométricos e de capacidade de processamento computacional, seria possível hackear o amor, o ódio, o tédio e a alegria.

Em um futuro não muito distante, um algoritmo de inteligência artificial (IA) poderá analisar dados biométricos por meio de sensores ligados ao seu corpo, dentro e fora dele. Para assim determinar seu tipo de personalidade e suas mudanças de humor e, então, calcular o impacto emocional que uma música particular — ou até uma nota em particular — deverá causar em você.

De todas as formas e manifestações artísticas, a música é provavelmente a mais suscetível à análise por big data, em razão de seus estímulos, internos e externos, serem pautados por representações matemáticas. Os internos são os padrões matemáticos de ondas sonoras, e os externos, os padrões eletroquímicos de tempestades neurais de nosso cérebro. Permita a uma máquina de IA que analise milhões de experiências musicais e ela aprenderá como estímulos internos particulares resultam em estímulos externos particulares.

Imagine que você acabou de discutir feio com seu namorado. O algoritmo responsável pelo sistema de áudio vai identificar imediatamente sua luta emocional interna e, baseado no que ele sabe sobre você e sobre a psicologia humana em geral, tocará músicas personalizadas para ressoar com sua melancolia e ecoar seu sofrimento. Essas músicas particulares poderão não funcionar bem com outras pessoas, mas são perfeitas para seu tipo de personalidade. Depois de dar-lhe uma ajuda para enfrentar as profundezas de sua tristeza, o algoritmo tocaria a única música no mundo que poderia ser capaz de fazer com que você se sentisse melhor — talvez porque seu subconsciente a conecte com uma lembrança feliz de sua infância, de cuja existência nem você tinha consciência. Nenhum DJ humano poderia se equiparar às habilidades de uma IA como essa.

Você pode argumentar que uma IA mataria a magia do acaso e nos trancaria dentro de um casulo musical estreito, trançado pelas nossas curtidas e não curtidas anteriores.

ISTO NÃO É UM URINOL –
Máquinas seriam capazes de definir se Fonte (1917), de Duchamp, poderia estar num museu? (Tate Modern//AFP)

Nesse cenário, como explorar estilos e gostos musicais genuinamente novos? Sem problema. Pode-se ajustar facilmente o algoritmo para fazer 5% das recomendações de forma completamente aleatória, selecionando inesperadamente uma gravação de um conjunto indonésio, uma ópera de Rossini ou o último “narcocorrido” mexicano. Ao longo do tempo, por monitorar suas reações, a IA poderia determinar o nível ideal de aleatoriedade que otimizará a exploração, evitando a chatice, talvez baixando o nível de acaso a 3% ou aumentando-o para 8%.

Outra objeção possível é que não está claro como o algoritmo poderia estabelecer o próprio objetivo emocional. Se você acabou de brigar com seu namorado, o algoritmo deve visar a deixá-la triste ou feliz? Ele seguiria cegamente uma escala rígida de emoções “boas” e “ruins”? Talvez existam momentos na vida em que é bom se sentir triste? Com certeza, a mesma pergunta poderia ser direcionada a músicos e DJs. Mas, no caso do algoritmo, há muitas soluções interessantes para esse quebra-cabeça.

Uma opção é simplesmente deixar essa decisão para o cliente. Você pode avaliar suas emoções da maneira que quiser, e o algoritmo obedecerá a seus comandos. Independentemente de você querer chafurdar na miséria ou pular de alegria, o algoritmo seguirá você, sem erros. De fato, o algoritmo poderia aprender a reconhecer seus desejos mesmo que você não esteja sequer consciente deles.

Outra possibilidade, para aqueles que não confiam em si mesmos, seria instruir o algoritmo a seguir a recomendação de qualquer psicólogo de sua confiança. Se seu namorado eventualmente se separar de você, o algoritmo pode guiá-la pelos cinco estágios do luto: primeiro ajudando a negar o que aconteceu com Don’t Worry Be Happy, de Bobby McFerrin; depois aumentando sua raiva com You Oughta Know, de Alanis Morissette; encorajando você a negociar consigo com Ne Me Quitte Pas, de Jacques Brel, e Come Back and Stay, de Paul Young; ou guiando você pelo buraco da depressão com Someone Like You e Hello, de Adele; e finalmente ajudando-a a aceitar a situação com I Will Survive, de Gloria Gaynor, e Everything’s Gonna Be Alright, de Bob Marley.

O próximo passo é o algoritmo começar a ajustar músicas e melodias, adaptando-as ligeiramente, de acordo com as peculiaridades do ouvinte. Talvez você não goste de um trecho em particular de uma canção excelente. O algoritmo sabe disso porque seu coração pula uma batida e seu nível de oxitocina baixa quando você escuta essa parte. O algoritmo poderia então reescrever ou cortar a passagem ofensiva.

A ideia de computadores comporem música não é nova. David Cope, um professor de musicologia da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, criou um programa de computador chamado EMI (na sigla em inglês, Experimentos com Inteligência Musical), especializado em imitar o estilo de Johann Sebastian Bach. Numa apresentação pública realizada na Universidade de Oregon, uma audiência de alunos e professores universitários avaliou três peças — uma autêntica de Bach, outra produzida pelo EMI e uma terceira composta por um professor local de musicologia, Steve Larson. No final, foi solicitado ao público que identificasse quem havia composto cada uma das peças. O resultado? A audiência achou que a peça do EMI era de Bach, a de Bach era composta por Larson e a de Larson, pelo computador.

Com o tempo, algoritmos poderão aprender a compor músicas inteiras, usando as emoções humanas como se fossem um piano. Com seus dados biométricos pessoais, os algoritmos poderiam até produzir melodias personalizadas, que apenas você apreciaria.

É comum ouvir que as pessoas se conectam com a arte porque se identificam com ela. Algo que levará a resultados surpreendentes, e um pouco sinistros, se e quando o Facebook começar a criar artes personalizadas de acordo com o que seu sistema sabe sobre você. Se seu namorado a deixasse, o Facebook presentearia você com um novo hit, exatamente sobre o babaca, em vez de uma canção qualquer de Adele ou de Alanis Morissette, tornando a arte uma extravagância narcisista.

Contudo, existe também a possibilidade de que, com bases biométricas gigantescas recolhidas de milhões de pessoas, o algoritmo possa ainda produzir um hit global que deixaria todo mundo dançando loucamente nas pistas. Se arte é realmente sobre inspirar (ou manipular) emoções humanas, poucos, ou nenhum, humanos teriam a chance de competir com um algoritmo assim, uma vez que não possuímos a mesma capacidade de entender e analisar o principal instrumento que eles estão tocando: o sistema bioquímico do homem.

Isso originaria uma obra-prima? Depende da definição que se tem de arte. Se a beleza está de fato nos ouvidos do ouvinte, e se o cliente tem sempre razão, então algoritmos têm chance de produzir a melhor arte da história. Se arte é sobre algo mais profundo que emoções humanas, e deva expressar uma verdade que vai além de nossas vibrações bioquímicas, algoritmos talvez não se tornem grandes artistas. Nem a maioria dos humanos. Para entrarem no mercado da arte, algoritmos não precisam começar superando Beethoven logo de cara. Se eles superarem Justin Bieber, já será o suficiente.
----------------------
* Yuval Noah Harari, historiador israelense, é autor de Homo Deus: uma Breve História do Amanhã (Companhia das Letras) e Sapiens: uma Breve História da Humanidade (L&PM)
(Tradução: Lien Vasconcelos)
Publicado em VEJA de 27 de setembro de 2017, edição nº 2549

Nenhum comentário:

Postar um comentário