Lya Luft*
Lya Luft
"Eu achava aquilo uma perda
de tempo lastimável.
Queria ler, sonhar, ser feliz, quieta e em paz.
Queria entender o mundo."
Minha mãe, dona Wally, foi uma
mulher linda, alegre, otimista. Lembro de seu passo enérgico no
corredor, a voz cantando no jardim quando mexia nas suas rosas, a risada
clara conversando com meu pai. Adorava viajar, adorava suas tardes com
amigas (e primas) jogando cartas, adorava jogar tênis, e adorava acima
de tudo meu pai, meu irmão e esta que aqui escreve - que, eu acho, nunca
correspondeu direito ao que ela imaginava ser uma menina, jovem ou
mulher contente, normalzinha. Nunca aprendi a jogar cartas, a jogar
tênis, a arrumar o quarto (a empregada fazia isso muito melhor do que
eu, era o meu argumento). Na cadeira, empilhavam-se minhas roupas, o
armário era uma confusão, até ela jogar tudo no chão para eu arrumar do
jeito que era bonito. "Tem meninas que empilham calcinhas e pijamas
conforme a cor, e amarram com fitas lindas". Eu achava aquilo uma perda
de tempo lastimável. Queria ler, sonhar, ser feliz, quieta e em paz.
Queria entender o mundo.
Tivemos uma relação tumultuada. Nada
dramático, apenas as diferenças entre uma mãe ansiosa e controladora e
uma filha rebelde e amante da liberdade. Ainda que fosse a liberdade
boba de andar descalça no pátio, acender o abajur do lado da cama e ler
madrugada adentro, rir alto demais, rir fora de hora, e ter uma quase
absoluta incompetência e desgosto pelas coisas domésticas. Isso, e ler
demais, segundo minha mãe e seu bando de primas e amigas, me impediria
de conseguir marido: coisa gravíssima, aliás.
Minha mãe era
ansiosa em parte porque a gente nasce assim ou assado, mas também -
aprendi quando tive meus filhos - porque o primeiro bebê tinha morrido e
ela talvez nunca se recuperasse dessa angústia. Seja como for, fui
muito cuidada, vigiada, controlada, e detestava isso embora dissessem
que era "para o meu bem". Uma prenda doméstica que tentei dominar foi
bordado. Lembro encantada de tardes que passávamos juntas na grande
sala, cada uma com seu bordado, conversando animadas, ela falando da
infância, da família, de como conheceu meu pai. Naturalmente, os
bordados dela eram perfeitos, e os meus, uma confusão de fios tortos,
encardidos, o lado avesso cheio de grandes nós. Eu era um desastre nisso
e em outras coisas, como cozinha.
"As filhas de minhas amigas e
primas sabem cozinhar, fazer bolo, arrumar a mesa lindamente. Pra
outras coisas, você é tão inteligente, por que não aprende?". Eu não me
interessava, e pela vida afora, sem interesse ou entusiasmo, em geral
faço tudo malfeito. Brigamos incrivelmente, pelas coisas mais bobas,
ligadas a esses meus defeitos. Mas ela curtia imensamente sua casa, os
netos e a neta. Era ótima parceira nos assuntos que eu deveria cultivar:
comprar roupas bonitas, me vestir melhor, gostar de festas. Às vezes me
olhava como quem diz "Que pessoa é essa que eu pari e não entendo?" -
nada original em muitas mães.
Nos últimos 10 anos de vida, até
os 90, foi prisioneira na clausura do Alzheimer. Cuidei dela até o fim:
já não me reconhecia, enrolada no xale da sua ausência. Guardei algumas
mágoas infantis, mas agora, tantos anos depois, quando me dói não ter
mais a quem chamar de "mãe", sei que fizemos as pazes. Acreditem, é uma
sensação maravilhosa. Onde quer que você esteja, dona Wally: você me faz
muita falta.
-----------
* Escritora. Tradutora.
Fonte: http://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=8466f9ace6a9acbe71f75762ffc890f1 23/09/2017
Foto da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário