sábado, 23 de setembro de 2017

Dona Wally, minha mãe

Lya Luft*

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 "Eu achava aquilo uma perda de tempo lastimável. 
Queria ler, sonhar, ser feliz, quieta e em paz.
 Queria entender o mundo."

Minha mãe, dona Wally, foi uma mulher linda, alegre, otimista. Lembro de seu passo enérgico no corredor, a voz cantando no jardim quando mexia nas suas rosas, a risada clara conversando com meu pai. Adorava viajar, adorava suas tardes com amigas (e primas) jogando cartas, adorava jogar tênis, e adorava acima de tudo meu pai, meu irmão e esta que aqui escreve - que, eu acho, nunca correspondeu direito ao que ela imaginava ser uma menina, jovem ou mulher contente, normalzinha. Nunca aprendi a jogar cartas, a jogar tênis, a arrumar o quarto (a empregada fazia isso muito melhor do que eu, era o meu argumento). Na cadeira, empilhavam-se minhas roupas, o armário era uma confusão, até ela jogar tudo no chão para eu arrumar do jeito que era bonito. "Tem meninas que empilham calcinhas e pijamas conforme a cor, e amarram com fitas lindas". Eu achava aquilo uma perda de tempo lastimável. Queria ler, sonhar, ser feliz, quieta e em paz. Queria entender o mundo.
Tivemos uma relação tumultuada. Nada dramático, apenas as diferenças entre uma mãe ansiosa e controladora e uma filha rebelde e amante da liberdade. Ainda que fosse a liberdade boba de andar descalça no pátio, acender o abajur do lado da cama e ler madrugada adentro, rir alto demais, rir fora de hora, e ter uma quase absoluta incompetência e desgosto pelas coisas domésticas. Isso, e ler demais, segundo minha mãe e seu bando de primas e amigas, me impediria de conseguir marido: coisa gravíssima, aliás. 

Minha mãe era ansiosa em parte porque a gente nasce assim ou assado, mas também - aprendi quando tive meus filhos - porque o primeiro bebê tinha morrido e ela talvez nunca se recuperasse dessa angústia. Seja como for, fui muito cuidada, vigiada, controlada, e detestava isso embora dissessem que era "para o meu bem". Uma prenda doméstica que tentei dominar foi bordado. Lembro encantada de tardes que passávamos juntas na grande sala, cada uma com seu bordado, conversando animadas, ela falando da infância, da família, de como conheceu meu pai. Naturalmente, os bordados dela eram perfeitos, e os meus, uma confusão de fios tortos, encardidos, o lado avesso cheio de grandes nós. Eu era um desastre nisso e em outras coisas, como cozinha. 

"As filhas de minhas amigas e primas sabem cozinhar, fazer bolo, arrumar a mesa lindamente. Pra outras coisas, você é tão inteligente, por que não aprende?". Eu não me interessava, e pela vida afora, sem interesse ou entusiasmo, em geral faço tudo malfeito. Brigamos incrivelmente, pelas coisas mais bobas, ligadas a esses meus defeitos. Mas ela curtia imensamente sua casa, os netos e a neta. Era ótima parceira nos assuntos que eu deveria cultivar: comprar roupas bonitas, me vestir melhor, gostar de festas. Às vezes me olhava como quem diz "Que pessoa é essa que eu pari e não entendo?" - nada original em muitas mães. 

Nos últimos 10 anos de vida, até os 90, foi prisioneira na clausura do Alzheimer. Cuidei dela até o fim: já não me reconhecia, enrolada no xale da sua ausência. Guardei algumas mágoas infantis, mas agora, tantos anos depois, quando me dói não ter mais a quem chamar de "mãe", sei que fizemos as pazes. Acreditem, é uma sensação maravilhosa. Onde quer que você esteja, dona Wally: você me faz muita falta.
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* Escritora. Tradutora. 
lya.luft@zerohora.com.br
Fonte:  http://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=8466f9ace6a9acbe71f75762ffc890f1 23/09/2017
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