Neto de Gandhi tem novo livro e
defende que a ira pode ser um sentimento maravilhoso, desde que o saiba
controlar. E acusa Arundhati Roy de quer destruir a imagem do avô. Leia
ainda uma parte de "O Dom da Ira"
Arun Gandhi tem 83 anos e é o quinto neto de
Mahatma Gandhi. Viveu com o avô durante dois anos, entre os 12 e os 14, e
nunca esqueceu as lições que recebeu. Falou sobre elas em conferências
durante décadas, até que resolveu reunir tudo no livro O Dom da Ira.
Uma obra repleta de histórias pessoais, de reflexões filosóficas e de
exemplos práticos. Arun foi jornalista, fundou um Instituto para a
Não-Violência e conta como o avô vendia autógrafos - para juntar
dinheiro para ajudar os pobres - e que as polémicas experiências
sexuais foram consensuais e que serviam para Gandhi testar o seu
controlo mental.
Qual é a primeira memória que tem do seu avô, Mahatma Gandhi? Conheci-o aos 5 anos, mas não me lembrava muito bem dele. Tinha uma imagem de uma pessoa muito importante, no meio da política, e quando fui viver com ele, aos 12 anos, pensava que o ashram (local de retiro religioso), apesar de ser simples, seria uma casa normal, com paredes de cimento, mobília... Cheguei e vi a cabana de lama, ele sentado no chão, sem mobília e disse: "Uau! Não era nada disto que eu imaginava."
Achava que ia ter um tratamento especial por ser o neto de Gandhi? Sim. Não foi fácil, porque era um miúdo e tinha de fazer tudo o que os outros faziam. Pôr termo às distinções entre as pessoas acabava com a discriminação, defendia ele. As tarefas eram iguais, até limpávamos as latrinas. Mas quando vi que o meu avô fazia o mesmo que nós, percebi que também tinha de o fazer.
[...]
Como vê as declarações de Arundhati Roy que diz que Gandhi era um defensor das castas?
Acho que ela é muito ignorante e não sabe muito sobre Gandhi. Ela quer ser a campeã dos oprimidos, por isso pensa que a única forma de o ser é explorar Gandhi. Há quem chegue ao topo pelas suas conquistas, outros a puxar alguém para baixo. Ele era contra o sistema de castas legalizado, mas referiu que as sociedades humanas são automaticamente divididas em classes. Essas divisões vão existir e não conseguimos eliminá-las. O que devemos eliminar é a institucionalização dessas diferenças. As pessoas não entenderam isso e citam-no mal.
Descubra uma parte do livro, O Dom da Ira, editado em Portugal pela Planeta:
"Lição um
Usem a ira para o bem
O meu avô surpreendeu o mundo ao responder a violência e ao ódio com amor e perdão. Ele nunca foi refém da toxicidade da ira. Eu não fui tao bem-sucedido. Enquanto criança indiana crescendo numa Africa do Sul carregada de racismo, era atacado por crianças brancas por não ser suficientemente branco e por crianças negras por não ser suficientemente negro.
Lembro-me de ir comprar rebuçados, certo sábado a tarde, num bairro branco e de três adolescentes se atirarem a mim. Um deu-me uma bofetada na cara e, quando cai ao chão, os outros dois começaram a pontapear-me e a rir-se. Os três fugiram a correr antes que alguém os pudesse apanhar. Eu tinha apenas 9 anos. No ano seguinte, durante o Festival das Luzes hindu, a minha família estava a festejar com amigos, na cidade. Ao dirigir-me para casa de um deles, passei por um grupo de jovens negros que estava numa esquina. Um deles aproximou-se e atingiu-me com um pau nas costas com toda a forca, só por eu ser indiano. Fiquei a ferver de raiva e queria retaliar.
Comecei a levantar pesos com a vaga ideia de me tornar suficientemente forte para ter a minha vingança. Os meus pais, que se viam como embaixadores dos ensinamentos de não violência do bapuji, afligiam-se por eu me meter em tantas brigas. Tentaram tornar-me menos agressivo, mas pouco podiam fazer quanto a minha ira.
Eu não estava feliz com o facto de estar sempre enraivecido. Guardar rancores e fantasiar sobre a vingança faziam-me sentir mais fraco, ao invés de forte. Os meus pais tinham esperança de que ficar no ashram com o bapuji me ajudaria a compreender a minha fúria interior e a conseguir lidar melhor com ela. Também eu tinha essa esperança.
Nos meus primeiros encontros com o meu avo, ficava impressionado por ele parecer sempre calmo e controlado, não importava o que alguém dissesse ou fizesse. Prometi a mim mesmo que iria seguir o seu exemplo e não me sai mal durante algum tempo. Depois de os meus pais e de a minha irmã terem partido, conheci alguns rapazes da minha idade que viviam numa aldeia um pouco mais adiante na estrada e começamos a jogar a bola juntos. Eles tinham uma bola de ténis velha que usavam para jogar futebol e eu punha duas pedras a marcar a baliza.
Eu adorava jogar futebol. Apesar de, desde o primeiro dia, os miúdos fazerem pouco do meu sotaque sul-africano, eu tinha enfrentado muito pior, por isso tolerava bem a sua troca. Mas a meio de um jogo bastante movimentado, um dos rapazes passou-me uma rasteira quando eu ia atras da bola. Cai no chão de terra dura e poeirenta. O meu ego ficou em tao mau estado quanto o meu joelho – e senti um familiar ataque de raiva, com o meu coração a bater muito depressa no peito e a minha mente a querer vingança. Peguei numa pedra. Levantando-me do chão, furioso, ergui o braço para atirar a pedra ao meu atacante com toda a forca que conseguisse.
Mas uma voz, na minha mente, disse baixinho: "Não atires." Deitei a pedra ao chão e voltei a correr para o ashram. Com lágrimas a correrem-me pela cara, procurei o meu avo e contei-lhe a história toda.
– Estou sempre furioso, bapuji. Não sei o que fazer.
Eu tinha-o desiludido e pensava que ele estaria descontente comigo. Mas deu-me umas palmadinhas reconfortantes nas costas e disse:
– Vai buscar a tua roca e vamos os dois fiar algum algodão.
Assim que chegara ao ashram, o meu avo tinha-me ensinado a trabalhar com uma roda de fiar. Fiava uma hora todas as manhas e mais outra todas as noites; era muito relaxante. O bapuji gostava de fazer multitasking, ainda antes de alguém usar essa palavra. Dizia muitas vezes: "Enquanto estamos sentados e a conversar, podemos usar as mãos para fiar."
Naquele momento, fui buscar a pequena maquineta e montei-a junto a nós. O bapuji sorriu e preparou-se para tecer uma lição, juntamente com o algodão.
– Quero contar-te uma história – disse, enquanto eu me sentava a seu lado. – Era uma vez um rapaz da tua idade que estava sempre furioso porque nunca nada parecia acontecer como ele queria. Não era capaz de dar valor a perspectiva dos outros e, por isso, quando as pessoas o provocavam, respondia com explosões de raiva.
Suspeitei que o rapaz era eu, por isso continuei a fiar e a ouvir ainda com mais atenção.
– Um dia, o rapaz meteu-se numa luta muito seria e, por acidente, cometeu um homicídio – continuou. – Num momento de cólera irreflectida, destruiu a sua vida ao acabar com a vida de outra pessoa.
– Prometo, bapuji, que vou ser melhor. – Eu não fazia a mais pequena ideia de como ser melhor, mas não queria que a minha ira matasse alguém.
O bapuji acenou com a cabeça.
– Tens muita ira dentro de ti – disse-me. – Os teus pais contaram-me acerca de todas as brigas em que te meteste na tua terra.
– Peco muita desculpa – disse eu, temendo desatar a chorar outra vez.
Mas o bapuji tinha planeado uma moral diferente da que eu esperava. Olhou para mim, por cima da sua roda de fiar.
– Fico contente por ver que podes ser levado a sentir ira. A ira e boa. Eu estou sempre a ficar zangado – confessou, enquanto os seus dedos faziam girar a roda.
Mal podia acreditar no que estava a ouvir.
– Nunca o vi zangado – respondi.
– Porque eu aprendi a usar a minha ira para o bem – explicou.
– A ira e, para as pessoas, como o combustível para os automóveis: ela alimenta-nos impelindo-nos a seguir em frente para chegarmos a um sítio melhor. Sem ela, não nos sentiríamos motivados a responder a altura aos desafios. E uma energia que nos obriga a definir o que e justo e o que e injusto.
O meu avô explicou que, quando era miúdo, na África do Sul, também tinha sofrido com os violentos preconceitos e que isso o deixava enraivecido. Mas acabou por aprender que procurar vingança não ajudava nada e começou a lutar contra o preconceito e a discriminação com compaixão, respondendo a ira e ao ódio com bondade. Ele acreditava no poder da verdade e do amor. Procurar vingança não fazia sentido para ele. A regra do olho por olho só fazia com que o mundo inteiro ficasse cego.
Fiquei admirado por saber que o bapuji não tinha nascido com um temperamento tão equilibrado assim. Agora, ele era reverenciado e chamado pelo nome honorífico Mahatma, mas em tempos tinha sido apenas um miúdo rebelde. Quando tinha a minha idade, roubava dinheiro aos pais para comprar cigarros e meteu-se em sarilhos com outros miúdos. Depois de um casamento arranjado com a minha avó, quando os dois tinham apenas 13 anos, por vezes ele gritava com ela e houve uma altura, depois de uma discussão, em que tentou pô-la fora de casa a forca. Mas não gostava da pessoa em que se estava a tornar, por isso começou a moldar-se para ser a pessoa com melhor temperamento e mais controlada que queria ser.
– Então eu podia aprender a fazer isso? – perguntei.
– Já estás a faze-lo, neste momento – disse ele, com um sorriso.
Enquanto estávamos os dois ali sentados, manobrando as nossas rocas, tentei absorver a ideia de que a ira pode ser usada para o bem. Eu podia continuar a sentir ira, mas podia aprender a canaliza-la para atingir fins positivos – como as alterações politícas que o avo defendera com toda a calma na Africa do Sul e na India.
O bapuji explicou-me que mesmo as nossas rodas de fiar eram um exemplo de como a ira podia criar alterações positivas.
A produção de tecido tinha sido uma indústria artesanal na India durante séculos, mas agora a grande industria têxtil inglesa estava a levar o algodão da India, a manufactura-lo e a vendê-lo de novo aos indianos a preços elevados. As pessoas estavam zangadas; andavam vestidas com farrapos porque não tinham meios para pagar tecidos feitos em Inglaterra. Mas ao invés de atacar a indústria britânica por empobrecer as pessoas, o bapuji começou, ele próprio, a tecer algodão como forma de encorajar as famílias a terem a sua própria roda de fiar e a serem auto-suficientes. Isto teve um grande impacte por todo o pais e em Inglaterra.
O bapuji viu que eu estava a ouvi-lo com atenção, por isso fez outra analogia – ele gostava mesmo de analogias! – comparando a ira a electricidade.
– Quando canalizamos a electricidade de forma inteligente, podemos usá-la para melhorar as nossas condições de vida, mas, se a usarmos mal, podemos morrer. Tal como acontece com a electricidade, temos de aprender a usar a ira com sabedoria, para o bem da humanidade."
--------
Reportagem por Vanda Marques
Fonte: http://www.sabado.pt/vida/detalhe/gandhi-nao-nasceu-santo-roubou-mentiu-ate-que-se-transformou?utm_campaign=Newsletter&utm_content=1498473353&utm_medium=email&utm_source=diaria
Qual é a primeira memória que tem do seu avô, Mahatma Gandhi? Conheci-o aos 5 anos, mas não me lembrava muito bem dele. Tinha uma imagem de uma pessoa muito importante, no meio da política, e quando fui viver com ele, aos 12 anos, pensava que o ashram (local de retiro religioso), apesar de ser simples, seria uma casa normal, com paredes de cimento, mobília... Cheguei e vi a cabana de lama, ele sentado no chão, sem mobília e disse: "Uau! Não era nada disto que eu imaginava."
Achava que ia ter um tratamento especial por ser o neto de Gandhi? Sim. Não foi fácil, porque era um miúdo e tinha de fazer tudo o que os outros faziam. Pôr termo às distinções entre as pessoas acabava com a discriminação, defendia ele. As tarefas eram iguais, até limpávamos as latrinas. Mas quando vi que o meu avô fazia o mesmo que nós, percebi que também tinha de o fazer.
[...]
Como vê as declarações de Arundhati Roy que diz que Gandhi era um defensor das castas?
Acho que ela é muito ignorante e não sabe muito sobre Gandhi. Ela quer ser a campeã dos oprimidos, por isso pensa que a única forma de o ser é explorar Gandhi. Há quem chegue ao topo pelas suas conquistas, outros a puxar alguém para baixo. Ele era contra o sistema de castas legalizado, mas referiu que as sociedades humanas são automaticamente divididas em classes. Essas divisões vão existir e não conseguimos eliminá-las. O que devemos eliminar é a institucionalização dessas diferenças. As pessoas não entenderam isso e citam-no mal.
Descubra uma parte do livro, O Dom da Ira, editado em Portugal pela Planeta:
"Lição um
Usem a ira para o bem
O meu avô surpreendeu o mundo ao responder a violência e ao ódio com amor e perdão. Ele nunca foi refém da toxicidade da ira. Eu não fui tao bem-sucedido. Enquanto criança indiana crescendo numa Africa do Sul carregada de racismo, era atacado por crianças brancas por não ser suficientemente branco e por crianças negras por não ser suficientemente negro.
Lembro-me de ir comprar rebuçados, certo sábado a tarde, num bairro branco e de três adolescentes se atirarem a mim. Um deu-me uma bofetada na cara e, quando cai ao chão, os outros dois começaram a pontapear-me e a rir-se. Os três fugiram a correr antes que alguém os pudesse apanhar. Eu tinha apenas 9 anos. No ano seguinte, durante o Festival das Luzes hindu, a minha família estava a festejar com amigos, na cidade. Ao dirigir-me para casa de um deles, passei por um grupo de jovens negros que estava numa esquina. Um deles aproximou-se e atingiu-me com um pau nas costas com toda a forca, só por eu ser indiano. Fiquei a ferver de raiva e queria retaliar.
Comecei a levantar pesos com a vaga ideia de me tornar suficientemente forte para ter a minha vingança. Os meus pais, que se viam como embaixadores dos ensinamentos de não violência do bapuji, afligiam-se por eu me meter em tantas brigas. Tentaram tornar-me menos agressivo, mas pouco podiam fazer quanto a minha ira.
Eu não estava feliz com o facto de estar sempre enraivecido. Guardar rancores e fantasiar sobre a vingança faziam-me sentir mais fraco, ao invés de forte. Os meus pais tinham esperança de que ficar no ashram com o bapuji me ajudaria a compreender a minha fúria interior e a conseguir lidar melhor com ela. Também eu tinha essa esperança.
Nos meus primeiros encontros com o meu avo, ficava impressionado por ele parecer sempre calmo e controlado, não importava o que alguém dissesse ou fizesse. Prometi a mim mesmo que iria seguir o seu exemplo e não me sai mal durante algum tempo. Depois de os meus pais e de a minha irmã terem partido, conheci alguns rapazes da minha idade que viviam numa aldeia um pouco mais adiante na estrada e começamos a jogar a bola juntos. Eles tinham uma bola de ténis velha que usavam para jogar futebol e eu punha duas pedras a marcar a baliza.
Eu adorava jogar futebol. Apesar de, desde o primeiro dia, os miúdos fazerem pouco do meu sotaque sul-africano, eu tinha enfrentado muito pior, por isso tolerava bem a sua troca. Mas a meio de um jogo bastante movimentado, um dos rapazes passou-me uma rasteira quando eu ia atras da bola. Cai no chão de terra dura e poeirenta. O meu ego ficou em tao mau estado quanto o meu joelho – e senti um familiar ataque de raiva, com o meu coração a bater muito depressa no peito e a minha mente a querer vingança. Peguei numa pedra. Levantando-me do chão, furioso, ergui o braço para atirar a pedra ao meu atacante com toda a forca que conseguisse.
Mas uma voz, na minha mente, disse baixinho: "Não atires." Deitei a pedra ao chão e voltei a correr para o ashram. Com lágrimas a correrem-me pela cara, procurei o meu avo e contei-lhe a história toda.
– Estou sempre furioso, bapuji. Não sei o que fazer.
Eu tinha-o desiludido e pensava que ele estaria descontente comigo. Mas deu-me umas palmadinhas reconfortantes nas costas e disse:
– Vai buscar a tua roca e vamos os dois fiar algum algodão.
Assim que chegara ao ashram, o meu avo tinha-me ensinado a trabalhar com uma roda de fiar. Fiava uma hora todas as manhas e mais outra todas as noites; era muito relaxante. O bapuji gostava de fazer multitasking, ainda antes de alguém usar essa palavra. Dizia muitas vezes: "Enquanto estamos sentados e a conversar, podemos usar as mãos para fiar."
Naquele momento, fui buscar a pequena maquineta e montei-a junto a nós. O bapuji sorriu e preparou-se para tecer uma lição, juntamente com o algodão.
– Quero contar-te uma história – disse, enquanto eu me sentava a seu lado. – Era uma vez um rapaz da tua idade que estava sempre furioso porque nunca nada parecia acontecer como ele queria. Não era capaz de dar valor a perspectiva dos outros e, por isso, quando as pessoas o provocavam, respondia com explosões de raiva.
Suspeitei que o rapaz era eu, por isso continuei a fiar e a ouvir ainda com mais atenção.
– Um dia, o rapaz meteu-se numa luta muito seria e, por acidente, cometeu um homicídio – continuou. – Num momento de cólera irreflectida, destruiu a sua vida ao acabar com a vida de outra pessoa.
– Prometo, bapuji, que vou ser melhor. – Eu não fazia a mais pequena ideia de como ser melhor, mas não queria que a minha ira matasse alguém.
O bapuji acenou com a cabeça.
– Tens muita ira dentro de ti – disse-me. – Os teus pais contaram-me acerca de todas as brigas em que te meteste na tua terra.
– Peco muita desculpa – disse eu, temendo desatar a chorar outra vez.
Mas o bapuji tinha planeado uma moral diferente da que eu esperava. Olhou para mim, por cima da sua roda de fiar.
– Fico contente por ver que podes ser levado a sentir ira. A ira e boa. Eu estou sempre a ficar zangado – confessou, enquanto os seus dedos faziam girar a roda.
Mal podia acreditar no que estava a ouvir.
– Nunca o vi zangado – respondi.
– Porque eu aprendi a usar a minha ira para o bem – explicou.
– A ira e, para as pessoas, como o combustível para os automóveis: ela alimenta-nos impelindo-nos a seguir em frente para chegarmos a um sítio melhor. Sem ela, não nos sentiríamos motivados a responder a altura aos desafios. E uma energia que nos obriga a definir o que e justo e o que e injusto.
O meu avô explicou que, quando era miúdo, na África do Sul, também tinha sofrido com os violentos preconceitos e que isso o deixava enraivecido. Mas acabou por aprender que procurar vingança não ajudava nada e começou a lutar contra o preconceito e a discriminação com compaixão, respondendo a ira e ao ódio com bondade. Ele acreditava no poder da verdade e do amor. Procurar vingança não fazia sentido para ele. A regra do olho por olho só fazia com que o mundo inteiro ficasse cego.
Fiquei admirado por saber que o bapuji não tinha nascido com um temperamento tão equilibrado assim. Agora, ele era reverenciado e chamado pelo nome honorífico Mahatma, mas em tempos tinha sido apenas um miúdo rebelde. Quando tinha a minha idade, roubava dinheiro aos pais para comprar cigarros e meteu-se em sarilhos com outros miúdos. Depois de um casamento arranjado com a minha avó, quando os dois tinham apenas 13 anos, por vezes ele gritava com ela e houve uma altura, depois de uma discussão, em que tentou pô-la fora de casa a forca. Mas não gostava da pessoa em que se estava a tornar, por isso começou a moldar-se para ser a pessoa com melhor temperamento e mais controlada que queria ser.
– Então eu podia aprender a fazer isso? – perguntei.
– Já estás a faze-lo, neste momento – disse ele, com um sorriso.
Enquanto estávamos os dois ali sentados, manobrando as nossas rocas, tentei absorver a ideia de que a ira pode ser usada para o bem. Eu podia continuar a sentir ira, mas podia aprender a canaliza-la para atingir fins positivos – como as alterações politícas que o avo defendera com toda a calma na Africa do Sul e na India.
O bapuji explicou-me que mesmo as nossas rodas de fiar eram um exemplo de como a ira podia criar alterações positivas.
A produção de tecido tinha sido uma indústria artesanal na India durante séculos, mas agora a grande industria têxtil inglesa estava a levar o algodão da India, a manufactura-lo e a vendê-lo de novo aos indianos a preços elevados. As pessoas estavam zangadas; andavam vestidas com farrapos porque não tinham meios para pagar tecidos feitos em Inglaterra. Mas ao invés de atacar a indústria britânica por empobrecer as pessoas, o bapuji começou, ele próprio, a tecer algodão como forma de encorajar as famílias a terem a sua própria roda de fiar e a serem auto-suficientes. Isto teve um grande impacte por todo o pais e em Inglaterra.
O bapuji viu que eu estava a ouvi-lo com atenção, por isso fez outra analogia – ele gostava mesmo de analogias! – comparando a ira a electricidade.
– Quando canalizamos a electricidade de forma inteligente, podemos usá-la para melhorar as nossas condições de vida, mas, se a usarmos mal, podemos morrer. Tal como acontece com a electricidade, temos de aprender a usar a ira com sabedoria, para o bem da humanidade."
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Reportagem por Vanda Marques
Fonte: http://www.sabado.pt/vida/detalhe/gandhi-nao-nasceu-santo-roubou-mentiu-ate-que-se-transformou?utm_campaign=Newsletter&utm_content=1498473353&utm_medium=email&utm_source=diaria
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