sábado, 16 de setembro de 2017

Clóvis de Barros Filho: "Estamos vivendo uma erosão da moral"

Clóvis de Barros Filho: "Estamos vivendo uma erosão da moral" Anderson Fetter/Agencia RBS

O filósofo, jornalista, escritor e um dos palestrantes mais requisitados do país esteve em Porto Alegre e conversou com ZH sobre ética, felicidade e as necessidades que temos de fazer escolhas

Ao dar uma roupagem leve a conceitos e autores densos, o paulista Clóvis de Barros Filho, 51 anos, transforma a filosofia em um tema pop e descontraído. Palestrante super-requisitado no Brasil e no Exterior – sua agenda comporta até 25 conferências por mês –, o jornalista, bacharel em Direito e ex-professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP) esteve em Porto Alegre como convidado do 14º Congresso do Ensino Privado Gaúcho, realizado pelo Sindicato do Ensino Privado (Sinepe/RS). Em uma performance que prendeu a atenção da plateia do Centro de Eventos da PUCRS ao longo de 75 minutos – período em que ele não consultou qualquer anotação nem tomou um único gole d’água –, o filósofo falou de ética e moral, temas que estão entre suas pautas mais frequentes. Confira a entrevista.

Em sua palestra, você disse que "a ética é a vitória da convivência sobre a canalhice, e a sociedade está doente quando permite que o canalha vença". Fale mais sobre isso, por favor.
Se você imaginar que cada um de nós é dotado de uma certa energia para viver e que essa energia pode subir, e é o que nós chamamos de "alegria", ganho de potência de agir, e ela pode descer, o que nós chamamos de "tristeza", é normal que o canalha busque de qualquer jeito a sua alegria. Só que agindo como age, ele entristece muita gente. É como, por exemplo, quem para em fila dupla ou urina na piscina. Na hora em que você faz a aritmética dos ganhos e das perdas, das alegrias e das tristezas, das potências e das impotências, em larga escala, você constata que, onde o canalha triunfa, sistematicamente há grandes contingentes de pessoas prejudicadas e entristecidas – e é isso que faz uma sociedade ser doente. A ética parte de uma primazia: a busca de uma convivência harmônica, que dá a todos que interagem iguais chances de felicidade. É uma coisa que vale mais do que o ganho individual buscado por esse ou aquele membro desse coletivo. Deve haver um alinhamento entre a maneira como você vai buscar o que você deseja e aquilo que é entendido por todos como aceitável dentro daquele espaço de convivência. Por isso a ética é a vitória da convivência sobre a canalhice. 

O tema da sua conferência foi "Por um País Mais Ético". Em termos de moral, você disse que estamos longe de um padrão ideal.
Estamos assistindo a uma erosão da moral. Cada vez mais, precisamos de repressão para garantir condutas de convívio – como o uso disseminado de câmeras de segurança –, quando, na verdade, se a moral bastasse, nada disso seria necessário. É impressionante como, a cada dia que passa, estamos mais submetidos à fiscalização e menos sobra espaço para o nosso discernimento, aquela liberdade de saber o que é certo e o que é errado. Isso empobrece a dignidade humana. Ver o seu bom comportamento como resultado de um constrangimento externo é apequenador da sua dignidade. Nós nos acostumamos a uma mediocridade moral.

O que mais o inquieta no Brasil atualmente?
O que mais me inquieta é o jovem que começa a ter lucidez sobre a sua vida e sobre a sociedade e sequer cogita a possibilidade de uma formação moral adequada para que ele mesmo possa discernir sobre a melhor maneira de agir. As pessoas crescem acreditando que só se obtém comportamentos justos dos outros na base da repressão. Isso é o que mais me inquieta, como o fato de a diretora de escola dizer: "Vocês devem se comportar porque tem uma câmera fiscalizando". Ela passou por cima da possibilidade daquela criança ter uma formação suficiente para agir adequadamente sem nenhum tipo de repressão.

Você disse que "nos acostumamos a conviver com os excrementos morais dos nossos concidadãos". Toleramos a falta de ética e a transgressão em diferentes níveis e lugares, todos os dias. Qual é o custo disso para alguém que cresce em um ambiente contaminado?
É não vislumbrar a possibilidade de ser diferente – esse é o principal custo. É você acreditar que tem de ser assim, acreditar que não pode ser de outro jeito. A pessoa não tem a chance nem de vislumbrar essa possibilidade, porque ela, na sua trajetória de vida e de convivência, é massacrada pela desconfiança. Se você falar na possibilidade da confiança, você desperta o riso da pessoa, como que dizendo: "Esse é um louco, ele é de outro planeta". Em determinados momentos da vida em sociedade, a presença da canalhice é tão recorrente que, se você for se insurgir contra cada agente e cada ação canalha, você corre o risco de ter um desgaste resultante desse conflito ininterrupto, um desgaste que acaba exaurindo. Qual é a solução que as pessoas encontram para continuar vivendo? É fazer vista grossa, fingir que não existe ou, de maneira mais resignada, é saber que existe mas considerar a sua própria indignação como insuficiente para fazer frente ao volume de iniciativas canalhas que o circundam. Aí então você acaba tendo uma espécie de sociedade anestesiada pela perplexidade diante do sucesso da desonestidade.

Às vezes, só pensar em reagir já cansa, né?
Claro. No final do dia, não há quem aguente. Ante tantas humilhações, você peitar cada uma delas dá uma sensação de impotência. Às vezes, não é só uma sensação, é uma certeza de impotência ante tantas iniciativas lesivas à convivência.

Você falou há pouco em pessoas entristecidas. Já o ouvi dizendo que estamos em um mundo "extraordinariamente competente para entristecer". Essa competência para o entristecimento lhe parece cada vez mais intensa?
Eu acho que o real como um todo pode ser bastante lesivo, e isso sempre foi assim. Mas acho que, de certa maneira, a convivência, sobretudo num cenário no qual as pessoas só pensam nos próprios ganhos e vantagens, é uma convivência progressivamente entristecedora. É preciso quase uma formação psicológica para esse tipo de convivência apequenadora de potência.

Você diz que a felicidade se resume a instantes, é o aqui e agora. Por quê?
A felicidade é um atributo da vida onde a vida está, não poderia ser em nenhum outro lugar. E nesse lugar você tem o imediatismo da consciência do mundo, tal como ele se apresenta diante de nós, o mundo percebido, e você tem ao mesmo tempo o que chamamos de passado, que nada mais é do que o presente quando materializado em memória. E você tem no presente a presença do futuro, que nada mais é do que o presente que projeta o devir, que antecipa o que vai acontecer. A felicidade tem de estar metida aí no meio. Se existe alguma equação de vida feliz, é exatamente numa temporalidade onde o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro se articulam de maneira auspiciosa e potencializadora. E isso se dá de instante a instante. Um novo instante é uma nova equação, e tudo pode mudar. É uma equação entre aquilo de que lembramos, aquilo que acontece diante de nossos olhos e aquilo que esperamos que possa acontecer. Uma equação entre a nostalgia, a percepção do mundo e a esperança.

A vida tem sentido? Você se questiona sobre isso? 
A vida é o que é, o real é o que é, nós fazemos parte dele. Acho que, às vezes, esperamos mais do mundo do que o mundo pode nos oferecer. Eu sempre digo isso: um dia em que não houve uma catástrofe é um dia que foi bem razoável de ser encarado. Reduzir as expectativas é um trabalho de sabedoria que vai na contramão dos grandes sonhos que a literatura e a ficção nos convidam a ter. É mais ou menos o contrário do que diz esse pessoal do "você é do tamanho dos seus sonhos" e portanto não há limites para sonhar, e é preciso sonhar alto. Interessante, eu sempre tive da vida uma visão um pouco divergente dessa. Sendo as coisas como elas são, talvez uma reconciliação do nosso espírito com o mundo tal como ele é seja um primeiro passo interessante para diminuir o sofrimento da vida. Talvez pudéssemos pensar numa felicidade desesperançada, numa felicidade de reconciliação com o mundo, numa felicidade de amor pelo mundo como ele é, numa felicidade sem muitas razões para ser feliz, e aí, sim, talvez a vida esteja melhorando. Mas, olha, que fique claro, eu queria que realmente constasse isso: nada do que eu falei tem, para mim, uma presunção de verdade universal. Eu digo apenas o que eu acho.

Mas é isso mesmo que nos interessa.
E tenho o espírito totalmente aberto para ouvir o contrário de tudo o que eu disse, da maneira mais desarmada possível. E é perfeitamente possível, se não quase certo, que eu esteja equivocado em tudo que eu falei.

Não tem problema, queremos ouvi-lo.
Mas ainda assim eu queria que constasse isso nesta entrevista. Acho que é uma lição de tolerância interessante em um mundo no qual todo mundo acha que é o dono da razão e que qualquer opinião discordante é maligna e deve ser abatida a tiros. Eu, pessoalmente, me encanto quando discordam de mim, quando demonstram que não tenho razão. Eu me encho de gratidão.

Falando em divergências e em abater a tiros, nas redes sociais se vê muito dessa intolerância.
Nas redes sociais e fora delas também. Acho que há um espírito de animosidade que perpassa as relações sociais em todos os seus segmentos.

A que você atribui isso? 
Ah, não sei. Acho que é outro especialista que tem de responder. Não sei o porquê. Tenho essa sensação. E às vezes pode ser só uma sensação. Haverá quem diga que, no passado, era tudo muito mais violento e houve muito mais guerra e muito mais conflito do que hoje, e é possível também que tenham razão. Mas eu, pelo menos nos últimos 50 anos que estou vivendo, acho que a coisa está mais crispada do que já esteve em outros tempos.

As redes sociais estão nos deixando melhores ou piores? Ou apenas mostrando comportamentos que antes não tinham tanta visibilidade?
Não consigo atribuir valor. Acho que é o que é. É difícil agora refletir como se não houvesse. Faz parte da vida, faz parte da realidade, e as relações de certa maneira agora estão à mercê desse tipo de recurso técnico que aproxima mas também afasta, que aproxima mas também superficializa. Enfim, é o que é. Não faço juízo de valor aqui, não.

Você fala muito sobre fazer escolhas na vida. É algo complicado, né? 
Muito. Toda escolha implica uma competência que é a competência de atribuir valor às possibilidades dentre as quais se fará a escolha. Toda escolha é a identificação da alternativa de maior valor. Toda vez que você pensa em valor, você evidentemente esbarra em um problema de referencial. Se você tiver múltiplos referenciais, você corre o risco de, mudando o referencial, ter valores diferentes para a mesma coisa. Se você tiver um referencial único, você corre o risco de uma visão dogmática do mundo. Tudo isso é muito difícil. Quanto maior for a lucidez a respeito dessa complexidade, maior será a angústia na hora de tomar uma decisão, fazer uma escolha e jogar no lixo coisas que possam ter valor também. O grande problema é que raramente a escolha é entre o bem e o mal, porque aí não há escolha. Toda escolha é escolha na medida em que é ou entre duas coisas boas, ou entre duas coisas ruins, para identificação da menos ruim. É exatamente por isso que toda escolha, quando é efetivamente uma escolha, gera, por parte de quem tem que escolher, uma dúvida, uma confusão. Por essas e por outras, muita gente se vê bem confortável quando abdica de escolher, terceiriza a atividade deliberativa.

Mas não escolher também é uma escolha.
Sim. Mesmo nesse caso há uma escolha, mas digamos que há uma facilitação. Você toma uma decisão, é verdade. Imagine, por exemplo, que você resolva seguir um programa pré-estabelecido de vida boa. A única dúvida foi escolher ou não o programa. A partir daí, você abdica de toda escolha e segue um protocolo que lhe é proposto de fora, por outra pessoa. Evidentemente que isso tira de você o peso de ter que decidir, a cada instante, para que lado vai. Uma outra solução que acaba diminuindo esse ônus deliberativo são os hábitos. É claro que todo hábito, no seu início, envolveu alguma escolha, alguma deliberação racional, mas, uma vez que o hábito vira hábito, ele o dispensa de tomar decisões. E isso é um facilitador da vida. A gente se protege demais da nossa liberdade para poder conseguir viver.

É difícil viver a vida que realmente se quer viver, ser a pessoa que realmente se quer ser?
A vida é difícil em qualquer circunstância. Em outras palavras, quando consideramos nossas dores e nossas cruzes pesadas demais e mais pesadas do que as da média, é só porque ignoramos o que realmente sentem as pessoas à nossa volta. Se tem uma coisa que é bem distribuída no mundo é o sofrimento.

Pensar sempre no sofrimento do outro não é menosprezar ou invalidar o nosso próprio sofrimento? Sempre haverá algo pior.
Quando o sofrimento do outro é acachapante, parece servir de unguento para o nosso. Apesar da pobreza da estratégia, acaba sendo uma solução que encontramos no meio do caminho para poder diminuir nossas dores.

Que sentimento melhor nos define hoje em dia?
No lugar de te responder, eu te diria que, se procurássemos desenvolver uma competência de análise dos próprios afetos, das próprias sensações, das próprias emoções, uma investigação sobre a própria vida afetiva, eu penso que isso seria muito positivo para o resto da trajetória.

Você costuma falar nas grandes lições que o seu pai lhe ensinou. Qual você destacaria agora, entre tantas?
Lamentar-se um pouco menos, esperar um pouco menos e amar um pouco mais. Queixar-se o menos possível, esperar o menos possível e abrir-se o mais possível para o mundo como ele é.
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Reportagem Por: Larissa Roso 15/09/2017 -
Foto: Anderson Fetter / Agencia RBS   
Fonte:  http://zh.clicrbs.com.br/rs/vida-e-estilo/noticia/2017/09/clovis-de-barros-filho-estamos-vivendo-uma-erosao-da-moral-9900803.html

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