O filósofo, jornalista, escritor e um dos palestrantes mais requisitados do país esteve em Porto Alegre e conversou com ZH sobre ética, felicidade e as necessidades que temos de fazer escolhas
Ao
dar uma roupagem leve a conceitos e autores densos, o paulista Clóvis de
Barros Filho, 51 anos, transforma a filosofia em um tema pop e
descontraído. Palestrante super-requisitado no Brasil e no Exterior –
sua agenda comporta até 25 conferências por mês –, o jornalista,
bacharel em Direito e ex-professor da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo (USP) esteve em Porto Alegre como convidado do
14º Congresso do Ensino Privado Gaúcho, realizado pelo Sindicato do
Ensino Privado (Sinepe/RS). Em uma performance que prendeu a atenção da
plateia do Centro de Eventos da PUCRS ao longo de 75 minutos – período
em que ele não consultou qualquer anotação nem tomou um único gole
d’água –, o filósofo falou de ética e moral, temas que estão entre suas
pautas mais frequentes. Confira a entrevista.
Em sua
palestra, você disse que "a ética é a vitória da convivência sobre a
canalhice, e a sociedade está doente quando permite que o canalha
vença". Fale mais sobre isso, por favor.
Se você imaginar
que cada um de nós é dotado de uma certa energia para viver e que essa
energia pode subir, e é o que nós chamamos de "alegria", ganho de
potência de agir, e ela pode descer, o que nós chamamos de "tristeza", é
normal que o canalha busque de qualquer jeito a sua alegria. Só que
agindo como age, ele entristece muita gente. É como, por exemplo, quem
para em fila dupla ou urina na piscina. Na hora em que você faz a
aritmética dos ganhos e das perdas, das alegrias e das tristezas, das
potências e das impotências, em larga escala, você constata que, onde o
canalha triunfa, sistematicamente há grandes contingentes de pessoas
prejudicadas e entristecidas – e é isso que faz uma sociedade ser
doente. A ética parte de uma primazia: a busca de uma convivência
harmônica, que dá a todos que interagem iguais chances de felicidade. É
uma coisa que vale mais do que o ganho individual buscado por esse ou
aquele membro desse coletivo. Deve haver um alinhamento entre a maneira
como você vai buscar o que você deseja e aquilo que é entendido por
todos como aceitável dentro daquele espaço de convivência. Por isso a
ética é a vitória da convivência sobre a canalhice.
O tema da sua conferência foi "Por um País Mais Ético". Em termos de moral, você disse que estamos longe de um padrão ideal.
Estamos
assistindo a uma erosão da moral. Cada vez mais, precisamos de
repressão para garantir condutas de convívio – como o uso disseminado de
câmeras de segurança –, quando, na verdade, se a moral bastasse, nada
disso seria necessário. É impressionante como, a cada dia que passa,
estamos mais submetidos à fiscalização e menos sobra espaço para o nosso
discernimento, aquela liberdade de saber o que é certo e o que é
errado. Isso empobrece a dignidade humana. Ver o seu bom comportamento
como resultado de um constrangimento externo é apequenador da sua
dignidade. Nós nos acostumamos a uma mediocridade moral.
O que mais o inquieta no Brasil atualmente?
O
que mais me inquieta é o jovem que começa a ter lucidez sobre a sua
vida e sobre a sociedade e sequer cogita a possibilidade de uma formação
moral adequada para que ele mesmo possa discernir sobre a melhor
maneira de agir. As pessoas crescem acreditando que só se obtém
comportamentos justos dos outros na base da repressão. Isso é o que mais
me inquieta, como o fato de a diretora de escola dizer: "Vocês devem se
comportar porque tem uma câmera fiscalizando". Ela passou por cima da
possibilidade daquela criança ter uma formação suficiente para agir
adequadamente sem nenhum tipo de repressão.
Você disse que
"nos acostumamos a conviver com os excrementos morais dos nossos
concidadãos". Toleramos a falta de ética e a transgressão em diferentes
níveis e lugares, todos os dias. Qual é o custo disso para alguém que
cresce em um ambiente contaminado?
É não vislumbrar a
possibilidade de ser diferente – esse é o principal custo. É você
acreditar que tem de ser assim, acreditar que não pode ser de outro
jeito. A pessoa não tem a chance nem de vislumbrar essa possibilidade,
porque ela, na sua trajetória de vida e de convivência, é massacrada
pela desconfiança. Se você falar na possibilidade da confiança, você
desperta o riso da pessoa, como que dizendo: "Esse é um louco, ele é de
outro planeta". Em determinados momentos da vida em sociedade, a
presença da canalhice é tão recorrente que, se você for se insurgir
contra cada agente e cada ação canalha, você corre o risco de ter um
desgaste resultante desse conflito ininterrupto, um desgaste que acaba
exaurindo. Qual é a solução que as pessoas encontram para continuar
vivendo? É fazer vista grossa, fingir que não existe ou, de maneira mais
resignada, é saber que existe mas considerar a sua própria indignação
como insuficiente para fazer frente ao volume de iniciativas canalhas
que o circundam. Aí então você acaba tendo uma espécie de sociedade
anestesiada pela perplexidade diante do sucesso da desonestidade.
Às vezes, só pensar em reagir já cansa, né?
Claro.
No final do dia, não há quem aguente. Ante tantas humilhações, você
peitar cada uma delas dá uma sensação de impotência. Às vezes, não é só
uma sensação, é uma certeza de impotência ante tantas iniciativas
lesivas à convivência.
Você falou há pouco em pessoas
entristecidas. Já o ouvi dizendo que estamos em um mundo
"extraordinariamente competente para entristecer". Essa competência para
o entristecimento lhe parece cada vez mais intensa?
Eu
acho que o real como um todo pode ser bastante lesivo, e isso sempre foi
assim. Mas acho que, de certa maneira, a convivência, sobretudo num
cenário no qual as pessoas só pensam nos próprios ganhos e vantagens, é
uma convivência progressivamente entristecedora. É preciso quase uma
formação psicológica para esse tipo de convivência apequenadora de
potência.
Você diz que a felicidade se resume a instantes, é o aqui e agora. Por quê?
A
felicidade é um atributo da vida onde a vida está, não poderia ser em
nenhum outro lugar. E nesse lugar você tem o imediatismo da consciência
do mundo, tal como ele se apresenta diante de nós, o mundo percebido, e
você tem ao mesmo tempo o que chamamos de passado, que nada mais é do
que o presente quando materializado em memória. E você tem no presente a
presença do futuro, que nada mais é do que o presente que projeta o
devir, que antecipa o que vai acontecer. A felicidade tem de estar
metida aí no meio. Se existe alguma equação de vida feliz, é exatamente
numa temporalidade onde o presente do passado, o presente do presente e o
presente do futuro se articulam de maneira auspiciosa e
potencializadora. E isso se dá de instante a instante. Um novo instante é
uma nova equação, e tudo pode mudar. É uma equação entre aquilo de que
lembramos, aquilo que acontece diante de nossos olhos e aquilo que
esperamos que possa acontecer. Uma equação entre a nostalgia, a
percepção do mundo e a esperança.
A vida tem sentido? Você se questiona sobre isso?
A
vida é o que é, o real é o que é, nós fazemos parte dele. Acho que, às
vezes, esperamos mais do mundo do que o mundo pode nos oferecer. Eu
sempre digo isso: um dia em que não houve uma catástrofe é um dia que
foi bem razoável de ser encarado. Reduzir as expectativas é um trabalho
de sabedoria que vai na contramão dos grandes sonhos que a literatura e a
ficção nos convidam a ter. É mais ou menos o contrário do que diz esse
pessoal do "você é do tamanho dos seus sonhos" e portanto não há limites
para sonhar, e é preciso sonhar alto. Interessante, eu sempre tive da
vida uma visão um pouco divergente dessa. Sendo as coisas como elas são,
talvez uma reconciliação do nosso espírito com o mundo tal como ele é
seja um primeiro passo interessante para diminuir o sofrimento da vida.
Talvez pudéssemos pensar numa felicidade desesperançada, numa felicidade
de reconciliação com o mundo, numa felicidade de amor pelo mundo como
ele é, numa felicidade sem muitas razões para ser feliz, e aí, sim,
talvez a vida esteja melhorando. Mas, olha, que fique claro, eu queria
que realmente constasse isso: nada do que eu falei tem, para mim, uma
presunção de verdade universal. Eu digo apenas o que eu acho.
Mas é isso mesmo que nos interessa.
E
tenho o espírito totalmente aberto para ouvir o contrário de tudo o que
eu disse, da maneira mais desarmada possível. E é perfeitamente
possível, se não quase certo, que eu esteja equivocado em tudo que eu
falei.
Não tem problema, queremos ouvi-lo.
Mas
ainda assim eu queria que constasse isso nesta entrevista. Acho que é
uma lição de tolerância interessante em um mundo no qual todo mundo acha
que é o dono da razão e que qualquer opinião discordante é maligna e
deve ser abatida a tiros. Eu, pessoalmente, me encanto quando discordam
de mim, quando demonstram que não tenho razão. Eu me encho de gratidão.
Falando em divergências e em abater a tiros, nas redes sociais se vê muito dessa intolerância.
Nas
redes sociais e fora delas também. Acho que há um espírito de
animosidade que perpassa as relações sociais em todos os seus segmentos.
A que você atribui isso?
Ah,
não sei. Acho que é outro especialista que tem de responder. Não sei o
porquê. Tenho essa sensação. E às vezes pode ser só uma sensação. Haverá
quem diga que, no passado, era tudo muito mais violento e houve muito
mais guerra e muito mais conflito do que hoje, e é possível também que
tenham razão. Mas eu, pelo menos nos últimos 50 anos que estou vivendo,
acho que a coisa está mais crispada do que já esteve em outros tempos.
As
redes sociais estão nos deixando melhores ou piores? Ou apenas
mostrando comportamentos que antes não tinham tanta visibilidade?
Não
consigo atribuir valor. Acho que é o que é. É difícil agora refletir
como se não houvesse. Faz parte da vida, faz parte da realidade, e as
relações de certa maneira agora estão à mercê desse tipo de recurso
técnico que aproxima mas também afasta, que aproxima mas também
superficializa. Enfim, é o que é. Não faço juízo de valor aqui, não.
Você fala muito sobre fazer escolhas na vida. É algo complicado, né?
Muito.
Toda escolha implica uma competência que é a competência de atribuir
valor às possibilidades dentre as quais se fará a escolha. Toda escolha é
a identificação da alternativa de maior valor. Toda vez que você pensa
em valor, você evidentemente esbarra em um problema de referencial. Se
você tiver múltiplos referenciais, você corre o risco de, mudando o
referencial, ter valores diferentes para a mesma coisa. Se você tiver um
referencial único, você corre o risco de uma visão dogmática do mundo.
Tudo isso é muito difícil. Quanto maior for a lucidez a respeito dessa
complexidade, maior será a angústia na hora de tomar uma decisão, fazer
uma escolha e jogar no lixo coisas que possam ter valor também. O grande
problema é que raramente a escolha é entre o bem e o mal, porque aí não
há escolha. Toda escolha é escolha na medida em que é ou entre duas
coisas boas, ou entre duas coisas ruins, para identificação da menos
ruim. É exatamente por isso que toda escolha, quando é efetivamente uma
escolha, gera, por parte de quem tem que escolher, uma dúvida, uma
confusão. Por essas e por outras, muita gente se vê bem confortável
quando abdica de escolher, terceiriza a atividade deliberativa.
Mas não escolher também é uma escolha.
Sim.
Mesmo nesse caso há uma escolha, mas digamos que há uma facilitação.
Você toma uma decisão, é verdade. Imagine, por exemplo, que você resolva
seguir um programa pré-estabelecido de vida boa. A única dúvida foi
escolher ou não o programa. A partir daí, você abdica de toda escolha e
segue um protocolo que lhe é proposto de fora, por outra pessoa.
Evidentemente que isso tira de você o peso de ter que decidir, a cada
instante, para que lado vai. Uma outra solução que acaba diminuindo esse
ônus deliberativo são os hábitos. É claro que todo hábito, no seu
início, envolveu alguma escolha, alguma deliberação racional, mas, uma
vez que o hábito vira hábito, ele o dispensa de tomar decisões. E isso é
um facilitador da vida. A gente se protege demais da nossa liberdade
para poder conseguir viver.
A vida é difícil em qualquer circunstância. Em outras palavras, quando consideramos nossas dores e nossas cruzes pesadas demais e mais pesadas do que as da média, é só porque ignoramos o que realmente sentem as pessoas à nossa volta. Se tem uma coisa que é bem distribuída no mundo é o sofrimento.
Pensar sempre no sofrimento do outro não é menosprezar ou invalidar o nosso próprio sofrimento? Sempre haverá algo pior.
Quando o sofrimento do outro é acachapante, parece servir de unguento para o nosso. Apesar da pobreza da estratégia, acaba sendo uma solução que encontramos no meio do caminho para poder diminuir nossas dores.
Que sentimento melhor nos define hoje em dia?
No lugar de te responder, eu te diria que, se procurássemos desenvolver uma competência de análise dos próprios afetos, das próprias sensações, das próprias emoções, uma investigação sobre a própria vida afetiva, eu penso que isso seria muito positivo para o resto da trajetória.
Você costuma falar nas grandes lições que o seu pai lhe ensinou. Qual você destacaria agora, entre tantas?
Lamentar-se um pouco menos, esperar um pouco menos e amar um pouco mais. Queixar-se o menos possível, esperar o menos possível e abrir-se o mais possível para o mundo como ele é.
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Reportagem Por: 15/09/2017 -
Foto:
Anderson Fetter / Agencia RBS
Fonte: http://zh.clicrbs.com.br/rs/vida-e-estilo/noticia/2017/09/clovis-de-barros-filho-estamos-vivendo-uma-erosao-da-moral-9900803.html
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