Aos 87 anos, o professor aposentado de filosofia na USP e pesquisador do Cebrap José Arthur Giannotti mantém o gosto pelo debate.
No livro recém-lançado "Os Limites da Política" (ed. Companhia das
Letras), ele e o professor de filosofia da Ufscar Luiz Damon Santos
Moutinho discutem temas como o lugar da democracia no capitalismo
contemporâneo.
Na entrevista, Giannotti comenta aspectos do livro e expõe, com contundência, as suas opiniões sobre a política brasileira.
Amigo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e considerado por
décadas uma das referências intelectuais do PSDB, o professor afirma que
"o partido morreu".
Giannotti tampouco poupa o governo Michel Temer e os partidos da oposição, como o PT e o PSOL.
Para ele, a crise atual da política e do Estado no Brasil é pior que a
de 1964, quando houve o golpe dos militares. "Quem hoje diz ter a
solução para a crise? Ninguém".
*
Folha - Há um trecho do novo livro em que o senhor diz: "Os cidadãos
começam a exercer a cidadania pelo consumo. A política contemporânea tem
que se ocupar dessa tragédia". Como a política poderia levar para um
outro caminho?
Giannotti - Não digo que exista outro caminho. Digo no livro como a política pode ou deve pensar nesse conflito e como conviver com ele. Se não há uma solução no nosso horizonte, como vamos conviver com o capital?
Giannotti - Não digo que exista outro caminho. Digo no livro como a política pode ou deve pensar nesse conflito e como conviver com ele. Se não há uma solução no nosso horizonte, como vamos conviver com o capital?
A primeira obrigação da esquerda deveria ser a compreensão do que é o capital moderno. Ela entende? Não. No Brasil e nos demais países da América Latina, o que nós tivemos foi populismo, isto é, pensar num capital que existia há 50 anos e querer distribuir aquilo que não poderia. Outro dia vi o programa do PSOL e pensei que estivesse no século 19.
Por quê?
Porque eles pensam a revolução e o capital nos termos do século 19. A esquerda precisa pensar o que é o capital, e o capital moderno é o do conhecimento, é o que produz a base para uma diferença de tecnologia. É assim que os EUA estão saindo da crise.
Porque eles pensam a revolução e o capital nos termos do século 19. A esquerda precisa pensar o que é o capital, e o capital moderno é o do conhecimento, é o que produz a base para uma diferença de tecnologia. É assim que os EUA estão saindo da crise.
No caso do Brasil, a situação é apavorante porque o populismo destruiu
as condições para que tivéssemos grandes avanços nas pesquisas. O
populismo foi, sob esse ponto de vista, altamente nocivo. Nós saímos da
crise, mas não saímos do século 20.
O que quer dizer com "não saímos do século 20"?
Não temos estrutura para produzir a tecnologia necessária para o capitalismo moderno.
Não temos estrutura para produzir a tecnologia necessária para o capitalismo moderno.
Quando fala em populismo no Brasil, refere-se a quem?
Ao caso da Dilma, que é extraordinário. Ela pensou que podia, por meio do BNDES, criar um novo capitalismo, com novos atores, com jurinhos bonitinhos... Só que ela gastou muito mais com isso do que com o Bolsa-Família. E ela mesmo se impichou porque não tinha mais condições de operar.
Ao caso da Dilma, que é extraordinário. Ela pensou que podia, por meio do BNDES, criar um novo capitalismo, com novos atores, com jurinhos bonitinhos... Só que ela gastou muito mais com isso do que com o Bolsa-Família. E ela mesmo se impichou porque não tinha mais condições de operar.
Ela terminou o primeiro mandato, promoveu-se como continuadora de um
processo e, em seguida, negou esse processo ao nomear o Joaquim Levy
para o ministério da Fazenda. Não me esqueço que, logo depois, uma das
vozes do PT, o André Singer, falou em "estelionato eleitoral" na Folha.
Como o senhor avalia o governo Temer?
Apareceu como um governo querendo resolver impasses do capitalismo brasileiro. Não esqueça que a equipe econômica do Temer é a aquela que o Lula queria impor à Dilma, e ela que não quis. Era o Henrique Meirelles [ministro da Fazenda]. Só que esse projeto econômico não está sendo realizado, por isso não sei o que vai acontecer.
Apareceu como um governo querendo resolver impasses do capitalismo brasileiro. Não esqueça que a equipe econômica do Temer é a aquela que o Lula queria impor à Dilma, e ela que não quis. Era o Henrique Meirelles [ministro da Fazenda]. Só que esse projeto econômico não está sendo realizado, por isso não sei o que vai acontecer.
Além disso, temos no Brasil uma crise de Estado. Lembre-se da definição
do [alemão Max] Weber, para quem o Estado tem o monopólio do poder. Nós
não temos o monopólio do poder hoje, veja o Rio. É, portanto, uma
profunda crise de Estado.
O governo Temer está tentando resolver isso? Por enquanto, não
conseguiu. E também não resolveremos o problema com esse Congresso, que
foi atravessado pela corrupção.
No Brasil, a corrupção passou a ter, em alguns momentos da história,
como o atual, uma função política. Se não fosse assim, não teria nascido
a Lava Jato, que é um processo jurídico-político.
Qual é a sua opinião sobre a Lava Jato?
Às vezes, vejo exageros, às vezes, algumas loucurinhas, mas, de modo geral, é formidável. É um processo de renovação da política brasileira. Agora, pode dar certo ou não.
Às vezes, vejo exageros, às vezes, algumas loucurinhas, mas, de modo geral, é formidável. É um processo de renovação da política brasileira. Agora, pode dar certo ou não.
A Operação Mãos Limpas, na Itália, não deu certo porque os parlamentares
se uniram e liquidaram o movimento. No Brasil, eles conheciam o caso
italiano e têm sido mais inteligentes. Em vez de metralhar todo o
sistema político, metralharam quem estava no governo ou próximo dele.
Caso o ex-presidente Lula seja absolvido no tribunal de segunda instância, ele tem chance de voltar a ser eleito?
Não sei. Conheço bem o Lula, não esqueça que fui um dos fundadores do PT. E saí logo (risos). O Lula é um gênio político, é absolutamente extraordinário. Até que ponto ele foi tomado pela corrupção a Justiça vai dizer. As pesquisas mostram que o Lula tem chance, mas, se entrar, vai haver muito protesto.
Não sei. Conheço bem o Lula, não esqueça que fui um dos fundadores do PT. E saí logo (risos). O Lula é um gênio político, é absolutamente extraordinário. Até que ponto ele foi tomado pela corrupção a Justiça vai dizer. As pesquisas mostram que o Lula tem chance, mas, se entrar, vai haver muito protesto.
Além disso, Lula não tem ecos dentro do próprio PT. Ele só consegue
botar no lugar dele postes, e postes que são pouco iluminadores.
Um dos nomes que despontam é o do deputado federal Jair Bolsonaro (PEN). O que o senhor pensa sobre ele?
Eu não penso, eu me jogo da ponte [risos]. No Brasil, costumava haver o seguinte: o país caía em uma crise, e os militares entravam [no poder]. Isso, felizmente, não aconteceu desta vez. Por outro lado, sempre existem os substitutos dos militares, e um deles é o Bolsonaro. Seria um desastre.
Eu não penso, eu me jogo da ponte [risos]. No Brasil, costumava haver o seguinte: o país caía em uma crise, e os militares entravam [no poder]. Isso, felizmente, não aconteceu desta vez. Por outro lado, sempre existem os substitutos dos militares, e um deles é o Bolsonaro. Seria um desastre.
Se ele vencer a eleição, nós, que já não saímos do século 20, daríamos um passo atrás na democracia.
Há essa movimentação no Congresso para uma reforma política. Qual o modelo funcionaria melhor?
O que mais se aproxima dos meus ideais é o distrital misto. Só que ele pode se tornar uma sacanagem na maneira como se desenham os distritos.
O que mais se aproxima dos meus ideais é o distrital misto. Só que ele pode se tornar uma sacanagem na maneira como se desenham os distritos.
Aliás, fiquei puto com o editorial da Folha
sobre o teto do funcionalismo público. De modo geral, é mesmo um
escândalo. Mas há certas situações em que o teto não pode ficar como
está.
Falo das universidades paulistas. Se for mantido o teto dos professores
universitários no limite do salário do governador, que é um político e
ganha R$ 21 mil, criam-se situações como a de São Carlos, onde se faz
pesquisa.
Você sai da USP, atravessa a ponte e chega à Ufscar [Federal de São
Carlos], onde o teto é de um ministro do STF [R$ 33 mil]. Como deixar
que o pesquisador da USP ganhe menos que o da federal? Aí ele acaba
trocando uma pela outra. Ou acaba indo embora, deixa o país.
Essa é uma situação séria. Se quisermos ser um país moderno, precisamos ter uma pesquisa forte e abundante.
O senhor nasceu em 1930 e entrou na filosofia da USP em 1950...
Oficialmente, sim. Mas eu fiz um curso de letras clássicas como ouvinte registrado antes, em 1948.
Oficialmente, sim. Mas eu fiz um curso de letras clássicas como ouvinte registrado antes, em 1948.
Por tudo o que o senhor já viveu, há algum momento da história recente do Brasil que possa comparar com os dias de hoje?
Não. A nossa crise é pior que a de 1964.
Não. A nossa crise é pior que a de 1964.
Por quê?
Lá tinha a merda dos militares. Eles mataram gente etc., mas botaram ordem. Agora nem isso nós temos. Não quero a volta dos milicos não [enfático]. Mas hoje não temos processos de resolução da crise. Isso é um problema muito sério. Quem diz ter a solução para a crise? Ninguém.
Lá tinha a merda dos militares. Eles mataram gente etc., mas botaram ordem. Agora nem isso nós temos. Não quero a volta dos milicos não [enfático]. Mas hoje não temos processos de resolução da crise. Isso é um problema muito sério. Quem diz ter a solução para a crise? Ninguém.
O senhor acredita que nossa situação hoje é pior que a de 1964 mesmo
considerando o fato de vivermos numa democracia, em que temos a opção de
mudar o governo?
Veja bem, tudo no Brasil é formal. Vivemos numa democracia formal. A população se manifesta hoje? Não, isso só aconteceu em 2013, quando foi para as ruas. As eleições são falsificadas pelos rios de dinheiro, pela propaganda nas TVs. Isso é melhor do que o populismo na Venezuela, mas é uma boa democracia? Não é.
Veja bem, tudo no Brasil é formal. Vivemos numa democracia formal. A população se manifesta hoje? Não, isso só aconteceu em 2013, quando foi para as ruas. As eleições são falsificadas pelos rios de dinheiro, pela propaganda nas TVs. Isso é melhor do que o populismo na Venezuela, mas é uma boa democracia? Não é.
O senhor foi considerado por muitos anos uma referência intelectual dentro do PSDB...
[ele interrompe] Esse é um problema deles, não meu.
[ele interrompe] Esse é um problema deles, não meu.
Sou muito amigo do Fernando Henrique, mas no governo dele, fui eleito
[ele enfatiza a palavra 'eleito'] para o Conselho Nacional de Educação. E
fiquei pouco tempo. Briguei e fui embora.
Não quero participar de governo, não é minha função. Ao integrá-lo, eu deixo de ser o crítico que quero ser.
Como avalia esse impasse do PSDB de ficar ou não no governo Temer?
O PSDB morreu. Quer que eu fale de defuntos? O PSDB não é mais um partido. Funcionava como um partido quando as decisões eram tomadas em bons restaurantes e todos estavam de acordo. Agora isso não há mais. E não existe alguém como Lula para aglutinar todos.
O PSDB morreu. Quer que eu fale de defuntos? O PSDB não é mais um partido. Funcionava como um partido quando as decisões eram tomadas em bons restaurantes e todos estavam de acordo. Agora isso não há mais. E não existe alguém como Lula para aglutinar todos.
Quanto a divulgação do áudio do Aécio Neves com o Joesley Batista prejudicou o partido?
Você me pede uma medida do desgaste? Não sei, a medida será o voto. Foi escandaloso, mas não sei qual será o efeito nas eleições.
Você me pede uma medida do desgaste? Não sei, a medida será o voto. Foi escandaloso, mas não sei qual será o efeito nas eleições.
Há um trecho do novo livro em que o senhor critica situações "quando a
decisão política se transforma na gestão de uma empresa". O senhor se
referia ao prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB)?
Não, quando escrevi, o Doria não existia [escreveu antes da candidatura de Doria à prefeitura]. Além disso, eu não estaria falando dele de jeito nenhum porque gestor de empresa ele não é. Ele é um bom comunicador, que se veste de gari e assim por diante. Até agora não vi ele provar ser um grande gestor.
Não, quando escrevi, o Doria não existia [escreveu antes da candidatura de Doria à prefeitura]. Além disso, eu não estaria falando dele de jeito nenhum porque gestor de empresa ele não é. Ele é um bom comunicador, que se veste de gari e assim por diante. Até agora não vi ele provar ser um grande gestor.
Qual é o seu próximo projeto?
Estou planejando um livro sobre o que aconteceu na filosofia do século 20. Houve dois pontos de ruptura, Heidegger [1889-1976] e Wittgenstein [1889-1951], ambos mal compreendidos, que botaram em xeque a ideia de razão. A partir dos anos 60, houve um recuo na filosofia.
Estou planejando um livro sobre o que aconteceu na filosofia do século 20. Houve dois pontos de ruptura, Heidegger [1889-1976] e Wittgenstein [1889-1951], ambos mal compreendidos, que botaram em xeque a ideia de razão. A partir dos anos 60, houve um recuo na filosofia.
*
O livro recém-lançado "Os Limites da Política – uma Divergência" nasceu
das discordâncias de dois professores de filosofia. Discordâncias
expostas com cordialidade, o que tem se tornado raro no debate público
no Brasil.
Luiz Damon Santos Moutinho, professor da Ufscar (Universidade Federal de
São Carlos), ficou estimulado com a leitura do texto "A Política no
Limite do Pensar", do colega José Arthur Giannotti.
Damon escreveu um ensaio em resposta a Giannotti e enviou a ele por
e-mail. Vieram tréplicas. E eles perceberam que tinham um livro em mãos.
A obra aborda pontos como a situação da democracia em meio a uma economia que gera desigualdades crescentes.
"Giannotti sai em defesa de uma política que nega a política", critica Damon. O professor da USP discorda da avaliação.
No campo das ideias, Damon situa-se à esquerda de Giannotti. Ambos concordam.
OS LIMITES DA POLÍTICA - UMA DIVERGÊNCIA
AUTORES José Arthur Giannotti e Luiz Damon Santos Moutinho
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 45 (164 págs.)
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FONTE: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/09/1915556-o-psdb-morreu-nao-e-mais-um-partido-diz-giannotti.shtml
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