António Lobo Antunes*
Susa Monteiro
Vi-o partir para a mata, vi-o regressar da mata com a sua tropa e nunca vi tanta veneração por um chefe como aquela que os homens tinham por ele. Veneração, respeito, amor. E um dom natural para as relações humanas. Jamais o vi ler ou escrever fosse o que fosse. Mas tinha uma capacidade natural para entender os outros e, apesar de duro, era extremamente afetuoso
No
Leste, na fronteira com a Zâmbia, nas Terras do Fim do Mundo, encontrei
o mais extraordinário militar que conheci na vida: António Miúdo
Catolo, o comandante dos Flechas, que faziam a guerra ao nosso lado. Uma
ocasião íamos atrás do Comissário Sangue do Povo, um dos mais
prestigiados nomes do MPLA, cujas pegadas se reconheciam pelas botas que
usava. E dessa maneira o seguimos até à margem do rio, onde as suas
marcas acabavam. A ideia da tropa era que ele tinha atravessado o rio e
continuado a partir da outra margem.
Ficámos a olhar as pegadas desiludidos, até que António Miúdo Catolo disse
– Ele não atravessou o rio. Descalçou-se, voltou para trás às arrecuas e continua deste lado.
E
mostrou-nos que os calcanhares estavam, na areia, mais fundos que as
biqueiras o que apenas se consegue caminhando dessa forma. E isso
permitiu continuar no rastro dele. António Miúdo Catolo era
excepcionalmente inteligente, excepcionalmente corajoso e
excepcionalmente bem disposto. Possuía uma autoridade natural única e,
além disso tudo, era meu amigo e meu compadre. Miúdo Malassa, Miúdo
Machai, os outros comandantes, tinham por ele um respeito total e uma
confiança sem limites. Mesmo a população, ao cruzar-se com António Miúdo
Catolo, não lhe dizia
– Môio
que significa olá, dizia-lhe
– Muata
que significa chefe. Punham as mãos e diziam
– Muata
numa veneração total. Até o Soba Caputo, um Soba com muito prestígio, o tratava por
– Muata
e
a propósito do Soba Caputo ele tinha um filho chamado Sindicato,
Sindicato Caputo. Sindicato, por sua vez, teve um filho também e veio
convidar-me para padrinho. Perguntei-lhe
– Como se chama o seu filho?
e o Sindicato respondeu-me, com orgulho
– Crítico
e
portanto tenho um afilhado que se chama Crítico. Voltando ao António,
que era alto, magro e de enorme bigode, eu sentia por ele uma grande
consideração e uma grande amizade. Tratava-me por Senhores Doutores
(o plural era uma honra para mim)
e
fui também padrinho de uma filha sua. Às vezes convidava-me para jantar
na sua casa, num quimbo como os outros, uma moamba feita pela Domingas,
sua mulher. Eram sempre jantares solenes: o António e eu sentávamos-nos
numa esteira, a Domingas, a Senhora da Casa, trazia-nos uma bacia com
água, um sabonete e uma toalha para lavarmos as mãos, este sinal de
amizade era comovente, e a seguir oferecia-nos as melhores moambas de
galinha que alguma vez comi na vida. Claro que ela não se sentava
connosco porque os homens comem sozinhos, mas sentíamo-la por ali,
atenta e educadíssima. Era uma rapariga bonita e simpática e tinham uma
relação muito forte. Sempre que falava na Domingas o António
iluminava-se. Vi-o partir para a mata, vi-o regressar da mata com a sua
tropa e nunca vi tanta veneração por um chefe como aquela que os homens
tinham por ele. Veneração, respeito, amor. E um dom natural para as
relações humanas. Jamais o vi ler ou escrever fosse o que fosse. Mas
tinha uma capacidade natural para entender os outros e, apesar de duro,
era extremamente afetuoso. As pessoas são muito diferentes do que
parecem e demoramos muito tempo a conhecê-las. Sucedeu-me isso, por
exemplo, com Ernesto Melo Antunes. Fui estúpido: demorei a compreender a
grandeza do seu coração, demorei ainda mais tempo a compreender a sua
bondade. Era duro e exigente e acabámos a gostar tanto um do outro.
Nunca me esquecerei de quando o primeiro rapaz dele desapareceu.
Olhou-me em silêncio um ror de tempo até que disse baixinho
– Tinha jurado que os levava a todos e as suas pálpebras estavam diferentes. Na véspera ou antevéspera de partir disse-me
– Acordei esta noite todo molhado. Não me deixes morrer sem dignidade.
E
lá fui, atrás do caixão, com uma filha sua em cada braço. Era, com
António Ramalho Eanes, o homem que conheci mais capaz de um amor viril
por um amigo. E sinto-me abençoado por os ter conhecido. O Ernesto, o
António e o António Miúdo Catolo foram para mim, são para mim uma
trindade única de rectidão, honestidade e valor. Meu Deus a vontade que
tenho de ir de novo às Terras do Fim do Mundo e abraçar o meu compadre
António Miúdo Catolo, voltar a passear com ele, voltar a ouvi-lo,
voltarmos a rir-nos. É que não é muito frequente, na nossa vida,
encontrar um Homem, ter tido o imenso privilégio de encontrar um Homem.
Eu que pouco valho ao pé deles. É que felizmente há pessoas que nos
ajudam a erguermo-nos sobre as patas de trás. E estes três, que vivem e
viverão para sempre em mim, conseguiram-no.
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* Escritor e psiquiatra português.
(Crónica publicada na VISÃO 1279, de 7 de setembro de 2017)
Fonte: http://visao.sapo.pt/opiniao/2017-09-14-Antonio-Miudo-Catolo
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