quarta-feira, 20 de setembro de 2017

António Miúdo Catolo

António Lobo Antunes*

Susa Monteiro

Vi-o partir para a mata, vi-o regressar da mata com a sua tropa e nunca vi tanta veneração por um chefe como aquela que os homens tinham por ele. Veneração, respeito, amor. E um dom natural para as relações humanas. Jamais o vi ler ou escrever fosse o que fosse. Mas tinha uma capacidade natural para entender os outros e, apesar de duro, era extremamente afetuoso

No Leste, na fronteira com a Zâmbia, nas Terras do Fim do Mundo, encontrei o mais extraordinário militar que conheci na vida: António Miúdo Catolo, o comandante dos Flechas, que faziam a guerra ao nosso lado. Uma ocasião íamos atrás do Comissário Sangue do Povo, um dos mais prestigiados nomes do MPLA, cujas pegadas se reconheciam pelas botas que usava. E dessa maneira o seguimos até à margem do rio, onde as suas marcas acabavam. A ideia da tropa era que ele tinha atravessado o rio e continuado a partir da outra margem.

Ficámos a olhar as pegadas desiludidos, até que António Miúdo Catolo disse

– Ele não atravessou o rio. Descalçou-se, voltou para trás às arrecuas e continua deste lado.
E mostrou-nos que os calcanhares estavam, na areia, mais fundos que as biqueiras o que apenas se consegue caminhando dessa forma. E isso permitiu continuar no rastro dele. António Miúdo Catolo era excepcionalmente inteligente, excepcionalmente corajoso e excepcionalmente bem disposto. Possuía uma autoridade natural única e, além disso tudo, era meu amigo e meu compadre. Miúdo Malassa, Miúdo Machai, os outros comandantes, tinham por ele um respeito total e uma confiança sem limites. Mesmo a população, ao cruzar-se com António Miúdo Catolo, não lhe dizia
– Môio
que significa olá, dizia-lhe
– Muata
que significa chefe. Punham as mãos e diziam
– Muata
numa veneração total. Até o Soba Caputo, um Soba com muito prestígio, o tratava por
– Muata
e a propósito do Soba Caputo ele tinha um filho chamado Sindicato, Sindicato Caputo. Sindicato, por sua vez, teve um filho também e veio convidar-me para padrinho. Perguntei-lhe
– Como se chama o seu filho?
e o Sindicato respondeu-me, com orgulho
– Crítico
e portanto tenho um afilhado que se chama Crítico. Voltando ao António, que era alto, magro e de enorme bigode, eu sentia por ele uma grande consideração e uma grande amizade. Tratava-me por Senhores Doutores

(o plural era uma honra para mim)

e fui também padrinho de uma filha sua. Às vezes convidava-me para jantar na sua casa, num quimbo como os outros, uma moamba feita pela Domingas, sua mulher. Eram sempre jantares solenes: o António e eu sentávamos-nos numa esteira, a Domingas, a Senhora da Casa, trazia-nos uma bacia com água, um sabonete e uma toalha para lavarmos as mãos, este sinal de amizade era comovente, e a seguir oferecia-nos as melhores moambas de galinha que alguma vez comi na vida. Claro que ela não se sentava connosco porque os homens comem sozinhos, mas sentíamo-la por ali, atenta e educadíssima. Era uma rapariga bonita e simpática e tinham uma relação muito forte. Sempre que falava na Domingas o António iluminava-se. Vi-o partir para a mata, vi-o regressar da mata com a sua tropa e nunca vi tanta veneração por um chefe como aquela que os homens tinham por ele. Veneração, respeito, amor. E um dom natural para as relações humanas. Jamais o vi ler ou escrever fosse o que fosse. Mas tinha uma capacidade natural para entender os outros e, apesar de duro, era extremamente afetuoso. As pessoas são muito diferentes do que parecem e demoramos muito tempo a conhecê-las. Sucedeu-me isso, por exemplo, com Ernesto Melo Antunes. Fui estúpido: demorei a compreender a grandeza do seu coração, demorei ainda mais tempo a compreender a sua bondade. Era duro e exigente e acabámos a gostar tanto um do outro. Nunca me esquecerei de quando o primeiro rapaz dele desapareceu. Olhou-me em silêncio um ror de tempo até que disse baixinho

– Tinha jurado que os levava a todos e as suas pálpebras estavam diferentes. Na véspera ou antevéspera de partir disse-me

– Acordei esta noite todo molhado. Não me deixes morrer sem dignidade.

E lá fui, atrás do caixão, com uma filha sua em cada braço. Era, com António Ramalho Eanes, o homem que conheci mais capaz de um amor viril por um amigo. E sinto-me abençoado por os ter conhecido. O Ernesto, o António e o António Miúdo Catolo foram para mim, são para mim uma trindade única de rectidão, honestidade e valor. Meu Deus a vontade que tenho de ir de novo às Terras do Fim do Mundo e abraçar o meu compadre António Miúdo Catolo, voltar a passear com ele, voltar a ouvi-lo, voltarmos a rir-nos. É que não é muito frequente, na nossa vida, encontrar um Homem, ter tido o imenso privilégio de encontrar um Homem. Eu que pouco valho ao pé deles. É que felizmente há pessoas que nos ajudam a erguermo-nos sobre as patas de trás. E estes três, que vivem e viverão para sempre em mim, conseguiram-no. 
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* Escritor e psiquiatra português. 
(Crónica publicada na VISÃO 1279, de 7 de setembro de 2017)
Fonte:  http://visao.sapo.pt/opiniao/2017-09-14-Antonio-Miudo-Catolo

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