Paulo Tunhas*
Age-se como se cada um fosse como um camaleão, pronto a se
metamorfosear naquilo a que aspira. Podemos descer na escala dos seres
até aos animais ou tornarmo-nos divinos, de acordo com a nossa vontade
É verdade que ainda me surpreendo de vez em quando. Mas o
sentimento mais recorrente, desde há algum tempo, é mesmo o tédio.
Estou-me a referir aos furores legislativos em matérias que têm a ver
com o que dantes se via como vida privada, nomeadamente com a
sexualidade. Segundo li, os maiores de dezasseis anos poderão em breve
escolher em Portugal qual o seu “género”, e em Espanha o Podemos
reivindica naturalmente maior precocidade: os doze anos. E concebem-se
penas pesadas para os pais que se oponham a tais decisões da sua prole.
O tédio tem certamente a ver com a frequência com que estas questões
são apresentadas no chamado espaço público (a repetição, salvo para os
maníacos, afasta a curiosidade) e com o desinteresse político que me
sugerem. No que diz respeito ao essencial, a complexidade da psique
humana em matéria de sexualidade, Freud, há mais de um século, disse o
que havia para dizer, e é muito curioso que, sinal dos tempos, o seu
nome se veja arredado de qualquer discussão. Não é só ignorância: Freud,
para quem se der ao trabalho de o ler, continua a inquietar. Para mais,
e continuando no essencial, a vida dos outros é a vida dos outros e
quanto menos nos metermos nela, pretendendo dirigi-la, melhor. Mas, é
claro, a questão que hoje é discutida pouco se ocupa destas coisas. Mais
uma vez sinal dos tempos, ela centra-se por inteiro na legislação. A
legislação tomou todo o espaço do essencial e a complexidade da psique
não é para aqui chamada. O inconsciente, para voltar a Freud, não existe
no quadro legal. A única coisa que interessa é o modo como o Estado nos
pode obrigar à liberdade concebida segundo as modas quadriculadas do
dia.
Francisco José Viegas, discutindo brevemente esta questão ontem num artigo
do Correio da Manhã, citou o escritor inglês Martin Amis: “Pessoas que
querem mudar a natureza humana – é isso o totalitarismo”. A frase toca
sem dúvida em algo de importante, e algo que tem uma história que vem de
há muito atrás, no início nada tendo a ver com o Estado, totalitário ou
outro: a plasticidade do ser humano. Num escrito célebre, publicado em
1480, o humanista italiano Giovanni Pico della Mirandola afirmou a
ilimitação do indivíduo. Deus – ele chamava-lhe: “o óptimo artífice” –
fez com que os homens tivessem em si algo de todas as outras criaturas,
de modo a nenhuma limitação os constranger. Mais: cada ser humano decide
aquilo que é, cria a sua maneira particular de ser, nascer é
exactamente poder ser aquilo que se quer. Cada um é assim como um
camaleão, pronto a se metamorfosear naquilo a que aspira. Podemos descer
na escala dos seres até aos animais ou tornarmo-nos divinos, de acordo
com a nossa vontade. O ser humano não se encontra preso a nenhum lugar
específico.
Pico não pensava certamente nas matérias que hoje ocupam os
legisladores, mas a questão da plasticidade dos seres humanos estava no
centro das suas preocupações. No entanto, essa plasticidade era para ele
sinal de uma mobilidade cósmica dos seres humanos, que correspondia
efectivamente a um gesto de liberdade essencial. A coisa no entanto muda
com o início do século XIX. Cada um à sua maneira, Hegel, Auguste Comte
e Marx desenvolveram filosofias que enquadraram essa plasticidade da
natureza humana no contexto de teorias que apontavam, embora com óbvias e
significativas diferenças, para a necessidade de uma evolução (ou, se
se quiser, de um progresso) orientada para um fim. Os modos de ser
humano mudariam necessariamente de acordo com uma sucessão mais ou menos
rígida de etapas com vista à realização plena das suas possibilidades.
Essa visão das coisas encontra-se ainda, de uma maneira ou outra,
presente entre nós. O exemplo mais notório, embora não o único, é o
discurso do marxismo ordodoxo do PC (lembram-se do “homem novo
socialista”?). No entanto, sensivelmente a partir dos anos oitenta do
século passado, uma doutrina algo equívoca mas com indiscutível sucesso
mediático, o chamado “pós-modernismo”, proclamou, pela voz de um dos
seus teóricos mais eminentes, o filósofo francês Jean-François Lyotard, o
fim das “grandes narrativas”. Significava isso, entre outras coisas,
que as teorias da história teleologicamente orientadas (isto é,
concebidas a partir da ideia de um fim, previsto desde o início, que
haveria necessariamente de se realizar: o comunismo, por exemplo) se
encontravam ultrapassadas. Reinaria antes uma nova pluralidade, que não
importa aqui detalhar.
O que interessa salientar é que, nessa dissolução da ideia de um fim
único da história e na pluralidade conquistada de fins diversos,
permaneceu, na prática, a ideia da necessidade da realização de cada um
desses fins. As tais “grandes narrativas” bem podem ter colapsado,
embora tal seja matéria para discussão, mas o impulso humano para
detectar necessidade na realização dos vários estilhaços resultantes da
explosão das causas únicas não colapsou de forma alguma.
Mais do que isso. À sombra protectora de um Estado tutelar guiando os
nossos mínimos passos, cujo advento Alexis de Tocqueville, para sua
grande glória, previu quase até ao mais ínfimo detalhe no século XIX, o
universo das causas necessárias e urgentes proliferou como nunca.
Talvez, como disse, as “grandes narrativas” tenham conhecido um fim.
Mas, em sua substituição, lidamos quotidianamente com um universo em
expansão de “pequenas narrativas”. E os seus apóstolos não são menos
ferozes nem menos convictos do que os das outras. Como não é menos forte
a sua convicção na plasticidade da natureza humana e do papel que o
Estado tem em a detalhar no papel da lei.
É nisto que estamos. E a palavra “totalitarismo” que Martin Amis usa
convém aqui plenamente. Porque o conceito de “totalitarismo”, um
conceito razoavelmente equívoco, como o são todos os conceitos de teoria
política, implica não apenas, como, por exemplo, o de despotismo, um
poder autoritário que suprime as opiniões políticas divergentes, mas a
intromissão na vida concreta de cada um na sua esfera íntima. Em última
análise, a indistinção da esfera pública e da esfera privada. Não se
trata apenas de calar as opiniões divergentes (embora isso, é claro,
também aconteça), mas sobretudo de afirmar a necessidade de, no nosso
próprio coração, pensarmos como o Estado quer. E se isso é feito em nome
da nossa própria liberdade, que maravilha que é.
A concepção da plasticidade humana ganha assim uma nova forma
inteiramente distinta daquela que gozava em Pico della Mirandola. A
natureza humana é plástica por um decreto do Estado, que só encontra
felicidade em, em nome da nossa própria libertação, estender o seu poder
sobre os mais íntimos detalhes da vida individual. Na prática, isso
traz o benefício suplementar de calar as questões políticas
verdadeiramente substantivas. Dantes, chamava-se a isso alienação. O
totalitarismo, versão democrática, não quer outra coisa. O tédio vem
também daí: já sabemos como vai ser.
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* Nasci a 18 de Maio de 1960. Licenciei-me em
Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e
doutorei-me, também em Filosofia, pela École des Hautes Études en
Sciences Sociales, Paris. Sou professor no Departamento de Filosofia da
Faculdade de Letras da Universidade do Porto e investigador no Instituto
de Filosofia da mesma Universidade.
Fonte: http://observador.pt/opiniao/totalitarismo/ 21/09/2017
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