Diplomacia não faz milagre. Hoje em dia, a imagem que o Brasil tem no
exterior corresponde à realidade: um país com uma corrupção terrível, um
presidente com uma segunda denúncia
e a crise mais grave da história.
"Ninguém quer sair na foto com o Brasil", diz o embaixador Rubens
Ricupero, 80, ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente, que lança na
semana que vem "A diplomacia na construção do Brasil - 1750-2016", uma
abrangente
história da política externa brasileira.
A Diplomacia na Construção do Brasil |
Rubens Ricupero |
Ele analisa a influência dos EUA na política externa brasileira —"Eles
não executaram (o golpe militar), mas foram os mandantes". Reserva
críticas para a política externa "ideologizada" do PT, mas também faz
elogios.
"Por que todo mundo queria estar com o Lula? O Lula era um vitorioso.
Além do sucesso econômico e político, ele tinha o êxito moral, o combate
à miséria e à injustiça. Hoje, deve ter muito pouca gente querendo sair
na foto com o Temer. Ninguém pode imaginar que o Itamaraty vai
alavancar o Brasil se o país não acabar com a corrupção, voltar a
crescer e combater a miséria."
*
Folha - O sr. testemunhou vários momentos importantes da história brasileira, relatados no seu livro. Pode contar algum?
Rubens Ricupero - Tem o encontro do Robert Kennedy com o
ex-presidente João Goulart, em 1962. Era 17 de dezembro e eu era
terceiro-secretário, um cargo bem baixo no Itamaraty. Brasília estava
vazia e eu era o único diplomata respondendo pelo Itamaraty. O Robert
Kennedy ia chegar e pediram para recebê-lo, em nome do governo
brasileiro.
Podia parecer até uma ofensa, o terceiro secretário recebendo, e eu
expliquei ao Lincoln Gordon (embaixador dos EUA na época) que eu era o
único ali. Eu apertei a mão do Robert Kennedy.
No dia seguinte, às 11h, ele foi recebido pelo Goulart, no Alvorada. Eu
fui, mas não entrei. Na sala estavam apenas Goulart, um intérprete do
departamento de Estado, Kennedy e Lincoln Gordon.
Goulart não quis testemunhas porque provavelmente antecipava que ia ser
uma conversa muito forte e não queria que ninguém ouvisse o que ele ia
dizer.
Em 2014, foi revelado um memorando sobre o encontro, escrito por Gordon.
Kennedy teria dito a Goulart: "Não temos problemas com independência na
política brasileira, mas de fato objetamos a que essa independência se
torne sistematicamente antiamericana, opondo-se a políticas e interesses
americanos de modo regular".
Mais assombroso ainda, na primeira conversa que John Kennedy gravou no
Salão Oval da Casa Branca, em julho de 1962, Goulart só estava no poder
há 9 meses e os americanos já estavam convencidos de que era preciso
levar os militares a dar um golpe no Brasil.
Eles reconheciam que os militares não queriam fazer isso, tanto que
Gordon diz ser preciso "reforçar a espinha dorsal dos militares". Ainda
falta escrever o livro sobre o papel dos americanos no golpe.
Não acho que eles deram o golpe, mas não tenho dúvida de que eles
induziram e foram os primeiros a organizar. É como num homicídio, que
tem o mandante e o executante. Os americanos não executaram (o golpe),
mas foram os mandantes. Mesmo assim, estou convencido de que o Goulart
caiu por culpa dele, quando ele recuperou os poderes e apostou na
radicalização. Não havia ambiente para isso.
Por quê?
Ele radicalizou em um momento de aguda Guerra Fria em que isso era
inconcebível. Do Jacobo Arbenz em 54, na Guatemala, até o Salvador
Allende em 73, no Chile, nenhum governo de esquerda na América Latina
sobreviveu. O Lula só chegou ao poder porque a Guerra Fria tinha
terminado.
Hoje em dia qual é o tom do relacionamento entre Brasil e EUA?
Os EUA, depois do fim da Guerra Fria e após os ataques de 11 de setembro de 2001, passaram a ter uma agenda internacional em que não há mais espaço para América Latina.
A pauta americana é dominada hoje por grandes temas de superpotência, como problemas no mar do sul da China
e rivalidade estratégica com a Rússia, ou pela islamização da agenda
internacional, por conflitos vinculados à radicalização de um de
islamismo extremista.
Uma vez que desapareceu a ameaça comunista, para os americanos, o que se
passa aqui pode incomodar um pouco, mas não muito. Até mesmo a
Venezuela —eles prefeririam que fosse um país a favor dos EUA, mas podem
conviver com isso perfeitamente.
Hoje em dia, na grande estratégia americana, não há espaço para o
Brasil. O Trump até hoje não fez um tuíte especificamente sobre o Brasil
—essa é a maior prova da insignificância do Brasil para o governo
americano. Aliás, ainda bem, porque em geral, quando Trump põe alguém no
Twitter, é para dar uma porrada.
Hoje nossa política externa para os EUA está mais para política
externa independente, dos anos Jânio-João Goulart, ou alinhamento
automático?
Hoje temos uma política independente. No discurso do Temer na ONU, que é o do Itamaraty, há defesa do Acordo de Paris e do multilateralismo, dois temas a que Trump se opõe. O Brasil tem o que dizer nessas duas questões.
O Brasil não é potência nuclear, nem militar convencional, nem
econômico-comercial. A única área em que o país é potência é no meio
ambiente, porque tem a maior floresta tropical do mundo, se o Temer e a
bancada ruralista não destruírem.
Também na área de negociação agrícola comercial não se pode chegar a um
acordo sem o Brasil. A última vez em que quase se chegou a um acordo, em
2002, foi um grande trabalho do (então chanceler) Celso Amorim, com
apoio do Lula, um entendimento entre Brasil e UE para resolver um
impasse. Mas aí os americanos e indianos torpedearam o acordo.
O Brasil nessas áreas é incontornável, mas com o Trump, como você pode
ter um diálogo sobre o acordo de Paris, sobre a retomada da negociação
multilateral de comércio agrícola, que é o que interessa ao Brasil?
Sergio Lima - 27.mai.2010/Folhapress | |||||||||||||
O então presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebe o hoje presidente da Turquia Recep Tayyip Erdogan |
Um dos momentos em que a política externa brasileira esteve mais em
evidência foi em 2010, quando o Brasil, ao lado da Turquia, propôs um acordo resolver a questão nuclear do Irã...
Eu nunca fui um crítico do esforço que o Lula e o Celso (Amorim)
fizeram. Há derrotas que honram mais que certas vitórias, essa é uma
delas. Foi uma iniciativa inédita para um país latino-americano tentar
chegar a um acordo numa área em que normalmente é privativa das grandes
potências.
Quando se falava em multipolarismo, acreditava-se que as grandes
potências nucleares e militares tinham finalmente aceitado que havia
espaço para países intermediários como o Brasil, a Turquia, o México, a
Índia.
Que esses países poderiam tentar solucionar um caso como o do Irã.
Equivaleria hoje em dia ao caso da Coreia do Norte, se nós tivéssemos
alguma influência sobre o governo de lá. O próprio Obama chegou a
encorajar o esforço brasileiro por cartas.
Mas a Hillary (então secretária de Estado Hillary Clinton) era contrária
e tanto o Brasil como a Turquia sobrestimaram sua influência sobre os
iranianos. Conseguiram que os iranianos mostrassem alguma flexibilidade,
mas não o bastante para permitir acordo naquele momento. E os Brics
decepcionaram.
Se é verdade que os Brics constituem um agrupamento importante, como é
que se explica que a Rússia e a China tenham se aliado aos americanos
votando sanções adicionais ao Irã e arrancando o tapete debaixo dos pés
do Brasil e da Turquia.
Meu livro mostra bem que era prematura essa percepção de que havia
espaço para o multipolarismo. Na hora em que houve a prova de fogo,
viu-se que as grandes potências não delegavam para ninguém.
Foi uma tentativa meritória, audaciosa, que longe de desonrar, deu
prestígio para o país, que foi aplaudido no mundo inteiro. Perceba que
eu não sou sectário. Discordo da política externa dessa época para
América Latina, a política paralela do PT, feita por inspiração da
ideologia, não pelos interesses do Brasil.
O sr. critica a ideologização do Itamaraty durante o comando de Celso
Amorim, e o fato de ele e o então secretário-geral Samuel Pinheiro
Guimarães terem se filiado ao PT...
Sim, eu sou uma espécie em extinção, da época em que o diplomata era um
servidor que deveria servir imparcialmente o Estado. Fui treinado dessa
maneira, hoje o pessoal novo não concorda.
Será que agora não está em curso uma ideologização, só que do lado oposto, contra a ideologia do PT?
Eu espero que não, me dizem que não houve expurgos. O embaixador do
Brasil em Paris, Paulo Cesar de Oliveira Campos, foi indicado pelo Lula e
não mexeram nele.
Eles, ao contrário, perseguiram muita gente, embaixadores de grande
valor como o Marcos Caramuru, maior expert que tínhamos na China, o
Gelson Fonseca Jr, intelectual mais brilhante do Itamaraty, foi
embaixador na ONU e terminou a carreira como cônsul-geral no Porto. Como
se explica isso, a não ser como perseguição ideológica?
O Brasil deveria romper com a tradição diplomática brasileira e impor sanções econômicas contra a Venezuela?
Eu não sou favorável às sanções, porque elas normalmente atingem o povo
mais sofredor. O que o Brasil deveria fazer, e não está, é ser modelar
no acolhimento dos refugiados venezuelanos. Deveria ser um exemplo para o
mundo, e está sendo o contrário, os venezuelanos estão aí abandonados, e
tem gente propondo que não deem refúgio. A melhor forma de o Brasil
atuar seria dar acolhimento a esses refugiados.
O Brasil pode ser uma potência com relevância internacional?
A política externa é indissociável daquilo que nós somos em política
interna e em economia. Tivemos nosso momento mais alto de prestígio na
época do Lula, 2009, quando o Brasil conquistou o grau de investimento, a
Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos.
No entanto, houve uma percepção externa de que aquilo era irreversível. O
próprio Lula semeou a destruição de suas conquistas, ao começar a
arruinar as contas públicas, ao aceitar a corrupção —ele não a inventou,
mas aceitou e levou a extremos. Ele e a Dilma, no fundo, foram autores
de suas próprias ruínas e carregaram o Brasil junto.
Jim Watson - 14.nov.2008/AFP | ||
Lula participa de brinde com o então presidente dos EUA George W. Bush e o líder chinês Hu Jintao |
Qual é a imagem do Brasil no exterior hoje?
Hoje a imagem do Brasil não é nem pessimista, nem otimista, corresponde à
realidade: trata-se de um país com uma corrupção terrível, um
presidente com uma segunda denúncia, ministros sendo investigados, uma
crise que é a mais grave da história.
As pessoas dizem —por que a diplomacia brasileira não faz isso ou
aquilo? Mas como, ninguém quer sair na foto com o Brasil. (Binyamin)
Netanyahu veio para região e não se encontrou com o Temer, o vice-presidente americano, Mike Pence, também.
Por que todo mundo queria estar com o Lula? O Lula era um vitorioso.
Além do sucesso econômico e político, ele tinha o êxito moral, o combate
à miséria e à injustiça. Quem não queria ficar ao lado do Mandela?
Hoje, deve ter muito pouca gente querendo sair na foto com o Temer.
Ninguém pode imaginar que o Itamaraty vai alavancar o Brasil se o país
não acabar com a corrupção, não voltar a crescer, não combater a
miséria.
A certa altura do livro, o sr. diz que a "Dilma escondia debaixo da
autossuficiência e da aspereza no trato com os diplomatas, insegurança
nascida da falta de sensibilidade para relacionamento interpessoal."
Ela não tinha autoconfiança. Eu fiquei dez anos na ONU. Em 2003, na
reunião do G8 em Evian, o (então secretário-geral da ONU) Kofi Annan me
levou como seu principal auxiliar. Nessa reunião, o (então presidente
francês Jacques) Chirac tinha convidado o Lula, o líder chinês e o
indiano, mas para uma reunião à parte.
Eu estava lá quando o Lula chegou, e pensei comigo: acho que o Lula vai
ficar muito intimidado. Estavam presentes o Chirac, o (ex-presidente
americano) George W. Bush, primeiro-ministro inglês Tony Blair, o
(ex-chanceler alemão) Gerhard Schroder, (o ex-primeiro ministro italiano
Silvio) Berlusconi e (o presidente russo Vladimir) Putin. Todos os
grandes do mundo.
Houve uma sessão em que estavam falando sobre o problema da fome, e o
Bush, que é evangélico, fez uma intervenção dizendo que tinha muito a
ver com a Bíblia. O Chirac, com aquela arrogância francesa, disse: não
tem nada a ver com religião ou a Bíblia.
Aí o Lula assumiu a defesa do Bush, disse —não senhor, tem tudo a ver,
porque a Bíblia isso e aquilo. Ele estava com aquela cara de bravo,
falando alto, e todo mundo afinou. Aí eu percebi: para o Lula, aquele
pessoal eram os patrões da Fiesp, o líder metalúrgico não pode se
intimidar com os patrões da Fiesp. A Dilma não é assim.
O sr. diz no livro que Dilma foi uma das piores presidentes em termos de vocação para política externa.
Eu não conheço nenhum outro que tenha deixado 40 embaixadores esperando,
sem apresentar credenciais. São coisas elementares. Ela não tinha
interesse, não valorizava, não se sentia bem. E tinha uma mentalidade de
tecnocrata no sentido limitado, a ideia de que as únicas coisas que
fazem diferença são as concretas.
Então tudo o que o Itamaraty fazia, ela mandava rasgar aqueles papéis. O
Itamaraty, a não ser que você esteja negociando o fim de uma guerra ou
uma fronteira, só lida com o longuíssimo prazo. Por que que o
(ex-chanceler José) Serra saiu? Ele é engenheiro, gosta de fazer coisas.
No Itamaraty, você lida com conceitos. O Lula, que é muito inteligente,
percebeu que a política externa era uma tremenda alavanca, inclusive
interna, e usou muito. Ela não soube usar. Diplomacia e política são a
mesma coisa, Lula era um grande diplomata.
Como o sr. avalia a política externa hoje?
Estamos em um momento de gradual recuperação, tanto da política e da
economia, quanto a política externa. Só vamos ter algo mais determinado
depois das eleições. Isto é, se a eleição não "der ruim". Se tivermos um
Bolsonaro da vida, é hora de fechar a butique mesmo.
Há muita tensão entre o ditador norte-coreano Kim Jong Un e o
presidente americano, Donald Trump. O mundo pode estar próximo de uma
guerra nuclear?
Não. Nós estamos há 72 anos sem uma guerra nuclear, em parte por conta
do poder destrutivo das armas nucleares, que atua como deterrence, mas
em parte porque a ONU, com todos os defeitos, mostrou que era maleável o
bastante para acomodar grandes mudanças.
O norte-coreano não é louco. Ele conduz uma política muito lógica e
racional, pois viu o que aconteceu com o (ex-ditador iraquiano) Saddam
Hussein e o (ex-presidente líbio) Muammar Gaddafi, que não tinham armas
nucleares. E ele não vai acreditar nos americanos, no que ele tem
absoluta razão.
Mas mesmo se considerarmos que o Kim Jong-un não é maluco, está
desenvolvendo instrumento de dissuasão, do outro lado há um ator não
necessariamente racional, o Donald Trump...
Trump é autor de "The Art of the Deal", diz que é preciso desestabilizar
o adversário e nunca deixar o oponente saber o que a pessoa vai fazer.
Os dois são negociadores se ameaçando mutuamente. Não vai acontecer
nada.
O planeta não vai acabar com um apocalipse nuclear, mas pode acabar como
diz o verso do T.S. Eliot "not with a bang, with a whimper" (não com um
estrondo, com um suspiro). O maior perigo que nós enfrentamos hoje é o
aquecimento global. Mas as pessoas não percebem, porque a explosão
nuclear é um perigo imediato, enquanto o aquecimento leva 30, 40 anos.
Mas já está chegando.
Sergio Lima - 1º.jul.1994/Folhapress | ||
Rubens Ricupero posa ao lado do então presidente Itamar Franco com as novas notas do real, em 1994 |
O sr. conta no livro que, ao ser convidado para o ministério, disse
ao presidente Itamar Franco não ser a pessoa mais adequada...
Eu disse a ele: não sou economista profissional, conheço muito pouco do
plano, apenas o que a imprensa publicou. Disse que ele deveria convidar
alguém que conhecesse profundamente o plano, até sugeri dois nomes,
Edmar Bacha e Pedro Malan.
Ele me respondeu: nós já examinamos todas as opções e o senhor é a única
alternativa. Embora a frase fosse um pouco críptica, uma frase em
mineirês, eu entendi. Eu trabalhei a vida toda com mineiros, com Afonso
Arinos, San Tiago Dantas, Tancredo Neves. O Tancredo dizia que eu era o
mais mineiro dos paulistas. Percebi que o Itamar queria dizer que ele
queria alguém fora da equipe, que devesse o cargo a ele, e não ao FHC.
O Itamar costumava dizer muito que eu era o sacerdote do real, em parte
porque eu cumpria a função de pregar, na televisão, em parte era para
chatear o Fernando Henrique, que ficou mais glorificado pelo real. Não
deram muito crédito para o Itamar e ele deveria ter recebido, sem ele, o
real não teria existido. Eu disse que era funcionário público, e
aceitava.
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