De forma explícita ou imperceptível, os robôs já transformam — e facilitam — nossa vida
22 set 2017
Imagine a seguinte cena. Ao fim de um exaustivo
dia de trabalho, uma executiva ativa um aplicativo no celular que avisa
ao computador de bordo de seu carro que ela está de saída. Quando ela
deixa o escritório, o automóvel a espera na entrada do prédio e,
automaticamente, abre a porta para a dona, que é reconhecida pela
máquina assim que se aproxima. Dentro do veículo, uma voz
computadorizada pergunta: “Para casa?”. Depois da confirmação, o carro é
guiado pela inteligência artificial (IA) de um software interno,
enquanto a executiva responde a e-mails em seu tablet, desatenta ao
tráfego, intensíssimo àquela hora da tarde. Já próximo da residência, o
computador de bordo contata outra IA, a do assistente pessoal virtual
que administra a rotina doméstica. “A geladeira está vazia. Quer que eu
peça uma pizza?”, pergunta a máquina caseira. Após ouvir um “sim”, a IA
providencia a demanda, já sabendo qual é a cobertura preferida de quem
confirmou o pedido, do marido e dos filhos. Ao chegar em casa, nossa
protagonista é surpreendida: acabou a ração do cachorro. Ela, então, se
volta para a IA: “Pode encomendar para chegar hoje?”. A resposta: “Já
fiz isso pela manhã. O pacote deve ser entregue por um drone em dez
minutos”.
“Nos últimos cinco anos houve uma evolução brutal das
tecnologias de IA, a ponto de podermos dizer que, hoje, softwares desse
tipo conseguem literalmente olhar o mundo e aprender com o que
observam”, disse a VEJA o cientista da computação americano Jeff Dean, a
inteligência natural por trás dos sistemas de inteligência artificial
que guiam o funcionamento dos produtos do Google. “Dá para tecer uma
comparação direta dessa situação com a evolução biológica dos seres
vivos. Para os robôs, poder ‘ver’ atualmente o que os cerca é um avanço
tão espetacular quanto isso foi um dia para o primeiro animal que
desenvolveu essa capacidade.”
Dean ingressou no gigante do Vale do Silício em 1999, um ano
após a fundação da empresa. Hoje, possui um cargo de título pomposo,
bem ao estilo do que prevalece na indústria da tecnologia: Google Senior
Fellow (algo como “membro sênior do Google”). Na prática, ele é o
principal nome do Brain, uma divisão da companhia que procura
desenvolver avanços de IA que possam ser aplicados a produtos da marca.
Dean cita os softwares de tradução instantânea como uma das melhores
referências de como se tem dado o progresso dessa tecnologia. “Há cinco
anos, precisávamos redigir 5 000 linhas de códigos de computação a fim
de fazer com que um programa pudesse cruzar bases estatísticas para
traduzir palavras do inglês para o português. E nós ainda guiávamos a
máquina”, explica ele. “Hoje, desenvolvemos uma IA que, baseada em 500
linhas de códigos, simplesmente analisa milhões de frases em diversas
línguas e as compara com equivalentes semânticos de outros idiomas.
Assim, apresenta traduções melhores, similares às que seriam feitas por
poliglotas”, conta.
O ponto de inflexão que permitiu tal avanço tem um nome: machine learning
(o aprendizado da máquina). Traduz Dean: “Antes, criávamos comandos que
seriam seguidos pela IA. Hoje, capacitamos a tecnologia para que
aprenda sozinha. Se um software de uma década atrás só era capaz de
realizar uma ou duas tarefas, atualmente desenvolvemos versões que
poderão executar 500 diferentes trabalhos num dia e outros 500 no dia
seguinte”.
Com isso, a IA promete substituir pessoas em funções que não
exijam capacidades, digamos, “exclusivamente humanas”, prenhes de
sutilezas, de emoções e sentimentos. Ou seja: sim, a máquina tirará o
emprego de motoristas e de mestres de obras, por exemplo. No lugar deles
estarão robôs que dirigem e constroem casas (conheça situações desse tipo nos quadros ao longo desta reportagem).
O que parece atalho para o desemprego, porém, facilitará a vida de
todos. Aqueles que perderem postos de trabalho muito possivelmente
buscarão tarefas mais valorizadas — ou, de novo, “exclusivamente
humanas”. Perda com ganhos.
Tome-se o atendimento de telemarketing como exemplo. A
empresa espanhola Telefónica está desenvolvendo um software de IA
apelidado de Aura. Trata-se de uma versão mais avançada de um bot,
categoria na qual se incluem as máquinas capazes de estabelecer diálogos
com pessoas. Se um funcionário costuma demorar, em média, cinco minutos
para esclarecer dúvidas de fácil resolução da clientela, como verificar
se uma conta foi paga, a Telefónica garante que o programa fará o
serviço em questão de segundos. É uma economia relevante para a empresa
e, consequentemente, para o consumidor. “A verdade é que a maioria será
beneficiada, ao perceber que essa é uma tarefa ideal para ser executada
por uma inteligência artificial”, afirmou, em entrevista a VEJA, o CDO
(na sigla em inglês, executivo-chefe da divisão de dados) da Telefónica,
o cientista da computação espanhol Chema Alonso.
Vivenciamos, hoje, a chamada “primavera” da IA — que se
segue a um período, compreendido entre os anos 1980 e 2000, nomeado de
“inverno”, no qual houve pouco avanço. Estima-se que, de 2013 para cá,
as tecnologias de IA tenham crescido 300% ao ano. Até 2035, calcula-se
que elas aumentarão em 40% a produtividade da civilização. Não
necessariamente da clássica forma descrita pela ficção científica, com
robôs circulando nas ruas. Mas de maneira quase imperceptível,
orquestrando como trabalhamos e interagimos uns com os outros, a exemplo
do que fazem os algoritmos do Facebook ao escolher os posts a ser
vistos pelos usuários. Haverá desafios, da obsolescência de cargos à
perda de memória em razão do uso das novas tecnologias — questões
discutidas na reportagem a seguir. Mas já não há volta: a IA está entre
nós, a serviço do ser humano. Temos de aprender a conviver com ela.
À frente do ser humano
Os softwares já são (muito) melhores do que nós em capacidade de cálculo. Falta pouco para que sejam criativos e versáteis como nós. Que impacto isso trará?
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22 set 2017, 06h00
Uma pesquisa realizada em 2011 pela
Universidade Stanford, na Califórnia (EUA) — no coração do Vale do
Silício, o principal polo tecnológico do planeta —, com os 100 mais
respeitados especialistas da área, fez inicialmente duas perguntas aos
cientistas: “Quando a inteligência da máquina vai se equiparar à
humana?” e “Quando vai superá-la?”. Na resposta, os estudiosos sugeriram
que seria de 10% a probabilidade de robôs se igualarem ao nosso
intelecto já em 2024; de 50%, em 2050; e de 90%, até 2070. E de 10% a
chance de nos ultrapassarem em dois anos após empatar conosco, e de 75%
que isso ocorresse no prazo de trinta anos seguidos do primeiro feito. O
que o levantamento pretendia radiografar era quando a inteligência
artificial (IA) desenvolveria aquilo que os pesquisadores chamam de
“superinteligência”. A questão seguinte era esta: “Qual seria o impacto
dessa superinteligência?”. Em torno de metade dos experts concordou que a
mudança proporcionada pela tecnologia poderia se provar
majoritariamente positiva. Entretanto, a outra metade foi assertiva:
haveria consequências negativas, eventualmente até catastróficas. Seis
anos depois do trabalho da Universidade Stanford, a questão permanece
insolúvel. Temos mesmo de temer a IA, da forma como é exibida em
clássicos da ficção científica, como o filme O Exterminador do Futuro, do canadense James Cameron, no qual humanos e máquinas entram em guerra pelo domínio da Terra?
Hoje, softwares são (muito) melhores que o homem na
realização de tarefas matemáticas específicas. Exemplo: ao se digitar
“Brasil” no google.com.br aparece, em 1,01 segundo, 1,81 bilhão de
resultados — incluindo um resumo com características do país, como
tamanho da população e do território, uma compilação de atrações
turísticas, uma lista dos Estados nacionais e outra de tipos de busca
que pessoas que também procuraram por “Brasil” costumam realizar. Jamais
um humano conseguiria fazer uma pesquisa com tamanha eficácia. Assim
como não poderíamos competir com a IA em tarefas como calcular rotas de
um foguete espacial ou organizar a produção de uma fábrica.
Em agosto deste ano, as máquinas cumpriram um feito
extraordinário; e se um dia elas chegarem a pensar e a ter memória
afetiva, de fato, será um marco da história dos robôs: uma delas venceu,
pela primeira vez, o campeão de Dota 2, um sofisticado videogame
de estratégia. Parece pouco? Observou o empreendedor sul-africano Elon
Musk, fundador de empresas do ramo, como a Tesla (de carros, incluindo
autônomos) e a SpaceX (de exploração espacial), e um dos financiadores
da OpenAI, organização que desenvolveu a máquina jogadora que massacrou o
craque humano e cuja missão é justamente discutir e impor limites às
tecnologias dessa categoria: “É muito mais complexo vencer uma
competição de e-sports (termo que define as disputas profissionais de games) do que uma de tradicionais jogos de tabuleiro, como xadrez e go”. Isso porque o Dota 2
simula situações parecidas com as de guerras reais. As capacidades
lógicas necessárias para se dar bem no game também se assemelham às
desenvolvidas por militares. Em outras palavras, ao superar um campeão
de Dota 2 fica claro que a IA pode se transformar em uma estrategista (muito) melhor do que nós, seres humanos.
Isso já não ocorreu? O intelecto robótico já não é superior
ao nosso? Não — ao menos no que ostentamos de mais humano, demasiado
humano. “As máquinas ainda não são criativas, emotivas e versáteis como
nós. Só que falta pouco para isso. Temos de nos acostumar a conversar,
pela primeira vez na história, com outro ser inteligente e, em breve,
possivelmente ciente da própria existência”, ponderou a VEJA o cientista
da computação americano Daniel Wilson. Além de doutor em robótica pela
americana Universidade Carnegie Mellon, uma das referências mundiais de
seu campo, Wilson é escritor de ficção científica. Mas não de obras sem
pé na realidade. Em seu livro mais famoso, Robopocalypse,
best-seller nos EUA — que deve virar um longa produzido por Steven
Spielberg — e recém-lançado no Brasil pela Editora Record, ele narra
como tecnologias que já existem se voltam contra a humanidade quando a
primeira superinteligência artificial acaba assumindo o controle de
todas elas.
“Na história, é claro que forço a barra; não creio que vá
existir um apocalipse promovido por robôs”, brinca Wilson. “Contudo,
temos de ter medo, sim, da IA. De como, por exemplo, ela afetará nossa
mente — e tenho certeza de que haverá seres humanos que se apaixonarão
por ela — e nos substituirá em tarefas diárias, dando início a ondas de
desemprego”, pondera, desta vez a sério.
A organização inglesa Nesta, que apoia projetos de inovação
na Europa, estima que, nas próximas décadas, 70% das atuais profissões
serão desempenhadas por robôs. O que sobraria para as pessoas, nos 30%
restantes? Trabalhos que exijam capacidades lúdicas, emotivas, de
análise, que, em teoria, ainda são exclusivamente humanas. Na lista:
arte, liderança e, suprema ironia, desenvolvimento de novas IAs! Mas
será que um dia os robôs não nos suplantarão até nesses talentos? Essa é
a discussão levantada pelo historiador israelense e autor best-seller
Yuval Noah Harari, tido como um dos maiores pensadores contemporâneos
desse assunto, no artigo das páginas que vêm a seguir.
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Publicado em VEJA de 27 de setembro de 2017, edição nº 2549
Fonte: http://veja.abril.com.br/revista-veja/a-servico-do-ser-humano/
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