segunda-feira, 25 de setembro de 2017

ROBÔS: A serviço do ser humano

De forma explícita ou imperceptível, os robôs já transformam — e facilitam — nossa vida

 
Imagine a seguinte cena. Ao fim de um exaustivo dia de trabalho, uma executiva ativa um aplicativo no celular que avisa ao computador de bordo de seu carro que ela está de saída. Quando ela deixa o escritório, o automóvel a espera na entrada do prédio e, automaticamente, abre a porta para a dona, que é reconhecida pela máquina assim que se aproxima. Dentro do veículo, uma voz computadorizada pergunta: “Para casa?”. Depois da confirmação, o carro é guiado pela inteligência artificial (IA) de um software interno, enquanto a executiva responde a e-mails em seu tablet, desatenta ao tráfego, intensíssimo àquela hora da tarde. Já próximo da residência, o computador de bordo contata outra IA, a do assistente pessoal virtual que administra a rotina doméstica. “A geladeira está vazia. Quer que eu peça uma pizza?”, pergunta a máquina caseira. Após ouvir um “sim”, a IA providencia a demanda, já sabendo qual é a cobertura preferida de quem confirmou o pedido, do marido e dos filhos. Ao chegar em casa, nossa protagonista é surpreendida: acabou a ração do cachorro. Ela, então, se volta para a IA: “Pode encomendar para chegar hoje?”. A resposta: “Já fiz isso pela manhã. O pacote deve ser entregue por um drone em dez minutos”.

É possível que toda essa movimentação soe como ficção científica, intangível. Não é. Trata-se de retrato da rotina de parte dos habitantes do planeta neste século XXI. Todas as tecnologias descritas no parágrafo anterior existem e muitas delas possuem versões comerciais. A IA está aí, no cotidiano, e não para de ser aperfeiçoada. Carros autônomos? Nos Estados Unidos, alguns modelos estão sendo testados, e muito em breve todos sairão às ruas, desde que as leis de trânsito (e as punições) sejam adaptadas. Assistentes virtuais em smartphones? Existem a Siri, do iPhone, e o Google Assistant, do Android. Versões domésticas dessa tecnologia? Pode-se procurá-las no mercado de hardwares do Google e da Amazon. Drones que entregam produtos? A Amazon já experimenta esses dispositivos.
PEDREIRO ROBÓTICO – A máquina Hadrian X, desenvolvida pela empresa australiana FastBrick Robotics, é capaz de levantar uma casa em 48 horas. Também conhecida como “pedreiro robótico”, ela ergue — sem ajuda humana — até mesmo prédios. Para tanto, basta mostrar ao equipamento uma planta da obra em 3D. É o suficiente para que o robô, com seu braço metálico, saiba onde deve instalar cada tijolo, cada revestimento etc. Prova de sua eficiência: a Hadrian X acopla 1 000 tijolos por hora a uma construção. Na mesma função, um pedreiro humano, sozinho, demoraria um dia inteiro para conseguir dar conta de assentar apenas 400 blocos. (//Divulgação)

“Nos últimos cinco anos houve uma evolução brutal das tecnologias de IA, a ponto de podermos dizer que, hoje, softwares desse tipo conseguem literalmente olhar o mundo e aprender com o que observam”, disse a VEJA o cientista da computação americano Jeff Dean, a inteligência natural por trás dos sistemas de inteligência artificial que guiam o funcionamento dos produtos do Google. “Dá para tecer uma comparação direta dessa situação com a evolução biológica dos seres vivos. Para os robôs, poder ‘ver’ atualmente o que os cerca é um avanço tão espetacular quanto isso foi um dia para o primeiro animal que desenvolveu essa capacidade.”

Dean ingressou no gigante do Vale do Silício em 1999, um ano após a fundação da empresa. Hoje, possui um cargo de título pomposo, bem ao estilo do que prevalece na indústria da tecnologia: Google Senior Fellow (algo como “membro sênior do Google”). Na prática, ele é o principal nome do Brain, uma divisão da companhia que procura desenvolver avanços de IA que possam ser aplicados a produtos da marca. Dean cita os softwares de tradução instantânea como uma das melhores referências de como se tem dado o progresso dessa tecnologia. “Há cinco anos, precisávamos redigir 5 000 linhas de códigos de computação a fim de fazer com que um programa pudesse cruzar bases estatísticas para traduzir palavras do inglês para o português. E nós ainda guiávamos a máquina”, explica ele. “Hoje, desenvolvemos uma IA que, baseada em 500 linhas de códigos, simplesmente analisa milhões de frases em diversas línguas e as compara com equivalentes semânticos de outros idiomas. Assim, apresenta traduções melhores, similares às que seriam feitas por poliglotas”, conta.

OLHAR CERTEIRO – O aplicativo Peek (de “espiar”, em inglês, mas também sigla para “kit portátil de exame de olhos”) usa a câmera do smartphone para detectar a ocorrência de catarata. O flash do aparelho ilumina a retina e produz uma imagem, depois analisada pelo software, que dá o diagnóstico. Criado por uma instituição inglesa de mesmo nome, o Peek foi testado em 5 000 quenianos em 2016. A pretensão é levá-lo a 2,5 bilhões de indivíduos sem acesso a tratamentos oftalmológicos, usualmente caros. No exemplo da catarata, 51% dos casos de cegueira no mundo são decorrentes da doença — e poderiam ser evitados. (Tony Karumba/AFP)

O ponto de inflexão que permitiu tal avanço tem um nome: machine learning (o aprendizado da máquina). Traduz Dean: “Antes, criávamos comandos que seriam seguidos pela IA. Hoje, capacitamos a tecnologia para que aprenda sozinha. Se um software de uma década atrás só era capaz de realizar uma ou duas tarefas, atualmente desenvolvemos versões que poderão executar 500 diferentes trabalhos num dia e outros 500 no dia seguinte”.

Com isso, a IA promete substituir pessoas em funções que não exijam capacidades, digamos, “exclusivamente humanas”, prenhes de sutilezas, de emoções e sentimentos. Ou seja: sim, a máquina tirará o emprego de motoristas e de mestres de obras, por exemplo. No lugar deles estarão robôs que dirigem e constroem casas (conheça situações desse tipo nos quadros ao longo desta reportagem). O que parece atalho para o desemprego, porém, facilitará a vida de todos. Aqueles que perderem postos de trabalho muito possivelmente buscarão tarefas mais valorizadas — ou, de novo, “exclusivamente humanas”. Perda com ganhos.

SEM LEITE DERRAMADO – Até recentemente, o máximo de sofisticação tecnológica que se costumava relacionar à atividade da ordenha era a sucção mecânica do leite. Em 2014, porém, a empresa sueca DeLaval deu início ao emprego de IA para melhorar esse trabalho. Por meio de condicionamento, sua máquina de ordenhar faz com que as vacas associem a alimentação à retirada de leite — fala-se em “ordenha voluntária” —, que se dá sem desperdício. E, durante a coleta, ela analisa a saúde do animal. No ano passado, uma fazenda chilena instalou 64 desses equipamentos, aumentando em 10% a produção de 4 500 vacas. (Tomohiro Ohsumi/Bloomberg/Getty Images)

Tome-se o atendimento de telemarketing como exemplo. A empresa espanhola Telefónica está desenvolvendo um software de IA apelidado de Aura. Trata-se de uma versão mais avançada de um bot, categoria na qual se incluem as máquinas capazes de estabelecer diálogos com pessoas. Se um funcionário costuma demorar, em média, cinco minutos para esclarecer dúvidas de fácil resolução da clientela, como verificar se uma conta foi paga, a Telefónica garante que o programa fará o serviço em questão de segundos. É uma economia relevante para a empresa e, consequentemente, para o consumidor. “A verdade é que a maioria será beneficiada, ao perceber que essa é uma tarefa ideal para ser executada por uma inteligência artificial”, afirmou, em entrevista a VEJA, o CDO (na sigla em inglês, executivo-chefe da divisão de dados) da Telefónica, o cientista da computação espanhol Chema Alonso.

Vivenciamos, hoje, a chamada “primavera” da IA — que se segue a um período, compreendido entre os anos 1980 e 2000, nomeado de “inverno”, no qual houve pouco avanço. Estima-se que, de 2013 para cá, as tecnologias de IA tenham crescido 300% ao ano. Até 2035, calcula-se que elas aumentarão em 40% a produtividade da civilização. Não necessariamente da clássica forma descrita pela ficção científica, com robôs circulando nas ruas. Mas de maneira quase imperceptível, orquestrando como trabalhamos e interagimos uns com os outros, a exemplo do que fazem os algoritmos do Facebook ao escolher os posts a ser vistos pelos usuários. Haverá desafios, da obsolescência de cargos à perda de memória em razão do uso das novas tecnologias — questões discutidas na reportagem a seguir. Mas já não há volta: a IA está entre nós, a serviço do ser humano. Temos de aprender a conviver com ela.

À frente do ser humano

Os softwares já são (muito) melhores do que nós em capacidade de cálculo. Falta pouco para que sejam criativos e versáteis como nós. Que impacto isso trará?

Uma pesquisa realizada em 2011 pela Universidade Stanford, na Califórnia (EUA) — no coração do Vale do Silício, o principal polo tecnológico do planeta —, com os 100 mais respeitados especialistas da área, fez inicialmente duas perguntas aos cientistas: “Quando a inteligência da máquina vai se equiparar à humana?” e “Quando vai superá-la?”. Na resposta, os estudiosos sugeriram que seria de 10% a probabilidade de robôs se igualarem ao nosso intelecto já em 2024; de 50%, em 2050; e de 90%, até 2070. E de 10% a chance de nos ultrapassarem em dois anos após empatar conosco, e de 75% que isso ocorresse no prazo de trinta anos seguidos do primeiro feito. O que o levantamento pretendia radiografar era quando a inteligência artificial (IA) desenvolveria aquilo que os pesquisadores chamam de “superinteligência”. A questão seguinte era esta: “Qual seria o impacto dessa superinteligência?”. Em torno de metade dos experts concordou que a mudança proporcionada pela tecnologia poderia se provar majoritariamente positiva. Entretanto, a outra metade foi assertiva: haveria consequências negativas, eventualmente até catastróficas. Seis anos depois do trabalho da Universidade Stanford, a questão permanece insolúvel. Temos mesmo de temer a IA, da forma como é exibida em clássicos da ficção científica, como o filme O Exterminador do Futuro, do canadense James Cameron, no qual humanos e máquinas entram em guerra pelo domínio da Terra?
Em 1997, um computador, o Deep Blue, tornou-se o pioneiro de seu gênero ao superar um campeão mundial de xadrez, o russo Garry Kasparov. Era a primeira vez que um tipo de máquina vencia um humano, no ápice, num jogo de estratégia. Os estudiosos não se apavoraram: o xadrez, afinal, vale-se de movimentos padronizados, que podem ser decorados pela IA, mas não exige o máximo de capacidade de improvisação. (Stan Honda//AFP)

Hoje, softwares são (muito) melhores que o homem na realização de tarefas matemáticas específicas. Exemplo: ao se digitar “Brasil” no google.com.br aparece, em 1,01 segundo, 1,81 bilhão de resultados — incluindo um resumo com características do país, como tamanho da população e do território, uma compilação de atrações turísticas, uma lista dos Estados nacionais e outra de tipos de busca que pessoas que também procuraram por “Brasil” costumam realizar. Jamais um humano conseguiria fazer uma pesquisa com tamanha eficácia. Assim como não poderíamos competir com a IA em tarefas como calcular rotas de um foguete espacial ou organizar a produção de uma fábrica.

Em agosto deste ano, as máquinas cumpriram um feito extraordinário; e se um dia elas chegarem a pensar e a ter memória afetiva, de fato, será um marco da história dos robôs: uma delas venceu, pela primeira vez, o campeão de Dota 2, um sofisticado videogame de estratégia. Parece pouco? Observou o empreendedor sul-africano Elon Musk, fundador de empresas do ramo, como a Tesla (de carros, incluindo autônomos) e a SpaceX (de exploração espacial), e um dos financiadores da OpenAI, organização que desenvolveu a máquina jogadora que massacrou o craque humano e cuja missão é justamente discutir e impor limites às tecnologias dessa categoria: “É muito mais complexo vencer uma competição de e-sports (termo que define as disputas profissionais de games) do que uma de tradicionais jogos de tabuleiro, como xadrez e go”. Isso porque o Dota 2 simula situações parecidas com as de guerras reais. As capacidades lógicas necessárias para se dar bem no game também se assemelham às desenvolvidas por militares. Em outras palavras, ao superar um campeão de Dota 2 fica claro que a IA pode se transformar em uma estrategista (muito) melhor do que nós, seres humanos.
O FUNCIONÁRIO-PADRÃO: estima-se que nas próximas décadas o ser humano será substituído pelas máquinas em sete de cada dez tipos de emprego. Em teoria, estão com os dias contados carreiras com tarefas repetitivas. Incluem-se aí os pedreiros, os motoristas, os atendentes de telemarketing etc. etc. Na foto, o robô Pepper, lançado em 2014 pela empresa japonesa Softbank, é testado como vendedor de uma loja. Pepper também já conseguiu trabalho como enfermeiro em 300 hospitais, realizando diagnósticos mais simples, e como recepcionista em diversos estabelecimentos. (Yoshikazu Tsuno//AFP)

Isso já não ocorreu? O intelecto robótico já não é superior ao nosso? Não — ao menos no que ostentamos de mais humano, demasiado humano. “As máquinas ainda não são criativas, emotivas e versáteis como nós. Só que falta pouco para isso. Temos de nos acostumar a conversar, pela primeira vez na história, com outro ser inteligente e, em breve, possivelmente ciente da própria existência”, ponderou a VEJA o cientista da computação americano Daniel Wilson. Além de doutor em robótica pela americana Universidade Carnegie Mellon, uma das referências mundiais de seu campo, Wilson é escritor de ficção científica. Mas não de obras sem pé na realidade. Em seu livro mais famoso, Robopocalypse, ­best-seller nos EUA — que deve virar um longa produzido por Steven Spielberg — e recém-lançado no Brasil pela Editora Record, ele narra como tecnologias que já existem se voltam contra a humanidade quando a primeira superinteligência artificial acaba assumindo o controle de todas elas.

“Na história, é claro que forço a barra; não creio que vá existir um apocalipse promovido por robôs”, brinca Wilson. “Contudo, temos de ter medo, sim, da IA. De como, por exemplo, ela afetará nossa mente — e tenho certeza de que haverá seres humanos que se apaixonarão por ela — e nos substituirá em tarefas diárias, dando início a ondas de desemprego”, pondera, desta vez a sério.

A organização inglesa Nesta, que apoia projetos de inovação na Europa, estima que, nas próximas décadas, 70% das atuais profissões serão desempenhadas por robôs. O que sobraria para as pessoas, nos 30% restantes? Trabalhos que exijam capacidades lúdicas, emotivas, de análise, que, em teoria, ainda são exclusivamente humanas. Na lista: arte, liderança e, suprema ironia, desenvolvimento de novas IAs! Mas será que um dia os robôs não nos suplantarão até nesses talentos? Essa é a discussão levantada pelo historiador israelense e autor best-­seller Yuval Noah Harari, tido como um dos maiores pensadores contemporâneos desse assunto, no artigo das páginas que vêm a seguir.

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Publicado em VEJA de 27 de setembro de 2017, edição nº 2549
Fonte:  http://veja.abril.com.br/revista-veja/a-servico-do-ser-humano/

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