quinta-feira, 5 de agosto de 2010

NEM OITO NEM OITENTA

HUMBERTO MARIOTTI


O professor de São Paulo Business School diz que,
nos negócios e na política,
o pensamento binário
não consegue explicar o mundo contemporâneo

Por Denise Ribeiro

O psiquiatra Humberto Mariotti é um dos maiores estudiosos do chamado pensamento complexo, conceito sistematizado nos anos 60 pelo filósofo francês Edgard Morin e que propõe uma visão de mundo menos reducionista e mais dinâmica, adequada, portanto, aos tempos de alta interconectividade global e de webcidadania. “A proposta básica do modelo complexo é integrar o pensamento cartesiano e o sistêmico, partindo do princípio de que o todo é maior do que a soma das partes e vice-versa.” Segundo o psiquiatra, o grande desafio para se chegar a essa síntese está em mudar o modelo mental vigente, pouco afeito à criatividade e à volatilidade com que as inovações – e as crises – ocorrem.
Mariotti, que há duas décadas foi incumbido pelo próprio Morin de dar uma roupagem mais didática à leitura do fenômeno da complexidade, põe em prática seus conhecimentos no universo empresarial. Seu principal laboratório são os cursos que coordena na São Paulo Business School. A escola, parte de uma holding norte-americana com 51 universidades nos cinco continentes, é a única instituição da América Latina que oferece a disciplina Gestão da Complexidade aplicada aos negócios. O assunto está tão em alta no ambiente corporativo que aparece no topo das preocupações de 1,5 mil CEOS de todo o mundo, em estudo divulgado recentemente pela IBM e que ganhou o nome de Capitalizando a Complexidade (quadro à pág. 46). A seguir os principais trechos da entrevista com Mariotti, que acaba de lançar Pensando Diferente, para lidar com a complexidade, a incerteza e a ilusão (editora Atlas) seu quarto livro sobre o tema.

Carta Capital: Por que é importante para uma escola de negócios divulgar a visão do pensamento complexo?
Humberto Mariotti: Porque é nas empresas que os líderes são pressionados a obter melhores resultados. A administração tradicional baseia-se no modelo cartesiano, sequencial, repetitivo, mas, pelo pensamento linear, é impossível compreender o mundo globalizado. Somos vulneráveis a sentimentos avassaladores de erro e incerteza e não sabemos lidar com isso. Como psiquiatra, atendi nos anos 80 executivos incapazes de entender que processos fogem ao controle e não chegam aos resultados previstos nas planilhas, porque interagimos com pessoas e outros sistemas vivos. Não posso negar o humano, como se fazia na era industrial e na modernidade. Temos de fazer gestões para que a cabeça cartesiana seja complementada pela cabeça complexa, que acolhe o cartesiano, como também o sistêmico, conceito mecanicista que ainda modela o discurso de gestão das atividades produtivas humanas. É preciso sair da repetição e começar a enxergar as diferenças, sem perder de vista que em momentos específicos o mais indicado é repetir procedimentos mecânicos.


"Desde os tempos de Aristóles nossa cabeça é f
ormatada pela lógica do terceiro excluído,
do isto ou aquilo"

CC: Como no caso da mancha de óleo no Golfo do México?
HM: Exato. Esse é o tipo de problema que precisa ser resolvido mecanicamente, por mentes operacionais. Fecha logo o raio do buraco e depois vamos conversar. O tecnólogo, imbuído da arrogância da modernidade, diz: “eu sou mais eu”, mas não consegue resolver porque traz para dentro do sistema o que há de mais fundamental em todo ser vivo que é a possibilidade de errar, de iludir (como a ilusão do controle ou do poder) e ser iludido (pela pretensa exatidão dos números e estatísticas, por exemplo). Estamos diante de uma rede, de uma malha, de sistemas interagindo simultaneamente com outros sistemas. Tudo tem a ver com tudo. Veja o caso da Bolsa Família: é importante dar o recurso, porque há brasileiros morrendo de fome, trata-se de uma situação emergencial. Mas, ao mesmo tempo que resolve um problema pontual, ele melhora também os indicadores de saúde e educação. Poucas pessoas, chamadas de integradores – de 10% a 15% da população, segundo pesquisa americana – , entendem o pensamento complexo. Os grande líderes intuitivamente têm ideia do que funciona e do que não funciona. O presidente Lula é um deles.

CC: As chamadas “melhores práticas”, então, não funcionam?
HM: É burrice dizer “eu uso as melhores práticas”, porque elas não demandam grandes técnicas e só servem para ambientes restritos, controlados e extramamente previsíveis. Não adianta recorrer a elas em momentos caóticos, quando as relações de causa e efeito não são óbvias. Na crise de 2008, primeiro foi preciso injetar trilhões de dólares nos sistema financeiro e estancar a hemorragia, para depois refletir sobre o que houve e partir para o uso de práticas inovadoras. O mundo financeiro é apenas mecânico, mas o universo da economia é mecânico e humano. O raciocínio linear aumenta a produtividade industrial por meio da automoção, mas não resolve o problema do desemprego e da exclusão social gerados por ela, porque são questões lineares. Não importa o quanto tentemos, não conseguimos reduzir as demandas exigidas pela multidimensionalidade dos fenômenos a regras rígidas, fórmulas simplicadoras ou esquemas fechados de ideias. A complexidade só pode ser entendida por um sistema de pensamento aberto, abrangente e flexível – o pensamento complexo. Ele nos mostra que é possível (e necessário) pensar em termos de conectividade das ações, em vez de lidar com os eventos isoladamente. Complexidade, aliás, vem do latim complexus, que significa o que está tecido junto, e não deve ser confundido com complicado.
Inspirador
Mariotti segue o pensamento complexo de Morin(foto)

CC: As pessoas costumam confundir os dois conceitos?
HM: Bastante. As máquinas, com relógios ou computadores, são sistemas complicados, que se caracterizam por um alto nível de precisão e repetitividade e um baixo nível de erro, incerteza e ilusão. Em compensação, seu nível de adaptabilidade, criatividade e inovação também são baixos. Os sistemas complexos, como incluem seres vivos, têm baixa precisão e repetitividade, mas alto grau de adaptabiliade, criatividade e inovação – e também de erro, incerteza e ilusão. O desafio da gestão da complexidade é diminuir tanto quanto possível o nível de erro, incerteza e ilusão dos sistemas complexos adaptativos. O que não se pode é abrir mão dos atributos humanos, como a criatividade, competência da liderança mais valorizada pelas empresas que trilham o caminho da complexidade.

CC: Qual o maior entrave à disseminação do pensamento complexo?
HM: A lógica binária, que permeia nosso modelo mental desde os tempos de Aristóteles. Nossa cabeça é formatada pela lógica do terceiro excluído, de “oito ou oitenta” do “ou isto ou aquilo”, do aluno ou professor. A lógica binária é grande limitante dos raciocínios políticos e o maior entrave ao diálogo. Interagindo, conversando, convivendo, chegamos a consensos sobre o que é a realidade para cada grupo humano. Os melhores resultados vêm da conversação e do respeito à diversidade de opiniões - não do dogmatismo e da unidimensionalidade. Argumentos racionais são úteis para iniciar o diálogo, mas danosos se permanecerem lineares, excludentes, apegados aos “ou/ou”. Não existe objetividade pura nem subjetividade exclusiva. A percepção é o resultado da interação do sujeito ao objeto. É uma relação circular, que produz fenômenos emergentes – e não linear, que conduz a um único resultado. O pensamento conservador é rigorosamente linear/binário e, portanto, muito limitado: quem não está conosco está contra nós. Na época da pré-guerra do Iraque esse refrão foi repetido ad nauseam . em especial pelo Colim Powell (ex-secretário de Estado do governo Bush). Contudo, sem o George Bush e suas práticas predatórias, Barack Obama, um político jovem, negro e pouco conhecido, jamais seria eleito. As pessoas se uniram em torno dele porque a situação lá estava calamitosa. Em situações de crise ou nas catástrofes – que serão cada vez mais frequentes – forma-se uma rede de ajuda mútua espontânea, sem comando externo. O pensamento complexo chama isso de auto-organização.
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Fonte: Revista Carta Capital impressa, ed. nº607 - o4/08/2010 - Pg.44-46.

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