quarta-feira, 4 de agosto de 2010

“O mundo precisa de novo contrato social”

 “Temos que começar a pensar em um novo contrato social em escala planetária,
e também dentro de cada país”,
afirmou em entrevista à IPS o ganhador do prêmio Nobel da Paz 1980,
o argentino Adolfo Pérez Esquivel (foto).
Aos 78 anos, Esquivel se mantém muito ativo em defesa dos direitos humanos e
da educação para a paz.

Atualmente, é um dos promotores da criação do Tribunal Penal Internacional para o Meio Ambiente, sob o princípio de que os desastres ecológicos são um crime contra a humanidade. Para isso é preciso modificar o Estatuto de Roma, que em 1998 deu vida ao Tribunal Penal Internacional, em vigor desde 2002.
Em uma de suas frequentes viagens a Barcelona, Esquivel conversou com a IPS sobre a situação da América Latina e os avanços para uma cultura de paz no mundo.

Eis a entrevista.

Desde o fim das ditaduras militares na América Latina, como a região evoluiu?
Depois das ditaduras impostas pela política dos Estados Unidos, houve fatos importantes que fazem com que a América Latina mude para democracias condicionadas ou restritas. É um processo rápido, vinculado à Guerra das Malvinas (1982, entre Argentina e Grã-Bretanha). Antes, o confronto era Leste-Oeste, entre Estados Unidos e a antiga União Soviética. Com a Guerra das Malvinas, o problema passa a ser Norte-Sul. Logo, Washington se dá conta de que é preciso promover democracias. Mas a política neoliberal, as privatizações, a apropriação dos recursos naturais e não naturais continua.

A América Latina continua sendo importante para Washington?
Apesar de precisar se concentrar nas guerras do Afeganistão e Iraque, os Estados Unidos nunca deixaram de estar atentos à América Latina. Quando algum país se desvia dessa hegemonia, começa a ter conflitos, como os que ocorrem na Venezuela, Bolívia, Equador ou Argentina. Quando o deposto presidente Manuel Zelaya, de Honduras, começou a ter outra visão da situação de seu país, sofreu um golpe de Estado legalizado pelo parlamento e pelo Poder Judicial. É uma experiência-piloto para aplicar em outros países, no Paraguai, por exemplo, que passa por algo semelhante.

Então, existe um reposicionamento dos Estados Unidos com a região?
Estão criando uma “pinça” militar no continente, com o Plano Puebla-Panamá, para a América Central e o Caribe, o Plano Colômbia, com sete bases militares sob o pretexto de combater o narcotráfico e o terrorismo, a Tríplice Fronteira (Argentina, Brasil, Paraguai) e, nas Ilhas Malvinas, uma base militar com a Grã-Bretanha. Além disso, empresas multinacionais buscam na região os recursos que faltam nos países centrais. Apesar de tudo, surgem forças sociais, culturas e políticas fortes. O governo da Bolívia, por exemplo, está recuperando as empresas nacionais e os recursos naturais que estavam privatizados. São passos importantes, como converter-se em um Estado plurinacional, com reconhecimento dos povos indígenas, ou medidas para superar o analfabetismo e os problemas de saúde. Como ocorre na Venezuela.

Mas há críticas a esses governos. Qual é a sua percepção?
Não existem democracias perfeitas. O que existe são democracias que podem ser perfeitas, podem melhorar. Por exemplo, a Venezuela é uma democracia diferente da, aparente, existente na Colômbia, onde existe repressão, controle de grupos paramilitares, intervenção das Forças Armadas, quatro milhões de refugiados internos e cinco milhões de exilados. Os colombianos votam, mas o que garante uma democracia não é o voto, é a participação do povo. Com todas as dificuldades e erros, países da América Latina deram passos qualitativos na construção de democracias participativas. São espaços a serem construídos.

Com o presidente Barack Obama as coisas mudaram?
Não. Obama chegou ao governo, mas não ao poder. Ele se comprometeu a acabar com a guerra do Iraque e a intensificou, e também com a do Afeganistão. Não conta com condições de governabilidade como os presidentes da Bolívia, Venezuela e Equador. Seus governos estão unidos pelo Mercosul, Unasul ou Banco do Sul. É a única forma de enfrentar os grandes poderes internacionais.

Essa união pode impedir o golpe de Estado, que mencionou, no Paraguai?
Claro. A presidente da Argentina, Cristina Fernández, fez algo interessante. No dia 25 de maio, festa da pátria e do bicentenário, recebeu Manuel Zelaya com honras de presidente em exercício. Isto incomoda os Estados Unidos, que perdem sua hegemonia. A América Latina tem de fortalecer sua unidade, porque possui grandes recursos naturais, e a próxima guerra será por água, recursos energéticos e alimentos. A única maneira de se fortalecer são as alianças econômicas, culturais e políticas.

O senhor citou forças sociais latino-americanas emergentes. Quais são?
Uma é o movimento de mulheres. A mulher é protagonista em toda a região, dos povos indígenas às esferas científicas, tecnológicas e do pensamento. Outro movimento importante é o dos indígenas, que começaram a recuperar sua identidade, sua cultura, sua espiritualidade e a se organizar. E a terceira são os movimentos sociais, que estão gerando uma nova forma de fazer política e construindo uma democracia participativa. Isto leva a algo no qual venho insistindo: temos de começar a pensar em um novo contrato social em escala planetária, e também dentro de cada país. Quando a Real Academia Espanhola realizou um encontro da língua, nós fizemos um Congresso das Línguas, porque não somos um país monolinguista e temos de respeitar essa diversidade. Quando falo de um novo contrato social também me refiro a isto, porque a dominação não começa pelo campo econômico, mas pelo cultural.

Há avanços na campanha para criar o Tribunal Penal internacional para o Meio Ambiente?
Entre as coisas que faço, presido a Academia das Ciências do Meio Ambiente de Veneza, integrada por 120 cientistas, onde trabalhamos os grandes problemas ambientais. Nos direitos humanos se vê os danos às pessoas, mas não aos povos. Em 1976, a Liga Internacional pelos Direitos e pela Liberdade dos Povos proclamou a Declaração Universal dos Direitos dos Povos. E creio que é preciso trabalhar no dano aos povos indígenas, a populações inteiras, pela contaminação da água e do meio ambiente. Em 2001, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) divulgou um informe dizendo que a cada dia morrem no mundo mais de 35 mil crianças vítimas da fome. Eu chamo isso de terrorismo econômico. Estamos propondo uma reforma do Estatuto de Roma. Ao mesmo tempo, é necessário lançar uma campanha internacional para que os povos pressionem. A pressão para que os governos façam mudanças deve partir da base.
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A entrevista é de Clarinha Glock, da IPS, e publicada pela Agência Envolverde, 04-08-2010.
Fonte: IHU online, 04/08/2010

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