sábado, 7 de maio de 2011

Deixem nossa língua em paz (2)

CLÁUDIO MORENO*


 O PRAZER DAS PALAVRAS
“Os bons velhos tempos? Mas os tempos são sempre bons,
a gente é que não presta mais!”
Mario Quintana – Caderno H

Dediquei a coluna anterior à análise da lei que regula o emprego de vocábulos estrangeiros na publicidade, na imprensa e nos textos oficiais de nosso estado, recentemente aprovada pela Assembleia; na ocasião, deixei bem claro que, a meu ver, esta lei, além de ferir a Constituição, representa um verdadeiro retrocesso cultural. Ora, como não sou daqueles que procuram encerrar a discussão na base do grito e da carranca, brandindo o diploma como se fosse um porrete – a famosa cacetada do argumentum baculinum –, vou explicar por que tachei o projeto de equivocado e de autoritário. Vejamos primeiro os equívocos.

1 – Nossa língua não está em decadência – Reconheço que a ideia central do projeto tem tudo para conquistar a simpatia do público, pois vem ao encontro daquela sensação difusa, compartilhada por grande parte dos falantes, de que algo precisa ser feito para evitar, ou ao menos refrear, a degradação que parece ter atacado nosso idioma; afinal, como escreveu um leitor mais destampado, “temos de fazer alguma coisa para que o Português não caia na gandaia!”. Pois não se preocupe, caro leitor, que isso não vai acontecer; nossa língua está mudando, é verdade – como, aliás, todas as demais línguas do mundo –, mas posso assegurar que a história dessas mudanças sempre apontou para o aperfeiçoamento, não para o declínio. Como diz tão bem a epígrafe de Mario Quintana, o que nos assusta, no fundo, é a rapidez com que o tempo vai se consumindo, e por isso preferimos chamar de decadência toda e qualquer modificação – na moda, nos costumes, na linguagem – que possa nos lembrar que a areia da ampulheta está chegando ao fim. Este tipo de lamento, ouvido em todas as épocas e em todas as línguas conhecidas, é próprio do ser humano, tão fugaz e passageiro. A língua não está em decadência, não – e quem fica indignado ao ver que o jovem de hoje não entende o que lê e mal se exprime com aquele léxico reduzido e aquela tosca sintaxe que o caracteriza, fique sabendo que isso não se deve à mera adoção de algumas dezenas de palavras estrangeiras; o problema tem causas muito mais sérias e exigiria uma mudança radical de atitude e de política cultural, cem vezes mais profunda que essa constrangedora leizinha, tão inócua quanto clister em defunto.

2 – Nossa língua não é autossuficiente – Ao contrário do que afirma a justificativa desta lei, o Português não tem as mesmas palavras que o Espanhol, o Francês ou o Inglês. Said Ali, irônico, já descrevia em 1908 esta postura ufanista: “Nenhuma tão bela, tão elegante; nenhuma tão fecunda, tão enérgica, tão rica; nenhuma com tesouros tão variados e tão inexauríveis. Isto diz cada nação da sua. Isto dizemos nós da nossa. E daí se segue que não temos necessidade de pedir empréstimo a nenhuma língua estrangeira...”. Mera ilusão! Cada idioma tem um léxico próprio, construído pela experiência e pela visão de mundo de seus falantes. É exatamente por isso que uma língua vai buscar lá fora as palavras que não tem, assim como os navegantes do Renascimento iam às Índias para comprar a pimenta e a canela que não vicejam na Europa. Tobogã, iceberg, esqui, trenó e iglu só poderiam vir de culturas com neve, frio e gelo. Batique, sarongue, sagu e orangotango têm a marca das regiões do Oceano Índico. Soprano, maestro, batuta, piano, sonata, virtuoso vêm da musicalíssima Itália. Agora que vivemos a extraordinária revolução introduzida pelo computador e pela internet, importamos do Inglês. É simples assim.

3 – A língua não interrompeu sua evolução só porque eu nasci – Sei que é duro admitir, mas nosso idioma, que vem mudando desde sua origem, continua mudando ainda hoje e vai continuar sua mudança mesmo depois de eu deixar de fazer sombra neste mundo. Ora, como eu passo e a língua fica, não tenho o direito nem a capacidade de decidir quais destas palavras estrangeiras que andam por aí terminarão sendo aceitas pelo idioma. É impossível definir, como sugere o projeto, quais são os estrangeirismos consagrados, pois isso implicaria dizer que os que vieram antes de mim tiveram a sorte de conquistar a cidadania brasileira, enquanto os novos – isto é, os que agora tentam ingressar em nosso território – chegaram tarde demais e devem sofrer os rigores desta nova lei... Quando, no final do séc. 19, o folclórico Castro Lopes esbravejava contra o “depravado gosto de enxertar na língua portuguesa palavras de idioma estrangeiro” e relacionava várias dessas “horripilantes novidades” (a maioria vinda do Francês), não tinha bola de cristal para prever que, da lista que fez, reclame, pince-nez, meeting, aplomb, parvenu, lendemain, charivari e pendant seriam praticamente abandonadas, mas massagem, turista, engrenagem, carnê, greve, envelope, elite, creche, etiqueta, ateliê e líder ingressariam definitivamente no nosso vocabulário usual. (continua)
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*Professor. Escritor. Colunista. Ensaista brasileiro.
Fonte: ZH/CULTURA online, 07/05/2011

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