sábado, 7 de maio de 2011

“Macedonio tem a marca do futuro”

ENTREVISTA

MÓNICA BUENO PROFESSORA DA UNIVERSIDAD NACIONAL DE MAR DEL PLATA

Uma das maiores especialistas em Macedonio Fernández, a professora Mónica Bueno não cansa de exaltar as virtudes ficcionais, filosóficas e biográficas do autor – em certo momento, lembra do célebre mictório de Duchamp para celebrar o não romance que é Museu do Romance da Eterna.
– As fronteiras entre coisa e objeto de arte se esfumam e só resta o espectador diante de um mictório decidindo em que lugar da divisória objeto/obra de arte coloca essa coisa privada e como define a obscenidade dessa representação. Um romance que não é um romance parece uma frase apropriada para sintetizá-lo – escreve por e-mail desde a Universidad Nacional de Mar Del Plata.
Autora de Macedonio Fernández, um Escritor de Fim de Século (sem edição no Brasil), ela respondeu às seguintes perguntas do Cultura. (Flávio Ilha)

Cultura – Qual a importância que Macedonio tem para a literatura argentina?
Mónica Bueno – Macedonio Fernández é o ponto mais extremo da nossa vanguarda. Seu senso de experimentação é tão forte que constitui a forma da sua literatura e também o sentido da sua vida. Sua obra tem a marca do futuro porque pressupõe sempre um leitor que ainda está por vir. E essa cumplicidade se estende a todos os lugares do espaço literário: o autor deixa de ser um demiurgo onipotente, o leitor será convertido em personagem, entenderá sua condição humana a partir da ficção e terá, momentaneamente, o susto da inexistência. Ao mesmo tempo, poderá ser o continuador de uma literatura infinita como propõe o Museu... Os grandes escritores da segunda metade do século 20 são leitores de Macedonio. Muitos reconheceram os rastros dele na sua produção – caso de Borges, Ricardo Piglia, Juan José Saer, Ricardo Zelarayán...

Cultura – Como se dá essa experiência de vanguarda?
Mónica – Macedonio faz parte do conjunto de “escritores do limite”: Nietzsche, Bataille, Klo­sowski são, entre outros, seus parentes. São os que aguçam o sentido de desubjetivação que Foucalt buscava. A foto de Macedonio com o poncho ao ombro e em pose de pajador parece ser o “punctum” barthesiano que mostra essa espetacular aliança do novo com a tradição. Como Mario de Andrade em Macunaíma, Macedonio apela a um leitor que aceite essa estranheza como matriz produtiva, que entenda esse espaço particular que Silviano Santiago definiu como o “entrelugar”.

Cultura – Museu do Romance da Eterna é a sua obra mais importante?
Mónica – Evidentemente que é sua proposta literária mais vanguardista, na qual pretende relatar, como Dante, a experiência ficcional do fantasma da amada que só existe no espaço do romance. Macedonio escreve para completar a falta do real. A experiência da ausência é “traduzida” – “inventada”, como define – para o mundo do romance. A representação é, então, o dispositivo do movimento da vida à ficção. A experiência de mundo vira experiência estética. Pode-se dizer que o que está se contando no romance não é a experiência em si, mas a percepção dessa experiência.

Cultura – Que efeitos ele buscava?
Mónica – Um efeito ao mesmo tempo filosófico e estético. Podemos dizer que é um efeito sobre a experiência do leitor: ele trata de sacudir a constituição do sujeito no mundo. Macedonio chama isso de “mareo” do leitor, que pode ser traduzido por enjoo, náusea. Com esse tipo de efeito, ele busca mostrar que a experiência pessoal é única e sempre renovada. Ele abominava o realismo porque considerava que a arte deve explorar outras possibilidades da vida, ao invés de dedicar-se a representar o mundo tal qual uma época ou uma sociedade o concebem. E a literatura, em particular, deveria outorgar um sentido novo ao mundo e aos homens.

Cultura – Macedonio foi, ou é, muito lido na Argentina?
Mónica – Museu do Romance da Eterna e seu autor construíram uma comunidade de leitores que, ao longo do tempo, tem crescido significativamente. Na verdade, descobrimos Macedonio por meio de Borges, amigo e admirador do pai do escritor. Macedonio foi durante muito tempo quase um personagem de Borges, a ponto de alguns duvidarem de sua existência. Em certo sentido, não podemos deixar de pensar na independência de Macedonio como escritor em relação à máscara do autor e aos registros sociais dessa máscara. A importância desses códigos chega a ser tamanha que diminuiu sua corporificação a ponto de, para alguns, como já disse, ser um personagem inexistente. Milhares de anedotas sobre ele mostram esse jogo irônico com sua própria figura de escritor. Não será essa, por acaso, a pretensão última desse homem que tinha como objetivo elucidar o mundo desde um quarto de pensão?

Cultura – O que lhe parece Museu... hoje, depois de tanto haver escrito sobre ele?
Mónica – Museu... é uma linha que atravessa a vida de Macedonio desde os seus 20 anos até o final, como uma flecha do tempo. Durante 50 anos ele escreveu um work in progress duplo, que se multiplica postumamente ao, por exemplo, instalar a função de autor como categoria textual ou postular uma taxonomia (classificação) do leitor – na qual se constroi o leitor “salteado”, mas inexistente – até quase anular a inserção da narrativa no gênero do romance. Todos esses artifícios são marcas de ruptura. O que ocorre em Museu, no qual os personagens se convertem em não existentes, no qual o leitor se transforma em personagem, no qual o autor deixa o legado de um mundo inventado para outros autores? O museu imaginário de Macedonio é uma arquitetura enganosa, que desilude o caminho seguro do leitor “seguido”. A desordem de formas e lugares tem nessa dissonância a sua evidência. E, no silêncio, a sua reviravolta invisível. Museu e obra de arte – estância e romance – significam a mesma coisa. Forma e conteúdo dão conta do enjoo do leitor. Quem é o autor? Quem é o narrador? Quem é o personagem da história do complô? Como figuras intercambiáveis de um jogo de estratégias, Macedonio põe em prática a concepção barthesiana da morte do autor. Não se tratam mais de dois movimentos distintos, duas instâncias – autor e livro –, mas de um mesmo movimento, único e paradoxal, que remete à relação entre vida e literatura. Museu..., por isso, transforma o gênero no qual se inclui e resulta num desses objetos deslocados porque sua forma é pura dissonância. Trata-se de um artefato antirromanesco.
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Fonte: ZH/CULTURA online, 07/05/2011

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