sábado, 7 de maio de 2011

Uma segunda morte

 SERGIUS GONZAGA*

 ERNESTO SÁBATO 1911 2011

Bem antes de seu desaparecimento no sábado passado, Sábato fora morto e enterrado pelo establishment acadêmico da Argentina, sob as mais variadas acusações, entre as quais sobressaía-se a de sua secreta aproximação do governo militar que infelicitara o país de 1976 a 1983. O fato de se tornar a posteriori um campeão dos direitos humanos, subscrevendo relatórios sobre prisioneiros desaparecidos durante a ditadura, pareceu à intelligentsia um gesto de oportunismo. A reação desta intelectualidade foi a de envolver tanto a figura quanto a obra de Sábato num manto de desprezo, indiferença e silêncio.
Contudo, o ex-físico estava acostumado a estes embates. Nos anos 1930, após curta militância, rompera com os comunistas, que nunca o perdoaram. No começo dos 1950, ao lado de colegas, fora expurgado da universidade, sujeita ao tacão peronista. A exemplo de Borges e Cortá­zar, Sábato abominava o autoritarismo populista de Perón. Teve então de exilar-se e escolheu Paris.
O Túnel (1948) obteve triunfal recepção na Europa. Escritores como Camus e Gra­ham Greene teceram loas à narrativa. Treze anos depois, veio à luz um segundo romance, Sobre Heróis e Tumbas, que se converteu na ficção mais lida da história da Argentina – só na década de 1960 vendeu meio milhão de exemplares. O leitor sofisticado, de classe média, antiperonista e antimilitarista, encontrava uma síntese da nação naquele relato, que expunha de forma simultaneamente psicológica, histórica e metafísica o drama da decomposição moral de uma antiga família “crioula”, mesclando a memória de um passado falsamente glorioso com a modernidade infeliz de Buenos Aires.
As ficções de Sábato (sobremodo as duas citadas) sempre se sustentaram em pilares de desconforto e mal-estar. A náusea existencialista, o relativismo filosófico e ideológico, o cotidiano gris e a avassaladora solidão do indivíduo na metrópole exercem um poder aniquilador sobre os protagonistas, arrastando-os à paixões exasperadas, a labirintos infernais, à loucura e ao crime. Uma zona sombria na qual o mal se instaura e persegue os indivíduos como num grande pesadelo. Essas ficções crispadas, essas descidas aos subterrâneos, ainda hoje atordoam o leitor e, independentemente do papel que o homem Ernesto Sábato desempenhou na história da Argentina, continuarão nos oferecendo uma inolvidável experiência de vertigem, que só os grandes textos literários são capazes de propiciar.
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*PROFESSOR DE LITERATURA, SECRETÁRIO DA CULTURA DE PORTO ALEGRE
Fonte: ZH/CULTURA online, 07/05/2011

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