A democracia está em crise, mas há temor de ampliá-la. Por quê? "Muitos
têm medo da participação dos pobres",
diz professor da UnB
Rogério Melo / PR
Temer: governo de retrocessos
O "fim da história", conceito segundo o qual
a democracia liberal e o capitalismo formam o conjunto definitivo de
organização da sociedade moderna é o ponto de partido do recém-lançado
livro Consenso e Conflito na Democracia Contemporânea (Ed. Unesp), do cientista político Luis Felipe Miguel.
Professor titular da Universidade de Brasília (UnB), Miguel questiona a
"receita infalível" e destaca que, mais de duas décadas depois do fim
da Guerra Fria, o mundo parece estar longe de uma união sob um modelo único.
As desigualdades econômicas e políticas, lembra o professor da UnB, não foram extintas com a nova organização e as vozes que exigem uma nova organização são cada vez mais numerosas. Nesta entrevista a CartaCapital, Miguel analisa a resistência à ampliação da participação no processo democrático, no mundo como um todo, mas em especial no Brasil. "Aqueles que estão controlando o poder hoje sabem que o projeto que pretendem implantar, um projeto de desnacionalização da economia e da retirada do compromisso do Estado com a redução da desigualdade social, não ganha eleição no Brasil", diz.
CartaCapital: Na orelha do livro há uma citação à queda do Muro de Berlim como divisor de águas após a Guerra Fria. Naquele contexto Francis Fukuyama falou sobre "o fim da história", marcado pela hegemonia da democracia liberal. Como você avalia essa ideia?
Luís Felipe Miguel: A tese de que com a vitória dos Estados Unidos na Guerra Fria nós teríamos chegado a uma espécie de momento final da evolução da sociedade nunca teve cabimento. A Guerra Fria representou um embate entre dois sistemas políticos e econômicos diversos, mas se formos pensar os mecanismos que levam à transformação histórica, eles nunca estiveram nesse embate, mas sim nas contradições internas de cada sociedade.
Se a gente for pensar no sistema capitalista, ele tem contradições internas que nunca deixaram de estar presentes. Isso é que leva às transformações e aos movimentos históricos. A ideia de que a história havia acabado porque nós havíamos chegado ao sistema político e econômico definitivo, sempre foi mais parte de uma propaganda política do que uma realidade.
CC: E o que pode ser feito para aperfeiçoar a democracia liberal?
LFM: O único caminho que consigo ver pra que tenhamos essa democracia liberal funcionando melhor é se ela for capaz de reconhecer os seus próprios limites e abrir espaço para uma maior participação das pessoas comuns. Não tem como pensar em um sistema que chegue a decisões com qualidade se ao mesmo tempo queremos manter a maior parte da população em uma situação de deseducação política quase completa.
Muitos querem manter as instituições formalmente funcionando, mas têm medo da maior capacidade de intervenção política daqueles que não são proprietários e da maior participação dos pobres caso ampliemos a participação.
CC: O senhor pode dar um exemplo disso?
LFM: No Brasil, recentemente, tivemos um exemplo disso quando a então presidenta Dilma Rousseff tentou implementar a Política Nacional de Participação Social, em 2014. Era um projeto muito tímido ainda, porque era simplesmente a sacramentação de conselhos consultivos sem poder decisório, mas houve uma grita das bancadas conservadoras e o projeto foi rapidamente arquivado.
Existe um receio de que a maior participação signifique,
na prática, uma partilha maior de poder. Só que a democracia é isso, é
partilha de poder! Democracia é todas as pessoas terem condições de
influenciar, da maneira mais igualitária possível, a tomada de decisões.
É importante saber que se a gente quer um sistema mais democrático,
temos de aceitar o sentido verdadeiro da democracia.
CC: Uma das bases da democracia liberal é o sistema representativo no sistema político. Mas esse modelo parece estar sendo questionado tanto pela esquerda quanto pela direita. Por quê?
Temos vários elementos pra dizer que esse modelo representativo liberal, tal como foi construído principalmente nos países do Hemisfério Norte, mas que foram se espalhando pelo mundo ao longo do século XX, está em crise.
Identificamos isso de diferentes maneiras. Uma delas é a alta taxa de pessoas que não comparecem às urnas, ou que votam em branco mundo afora. Esse sistema representativo dá muito pouco espaço para os cidadãos comuns expressarem suas vontades e demandas. É um modelo muito delegativo, em que se espera que o cidadão participe a cada quatro anos e depois o resto do tempo fique passivo politicamente. Então é difícil criar um diálogo efetivo entre representantes e representados.
Aí entram outros elementos. O fato de que temos uma série de instituições nessa sociedade que servem pra enviesar esses representantes. O peso do dinheiro e dos meios de comunicação de massa são exemplos. O que ocorre é que esses representantes parecem muito mais próximos desses grupos de poder do que do conjunto dos eleitores, e os cidadãos percebem isso.
O exemplo de Donald Trump nos Estados Unidos é que essa crise tem sido frequentemente aproveitada por discursos manipuladores e que usufruem da desconfiança generalizada nessas instituições representativas não para torná-las melhores, mas para permitir que outsiders e projetos autoritários tomem conta do Estado.
CC: No livro o senhor cita o sociólogo francês Pierre Bourdieu e lembra que, quando representantes dos "dominados" chegam ao poder, são obrigados a moderar seu discurso. Como funciona essa processo?
LFM: Embora tenhamos formalmente uma política
igualitária em que, a rigor, qualquer cidadão pode ser candidato, na
verdade temos uma série de mecanismos que filtram quem de fato pode
ocupar essas posições de poder. Basta olharmos para o Congresso
brasileiro pra ver que existe um certo perfil de pessoas que estão lá,
homens, quase todos brancos, e com uma situação socioeconômica bastante
superior à da média da população. Isso são os filtros que operam e
geram uma série de pressões para que, quem quiser se fazer ouvir nesse
espaço, fale a mesma língua daquelas que já estão lá.
Se
eu entro com uma postura totalmente diferente, não vou conseguir
influenciar nem participar do debate. Esse é um estímulo muito objetivo
para que as pessoas se moderem.
Mas se elas fazem isso, por outro lado, deixam de representar as demandas que iriam representar no começo. Até as organizações mais radicais, com discursos mais a esquerda, acabam, com o passar do tempo, a se aproximar de posições mais moderadas justamente porque, se não fazem isso, ficam fadadas à irrelevância.
O que o Bourdieu nos ajuda a entender é que estamos sempre nesse dilema quando estamos nessas instituições. Isso tem de ser entendido como um elemento que faz com que o jogo seja mais favorável a algumas posições e menos favorável a outras
CC: Recentemente ao escrever sobre seu livro o senhor disse que o Brasil não tem nenhum consenso, mas que tem muito menos conflito do que deveria. O que isso quer dizer?
LFM: Nós vivemos no Brasil um retrocesso político muito acelerado nos últimos anos. O ponto emblemático foi o golpe parlamentar que destituiu a presidente Dilma Rousseff. Mas esse golpe não foi o fim da história. A partir da posse de Michel Temer, temos um processo acelerado de retrocessos nas políticas sociais, em liberdade democráticas e uma série de questões.
Temos hoje um governo que não está preocupado em construir consenso na sociedade. Normalmente aqueles que estão exercendo o poder, se querem que ele seja reconhecido com alguma base democrática, vão dialogar com a sociedade para tentar construir alguma base de apoio nas medidas que vão ser implementadas.
Ele não foi eleito, não tem legitimidade para estar onde está, mas empurra goela abaixo da sociedade políticas que são amplamente rechaçadas por ela. O caso da reforma trabalhista é um exemplo e a reforma previdenciária é outro. Não se busca uma discussão com a sociedade pra tentar atingir algum modelo que seja pelo menos aceito por uma boa parte dela. Não existe essa preocupação com o consenso.
Ao mesmo tempo nós temos muito pouco conflito porque a resistência da oposição a essas políticas tem sido muito fraca. Tivemos algumas tentativas. A greve geral de 28 de abril teve alguma repercussão, mas, de maneira geral, diante do tamanho dos retrocessos das políticas sociais, o que vemos é pouca resistência e muito pouco conflito político. Estamos numa situação em que boa parte da sociedade está anestesiada, descrente na possibilidade de resistência.
CC: O Congresso deve fracassar na tentativa de fazer uma reforma política. Como o senhor analisa esse processo?
LFM: Temos aí uma situação na qual a elite política vem tentando arranjar uma solução que serve a ela mesma, mas que não leva em conta nenhum outro interesse social. Claro que se pensarmos em reforma política, há muita coisa pra ser mudada no Brasil, mas essa reforma que estão tentando fazer não toca em várias de nossas questões centrais, por exemplo, os meios de comunicação de massa, que são centrais no funcionamento do debate político.
CC: Durante o debate alguma figuras falaram sobre o parlamentarismo. O que o senhor acha dessa ideia?
LFM: Veio a ideia do parlamentarismo e, para dourar a pílula, estão chamando de semi-presidencialismo. Isso nada mais é que outra tentativa de tirar poder da Presidência da República e ampliar os poderes desse Congresso. Isso já foi rechaçado em dois plebiscitos, em 1963 e em 1993, e querem fazer passar agora sem consulta popular.
O parlamentarismo retira da vida política brasileira o único momento em que de fato nós temos alguma discussão sobre projeto nacional, que são as eleições presidenciais. As eleições para o Congresso tendem a ser dominadas por uma política pequena, uma política de vizinhança, de favorecimento de interesses corporativos.
Você não discute um projeto nacional normalmente numa campanha para o Congresso, isso é discutido na eleição presidencial. Mas aqueles que estão controlando o poder no Brasil hoje sabem que o projeto que pretendem implantar, um projeto de desnacionalização da economia e da retirada do compromisso do Estado com a redução da desigualdade social, não ganha eleição no Brasil.
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Reportagem por por Bruno Pavan Almeida — publicado 30/09/2017
Fonte: https://www.cartacapital.com.br/politica/boa-parte-da-sociedade-esta-anestesiada-descrente-na-resistencia
As desigualdades econômicas e políticas, lembra o professor da UnB, não foram extintas com a nova organização e as vozes que exigem uma nova organização são cada vez mais numerosas. Nesta entrevista a CartaCapital, Miguel analisa a resistência à ampliação da participação no processo democrático, no mundo como um todo, mas em especial no Brasil. "Aqueles que estão controlando o poder hoje sabem que o projeto que pretendem implantar, um projeto de desnacionalização da economia e da retirada do compromisso do Estado com a redução da desigualdade social, não ganha eleição no Brasil", diz.
CartaCapital: Na orelha do livro há uma citação à queda do Muro de Berlim como divisor de águas após a Guerra Fria. Naquele contexto Francis Fukuyama falou sobre "o fim da história", marcado pela hegemonia da democracia liberal. Como você avalia essa ideia?
Luís Felipe Miguel: A tese de que com a vitória dos Estados Unidos na Guerra Fria nós teríamos chegado a uma espécie de momento final da evolução da sociedade nunca teve cabimento. A Guerra Fria representou um embate entre dois sistemas políticos e econômicos diversos, mas se formos pensar os mecanismos que levam à transformação histórica, eles nunca estiveram nesse embate, mas sim nas contradições internas de cada sociedade.
Se a gente for pensar no sistema capitalista, ele tem contradições internas que nunca deixaram de estar presentes. Isso é que leva às transformações e aos movimentos históricos. A ideia de que a história havia acabado porque nós havíamos chegado ao sistema político e econômico definitivo, sempre foi mais parte de uma propaganda política do que uma realidade.
CC: E o que pode ser feito para aperfeiçoar a democracia liberal?
LFM: O único caminho que consigo ver pra que tenhamos essa democracia liberal funcionando melhor é se ela for capaz de reconhecer os seus próprios limites e abrir espaço para uma maior participação das pessoas comuns. Não tem como pensar em um sistema que chegue a decisões com qualidade se ao mesmo tempo queremos manter a maior parte da população em uma situação de deseducação política quase completa.
Muitos querem manter as instituições formalmente funcionando, mas têm medo da maior capacidade de intervenção política daqueles que não são proprietários e da maior participação dos pobres caso ampliemos a participação.
CC: O senhor pode dar um exemplo disso?
LFM: No Brasil, recentemente, tivemos um exemplo disso quando a então presidenta Dilma Rousseff tentou implementar a Política Nacional de Participação Social, em 2014. Era um projeto muito tímido ainda, porque era simplesmente a sacramentação de conselhos consultivos sem poder decisório, mas houve uma grita das bancadas conservadoras e o projeto foi rapidamente arquivado.
"A partir da posse de Michel Temer, temos um processo acelerado de retrocessos nas políticas sociais, em liberdade democráticas e uma série de questões"
CC: Uma das bases da democracia liberal é o sistema representativo no sistema político. Mas esse modelo parece estar sendo questionado tanto pela esquerda quanto pela direita. Por quê?
Temos vários elementos pra dizer que esse modelo representativo liberal, tal como foi construído principalmente nos países do Hemisfério Norte, mas que foram se espalhando pelo mundo ao longo do século XX, está em crise.
Identificamos isso de diferentes maneiras. Uma delas é a alta taxa de pessoas que não comparecem às urnas, ou que votam em branco mundo afora. Esse sistema representativo dá muito pouco espaço para os cidadãos comuns expressarem suas vontades e demandas. É um modelo muito delegativo, em que se espera que o cidadão participe a cada quatro anos e depois o resto do tempo fique passivo politicamente. Então é difícil criar um diálogo efetivo entre representantes e representados.
Aí entram outros elementos. O fato de que temos uma série de instituições nessa sociedade que servem pra enviesar esses representantes. O peso do dinheiro e dos meios de comunicação de massa são exemplos. O que ocorre é que esses representantes parecem muito mais próximos desses grupos de poder do que do conjunto dos eleitores, e os cidadãos percebem isso.
O exemplo de Donald Trump nos Estados Unidos é que essa crise tem sido frequentemente aproveitada por discursos manipuladores e que usufruem da desconfiança generalizada nessas instituições representativas não para torná-las melhores, mas para permitir que outsiders e projetos autoritários tomem conta do Estado.
CC: No livro o senhor cita o sociólogo francês Pierre Bourdieu e lembra que, quando representantes dos "dominados" chegam ao poder, são obrigados a moderar seu discurso. Como funciona essa processo?
Mas se elas fazem isso, por outro lado, deixam de representar as demandas que iriam representar no começo. Até as organizações mais radicais, com discursos mais a esquerda, acabam, com o passar do tempo, a se aproximar de posições mais moderadas justamente porque, se não fazem isso, ficam fadadas à irrelevância.
O que o Bourdieu nos ajuda a entender é que estamos sempre nesse dilema quando estamos nessas instituições. Isso tem de ser entendido como um elemento que faz com que o jogo seja mais favorável a algumas posições e menos favorável a outras
CC: Recentemente ao escrever sobre seu livro o senhor disse que o Brasil não tem nenhum consenso, mas que tem muito menos conflito do que deveria. O que isso quer dizer?
LFM: Nós vivemos no Brasil um retrocesso político muito acelerado nos últimos anos. O ponto emblemático foi o golpe parlamentar que destituiu a presidente Dilma Rousseff. Mas esse golpe não foi o fim da história. A partir da posse de Michel Temer, temos um processo acelerado de retrocessos nas políticas sociais, em liberdade democráticas e uma série de questões.
Temos hoje um governo que não está preocupado em construir consenso na sociedade. Normalmente aqueles que estão exercendo o poder, se querem que ele seja reconhecido com alguma base democrática, vão dialogar com a sociedade para tentar construir alguma base de apoio nas medidas que vão ser implementadas.
Ele não foi eleito, não tem legitimidade para estar onde está, mas empurra goela abaixo da sociedade políticas que são amplamente rechaçadas por ela. O caso da reforma trabalhista é um exemplo e a reforma previdenciária é outro. Não se busca uma discussão com a sociedade pra tentar atingir algum modelo que seja pelo menos aceito por uma boa parte dela. Não existe essa preocupação com o consenso.
Ao mesmo tempo nós temos muito pouco conflito porque a resistência da oposição a essas políticas tem sido muito fraca. Tivemos algumas tentativas. A greve geral de 28 de abril teve alguma repercussão, mas, de maneira geral, diante do tamanho dos retrocessos das políticas sociais, o que vemos é pouca resistência e muito pouco conflito político. Estamos numa situação em que boa parte da sociedade está anestesiada, descrente na possibilidade de resistência.
CC: O Congresso deve fracassar na tentativa de fazer uma reforma política. Como o senhor analisa esse processo?
LFM: Temos aí uma situação na qual a elite política vem tentando arranjar uma solução que serve a ela mesma, mas que não leva em conta nenhum outro interesse social. Claro que se pensarmos em reforma política, há muita coisa pra ser mudada no Brasil, mas essa reforma que estão tentando fazer não toca em várias de nossas questões centrais, por exemplo, os meios de comunicação de massa, que são centrais no funcionamento do debate político.
CC: Durante o debate alguma figuras falaram sobre o parlamentarismo. O que o senhor acha dessa ideia?
LFM: Veio a ideia do parlamentarismo e, para dourar a pílula, estão chamando de semi-presidencialismo. Isso nada mais é que outra tentativa de tirar poder da Presidência da República e ampliar os poderes desse Congresso. Isso já foi rechaçado em dois plebiscitos, em 1963 e em 1993, e querem fazer passar agora sem consulta popular.
O parlamentarismo retira da vida política brasileira o único momento em que de fato nós temos alguma discussão sobre projeto nacional, que são as eleições presidenciais. As eleições para o Congresso tendem a ser dominadas por uma política pequena, uma política de vizinhança, de favorecimento de interesses corporativos.
Você não discute um projeto nacional normalmente numa campanha para o Congresso, isso é discutido na eleição presidencial. Mas aqueles que estão controlando o poder no Brasil hoje sabem que o projeto que pretendem implantar, um projeto de desnacionalização da economia e da retirada do compromisso do Estado com a redução da desigualdade social, não ganha eleição no Brasil.
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Reportagem por por Bruno Pavan Almeida — publicado 30/09/2017
Fonte: https://www.cartacapital.com.br/politica/boa-parte-da-sociedade-esta-anestesiada-descrente-na-resistencia