sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Alegria proscrita

Dança:
Livro da americana Barbara Ehrenreich analisa o desprezo e a repressão das elites
às manifestações corporais de êxtase coletivo.
Divulgação
Barbara Ehrenreich

O relato da evolução de um bloco carnavalesco pelas areias da praia de Copacabana foi a escolha da americana Barbara Ehrenreich para ilustrar a integração democrática de estranhos movidos apenas pelo júbilo coletivo proporcionado pela dança. "Não havia nenhum objetivo naquilo. (...) era apenas a chance, da qual precisamos cada vez mais neste mundo abarrotado, de reconhecer o milagre da nossa existência simultânea em algum tipo de celebração", escreve em "Dançando nas Ruas - Uma História do Êxtase Coletivo" (Record, 378 págs., R$ 54,90), um estudo sobre a repressão que as manifestações de dança sofrem até hoje.

"Em algumas regiões do Hemisfério Norte, a manutenção da dança como expressão popular de alegria foi perdida, mas a luta continua, pois as pessoas estão sempre inventando ocasiões para festejar e dançar nas ruas", acredita a escritora, que lamenta as poucas oportunidades que tem para dançar, hábito cultivado desde a juventude, nos anos 60. "Nunca fui uma grande dançarina, mas sempre tive imenso prazer em dançar", contou ao Valor.

Guilherme Gonçalves/CPDoc JB/Folhapress
Folia em rua do Rio:
festas de Carnaval e eventos promovidos para multidões,
como a Love Parade,
ainda serão vistos com preconceito por muito tempo,
acredita a escritora

Filha de um mineiro, ela estudou química e fez mestrado em física e doutorado em biologia antes de tornar-se jornalista e escritora. Articulista de importantes veículos feministas, como a revista "Ms", Barbara é uma pesquisadora diletante de hábitos sociais, tendo trabalhado como garçonete e arrumadeira quando reunia material para o livro "Miséria à Americana" (Record), sobre os trabalhadores que vivem com baixos salários nos Estados Unidos. Seu último trabalho, "Bright-Sided - How the Relentless Promotion of Positive Thinking Has Undermined America", ainda inédito no Brasil, trata da cultura do pensamento positivo em seu país e quanto a pressão para obter felicidade pode causar frustrações e mais estresse.

"Quando nos concentramos em alcançar o nebuloso objetivo da felicidade, uma noção abstrata, que envolve uma série de acontecimentos e realizações para ser mensurada, estamos nos esquecendo de buscar algo bem mais próximo, que é a alegria. Essa nossa preocupação com felicidade, ao menos nos Estados Unidos, reflete a diminuição das oportunidades para a alegria coletiva real experimentada por variedades de dança que vemos hoje nas ruas", afirma.

Se hoje encontrar a felicidade é uma obsessão para os ocidentais, nem que seja à custa de medicamentos, a alegria desencadeada pela dança foi combatida severamente durante séculos. A repressão não era só religiosa, mas também dos colonizadores que invadiram os continentes americano e africano. Cientistas, como Charles Darwin, escritores, como Joseph Conrad, e navegadores, como James Cook, juntavam-se aos missionários que chegavam às colônias ao condenar as danças coletivas por seus aspectos sensuais, catárticos e desprovidos de sentido.

A Europa vivenciava, então, uma fase totalmente melancólica, com alto número de suicídios, após experimentar o controle da euforia das manifestações carnavalescas e festivas desde a Idade Média, proibindo o uso de máscaras e fantasias nas festas, embora danças de salão e apresentações de balé fossem admiradas pela aristocracia. Na virada para o século XX, quando os bailes já eram comuns a todas as classes sociais, a dança permanecia malvista até por vanguardistas, entre eles Sigmund Freud. "Como outras pessoas de sua classe, Freud demonstrava aversão a qualquer festa popular que envolvesse classes inferiores", afirma Barbara, lembrando que a psicologia privilegia o universo do indivíduo.

Se hoje encontrar a felicidade é uma obsessão para os ocidentais,
nem que seja à custa de medicamentos,
 a alegria desencadeada pela dança
foi combatida severamente durante séculos.

Descrevendo os aspectos neurológicos que ativam os movimentos quando ouvimos música, como balançar o corpo e marcar o ritmo com pés, ela destaca os aspectos associativos da dança. Inscrições rupestres e pinturas medievais retratam esses momentos de encontro coletivo, quando o isolamento é rompido e os laços comunitários são reforçados. "Não há imagens nas cavernas de pessoas conversando, mas sempre envolvidas em atividades coletivas", diz Barbara, que credita o preconceito contra a dança ao temor de sacerdotes, governantes e colonizadores com a identificação entre os membros do grupo, fortalecida pelos rituais que levavam ao que o sociólogo Emile Durkheim chamava de êxtase coletivo.

"Até recentemente, as religiões eram centradas em rituais dançantes, que envolviam máscaras, fantasias e festas. Algumas vezes, os fiéis entravam em transe por causa da dança, sentindo que haviam feito contato com divindades ou espíritos. Durkheim chegou a sugerir que a ideia de divindade se originou nesses rituais. Pelo que consegui perceber, a hostilidade em relação aos rituais que tinham dança está associada, na Antiguidade, à ascensão do militarismo. Essa é, provavelmente, a razão pela qual os hebreus antigos adotaram celebrações religiosas mais discretas e explica a repressão, em Roma, do culto a Dionísio, no século 1º", diz.

Para a escritora, o desprezo pela dança evoluiu até os dias de hoje, embora as elites aos poucos deixem de lado a posição de espectadores para absorver alguns de seus aspectos em manifestações que também servem como válvulas de escape para o estresse diário, entre elas os esportes. "Houve trocas de posição entre as classes sociais e as etnias sobre quem tem o direito de se divertir. Em Trinidad, o Carnaval, originalmente, era uma festa apenas de brancos. Depois da emancipação dos escravos, tornou-se um evento dos negros, com tentativas de brancos de domesticá-lo e reincorporá-lo, no início do século XX. Isso também aconteceu com o rock nos Estados Unidos, que começou como uma música racial, dos negros. Ao ser interpretado por Elvis Presley e outros brancos, o rock se universalizou."

As festas de Carnaval e eventos promovidos para multidões, como a Love Parade, ainda serão vistos com preconceito por muito tempo, acredita Barbara, mesmo que celebridades procurem aderir a eles, um fenômeno típico da era do espetáculo. Até a nobreza quer demonstrar apreço pelas manifestações populares, lembra a pesquisadora.

Na Copa do Mundo deste ano, artistas como os roqueiros Sting e Mick Jagger assistiram a partidas de futebol ao lado do ator Leonardo DiCaprio e dos príncipes ingleses Harry e William. A rainha da Espanha e o príncipe da Holanda acompanharam a final da tribuna de honra, torcendo discretamente.

Barbara não sabe se o comparecimento das elites aos acontecimentos esportivos seria genuína ou uma busca de aproximação para angariar popularidade e respeito das massas trabalhadores. Da mesma maneira, as elites ainda perceberiam as festas populares, entre elas o Carnaval, como espetáculos. "Lembro-me de haver lido que nos anos 70 os ricos que moravam no Rio deixavam a cidade para evitar o Carnaval."
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Por Olga de Mello, para o Valor, do Rio
Fonte: Valor Econômico online, 06/08/2010

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