sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Brasilianistas brasileiros

Capa:
Universidades americanas e europeias
vêm buscar no país jovens professores
para assumir espaço antes ocupado
por estrangeiros.

Edson Ruiz/Valor

José Luiz Passos, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, que viajou em julho a Salvador:
multidisciplinaridade exige do professor, no exterior, "muito jogo de cintura"

Há dois anos, o endereço profissional da professora de literatura brasileira Marília Librandi Rocha ficava em Vitória da Conquista, na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). Desde janeiro de 2009, Marília atende em sua sala na Universidade de Stanford, na Califórnia. Se no interior do Brasil se sentia imersa numa realidade difícil, de repente viu-se transportada para uma situação bem diferente: tornou-se a maior referência do país para seus alunos e colegas americanos. "Sou a única representante do Brasil aqui", conta Marília, por telefone. Doutora em literatura comparada na Universidade de São Paulo (USP), ela trabalhou quatro anos na Uesb até ser convidada por Stanford.

Sua mudança, no entanto, se insere num movimento mais amplo: assim como em seu caso, são jovens professores brasileiros que têm conquistado no exterior, especialmente nos EUA, postos antigamente ocupados pelos especialistas locais, os tradicionais brasilianistas. Além de Stanford, há brasileiros em condição semelhante em outras universidades americanas importantes, como Princeton, Yale, Chicago, Califórnia, Vanderbilt. Mas também marcam presença na Europa, em universidades da França ou da Inglaterra. Aos poucos, começam a redesenhar novas visões do Brasil a partir do exterior.
Gustavo Lourenção/Valor
Emanuelle,...

Radicar-se em outra terra provoca, desde o início, um impacto relevante, como escreveu o professor Pedro Meira Monteiro, de Princeton, num ensaio inspirado na sua experiência acadêmica: "Saio do país, mas levo-o comigo, embora seja inevitável que este país que eu levo vá se desfazendo pelo caminho". O texto, intitulado "A primeira aula, o vazio e a literatura", é o capítulo inicial de um livro ainda em preparação. Encontra-se disponível no site do programa Conexões, de mapeamento do ensino literário e cultural sobre o Brasil em universidades no exterior, realizado pelo Itaú Cultural. "Publicá-lo on-line é uma espécie de chamada para que se pense coletivamente a questão do vazio que devemos enfrentar quando se trata da súbita ausência de referências familiares", explicou Monteiro ao Valor.

"A ideia do livro, sugerido pelo Conexões, surgiu do desejo de refletir sobre a singularidade da nossa experiência de professores brasileiros no exterior, para quem a literatura brasileira é um objeto ao mesmo tempo familiar e estranho", diz Monteiro, que acrescenta: "Familiar, porque nos identifica, mas também estranho, porque essa identificação se dá fora da sua órbita convencional - o Brasil e a crítica brasileira. O interessante é que muitas questões e categorias se desestabilizam a partir dessa experiência: o 'canônico', o que é propriamente 'brasileiro' e o sentido, se é que há algum, em seguir buscando um caráter 'nacional' para a produção literária".

Essa nova experiência corresponde a um maior interesse pelo Brasil, que se deve em grande parte a fatores alheios ao ambiente acadêmico. Embora o estudo sobre o país continue periférico, na comparação com o que acontece em relação à cultura hispânica, o professor José Luiz Passos, da Universidade da Califórnia em Los Angeles (Ucla), acredita que aspectos políticos têm contribuído para diminuir o isolamento. "O Brasil vem ocupando cada vez mais espaço na mídia internacional. Tem se consolidado na liderança de um grupo de países emergentes e se destaca no debate sobre questões mundiais. Essa nova posição faz que se busquem mais cursos sobre língua, literatura e cinema brasileiros. Sempre houve interesse pelo Brasil no contexto latino-americano, mas nos últimos anos o país está conquistando novo espaço por conta própria", afirma Passos, por telefone, de Salvador, onde passou julho dando aula a seus alunos americanos.
Gustavo Lourenção/Valor
...Leila e...

Eventos esportivos, como Copa do Mundo e Olimpíada, também constituem um chamariz, acrescenta Leonardo Tonus, professor de literatura brasileira na Sorbonne, em Paris: "É sério. A cultura vem junto com a economia. E os intercâmbios institucionais proporcionam mais visibilidade e interesse. Parece que o governo brasileiro ainda não se deu conta plenamente do retorno potencial desses investimentos".

Nos Estados Unidos, a estrutura da universidade permite uma resposta bastante rápida à nova situação. Na graduação, os alunos são livres para frequentar diferentes cursos até se decidir por uma área principal em sua formação. Segundo Marília, a demanda é variada: "Dou aula sobre autores canônicos, como Machado de Assis e Guimarães Rosa, e sobre MPB e cultura negra brasileira, respondendo aos interesses locais. A questão da mestiçagem no Brasil desperta muita curiosidade. Recebo alunos de economia, negócios, estudos ecológicos. Todos precisam ampliar o leque de conhecimento sobre o país".

A possibilidade de lidar com temas tão diferentes - "que exigem do professor, no exterior, muito jogo de cintura", reconhece Passos - corresponde à estrutura dos departamentos em que dão aula. Em geral, eram antigos departamentos de literatura comparada que, nas últimas décadas, se tornaram centros de estudos culturais, nos quais as letras não são necessariamente preponderantes.

Gustavo Lourenção/Valor
...Ísis, que lecionam em universidades do Tennessee, Arizona e Novo México, respectivamente:
migração leva à adoção de padrões da academia americana.
Assim, Emanuelle e Ísis acabaram por dedicar-se à "afro-literatura";
já Leila enfrenta limites nos estudos sobre o Brasil
por causa da forte presença da cultura hispânica
no Estado onde trabalha

No caso de Passos, formado em sociologia, essa situação facilitou a escolha da literatura como campo principal - ele é romancista, autor de "Nosso Grão mais Fino" (Alfaguara), pesquisa autores brasileiros que se destacam fora do eixo Rio-São Paulo, como Ronaldo Correia de Brito e Francisco Dantas, e autor de uma obra importante sobre Machado de Assis, "O Romance com Pessoas" (Edusp).

Bruno Carvalho, de 28 anos, de Princeton, um dos mais jovens brasileiros dando aula em cursos de estudos culturais nos EUA, finaliza um livro no qual também se beneficiou desse cruzamento de disciplinas. Com o título (provisório) "Cidade Porosa - Espaços Culturais Afro-Judeus no Rio de Janeiro", a obra analisa as "porosidades" no espaço urbano do Rio, do século XIX até 1945, tendo como foco as populações excluídas - de negros, judeus e até ciganos - que viviam na Cidade Nova (bairro carioca onde hoje fica o Sambódromo, colado ao centro).

Estudos sobre história, literatura, planejamento urbano, música, entre outros, ajudaram a compor o trabalho, que, embora ainda inédito, já foi mencionado elogiosamente pelo professor José Miguel Wisnik, da USP, em aula-palestra sobre o Rio de Machado de Assis, dada recentemente na capital carioca. Wisnik citou a pesquisa de Carvalho como uma das principais referências no tema.

Ruy Baron/Valor
Leonardo Tonus, professor da Sorbonne:
na França, não há o viés culturalista dos EUA e os estudos sobre o Brasil
se inserem no âmbito da comunidade lusófona

"O olhar do exterior facilita perceber peculiaridades que muitas vezes não veríamos de outra forma. Procurei inverter perspectivas: ler os urbanistas como se realizassem literatura, e a literatura como se fosse produzida por urbanistas. No Brasil, há departamentos de letras que começam a trabalhar sob essa perspectiva [mais culturalista], mas nos EUA são bastante comuns estudos desse tipo", afirma Carvalho, o primeiro brasileiro a obter o título de doutor em letras pela Universidade de Harvard, sob orientação de Nicolau Sevcenko, professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP). "A presença de Sevcenko em Harvard é sinal desse novo interesse em relação ao país. O Brasil está sendo levado a sério como nunca havia sido. Há uma nova geração de brasileiros nos EUA que dialogam tanto com os americanos quanto com os outros estrangeiros. Muita coisa ainda vai acontecer."

A migração, que exige quase cotidianamente dos professores o exercício de "pensar o Brasil", também os leva a adotar os paradigmas da academia americana. Um exemplo são os estudos que se baseiam em gêneros, como os de "afro-literatura", denominação que começa a se empregar também em pesquisas realizadas no Brasil.

Emanuelle Oliveira, professora da Universidade de Vanderbilt, em Nashville, no Estado do Tennessee, é autora de "Writing Identity - The Politics of Contemporary Afro-Brazilian Literature" (Purdue University Press), sua tese de doutorado na Ucla. "Até hoje, é um dos poucos livros, nos EUA e no Brasil, já escritos sobre o tema", afirma a professora.

Leo Pinheiro/Valor
Bruno Carvalho, de Princeton,
o primeiro brasileiro doutor em letras por Harvard,
orientado por Nicolau Sevcenko, da USP:
"O Brasil está sendo levado a sério como nunca havia sido"

Uma de suas principais interlocutoras nos EUA é Isis Costa McElroy, também brasileira (herdou o sobrenome do irlandês com quem foi casada), especializada em cultura "afro-brasileira" e professora na Universidade do Arizona - que vem sofrendo severas restrições orçamentárias, mais comuns nas instituições públicas que nas privadas, mantidas em grande parte por fundos particulares. Em suas aulas, Isis enfrenta reações inusitadas: "Tenho alunos mórmons que vão ao Brasil como missionários, e não aceitam o que consideram 'a volúpia brasileira', 'o pecado brasileiro'. Quando discuto autores mais recentes, como Caio Fernando Abreu e João Gilberto Noll [na obra de ambos há a presença do tema da homossexualidade], eles sentem muita dificuldade, 'contaminados' pelo pecado".

Na Universidade do Novo México, Estado vizinho ao Arizona, a professora gaúcha Leila Maria Lehnen, que pesquisa a literatura brasileira contemporânea, enfrenta problemas que se assemelham aos de Isis, especialmente no que se refere a cortes orçamentários. "Os estudos sobre o Brasil ainda são muito limitados na universidade, onde a presença da cultura hispânica é fortíssima, até pela proximidade geográfica com o México."

Para romper barreiras, a Universidade de Stanford, segundo Marília Rocha, requer dos alunos projetos comparativos entre a cultura brasileira e a hispânica. "Como professores brasileiros no exterior, temos a missão de expandir as pesquisas. Não acredito na divisão entre uma cultura e outra, com professores de literatura que trabalham apenas com textos do Brasil".

Na França, a perspectiva é diversa. Leonardo Tonus explica que os estudos sobre Brasil - nos departamentos de literatura, sem o viés culturalista dos EUA - se inserem no âmbito da comunidade lusófona, o que inclui Portugal e países africanos. "Fazemos questão de preservar essa estrutura". Nos dois casos, são exemplos de como o país se redesenha a partir do deslocamento acadêmico - com impacto dentro do próprio Brasil.

Nesse intercâmbio, porém, nem sempre há aspectos positivos a assimilar, acredita João Cezar de Castro Rocha, professor de letras da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), que acaba de voltar de uma temporada de cinco anos no exterior, em universidades da Alemanha e da Inglaterra. O risco maior, em sua opinião, é a importação de modelos de maneira acrítica.

Sua maior restrição é em relação ao viés culturalista. "O paradigma dos estudos culturais relega a literatura a segundo plano e dá ênfase ao audiovisual e ao digital, temas que deveriam ser estudados sobretudo na comunicação. No meu caso, posso falar de cinema informalmente, tomando um café, mas não tenho instrumental técnico para falar em aula da montagem de um filme. Fazendo isso, correria o risco de uma perda básica de critério acadêmico. Gosto muito da universidade americana, viajo muito para lá, onde há um conjunto de auxílios a pesquisas que não temos no Brasil. Eles possuem um modelo de excelência difícil de reproduzir aqui."

Pedro Meira Monteiro analisa prós e contras do modelo americano: "A presença dos estudos culturais, forte nos EUA e relativamente fraca no Brasil, pode ser benfazeja, porque areja a cultura estritamente literária e traz outros objetos - o cinema é só um deles - para a discussão. Mas, ao mesmo tempo, pode significar a perda de uma densidade analítica que é mais que nunca necessária, e a velha tradição filológica, de análise textual, ainda pode garantir. Sou meio conselheiro Aires nisso: nem tanto cá nem tanto lá. Há que aprender com os estudos culturais, mas não convém abandonar a tradição de análise textual".

Mesmo assim, a questão é fundamental, acredita Monteiro: "Se há algo que pode ser interessante no trabalho que se faz fora do Brasil, com os objetos 'brasileiros', é justamente a aceleração desse debate, explodindo o campo do estritamente 'literário'. Mas há que tomar cuidado, porque junto se explode um conhecimento que os críticos culturais não deveriam desprezar. O saber humanístico não é, ainda, um objeto obsoleto. Mas exige tempo - um tempo que as pessoas não possuem mais".

Castro Rocha, consultor do programa Conexões, diz que, além da maior presença de brasileiros dando aula no exterior, o mapeamento verificou um aumento considerável de interesse pela literatura contemporânea, no lugar apenas dos clássicos. Além disso, começa-se a superar o exótico: "O pitoresco perde terreno. A literatura urbana tem despertado cada vez mais atenção, e isso permite uma certa abordagem comparativa, por exemplo entre a experiência urbana de São Paulo e a de Nova York, entre Luiz Ruffato e Paul Auster, quem sabe".

Ao ganhar o mundo, o maior desafio dos professores brasileiros, segundo Castro Rocha, não é tanto tornar a divulgar o Brasil, mas superar em si mesmos, definitivamente, "a colonização cultural" - numa espécie de linha de frente também para os que ficam: "Minha geração [ele tem 45 anos] desmitificou o estudo no exterior. Pudemos conviver com grandes mestres, como René Girard, Roger Chartier, Hans Ulrich Gumbrecht, Derrida. É diferente do modelo da geração anterior. Mas, infelizmente, ela não foi capaz de dar o salto dialético. Conviveu com essas pessoas, produziu com elas, mas não deu o passo seguinte, que consiste, sem nenhuma espécie de xenofobia, mantendo-se absolutamente 'à la page' com o mundo, em pensar realmente com a própria cabeça, em abandonar de vez o provincianismo. Tenho a esperança, sincera, de que a geração hoje com 25 anos realmente consiga dar esse salto".
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Por Rachel Bertol, para o Valor, do Rio
Fonte: Valor Econômico online, 06/08/2010

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