sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Por que ser pobre?

Entrevista:
O economista Paul Romer acha possível criar cidades onde
tudo funcionaria na direção do desenvolvimento
- sob governo estrangeiro.

Divulgação
Romer sugere que o Brasil assuma um papel geopolítico renovador,
colocando-se no centro do sistema que imaginou

É possível convencer o governo de um país a abrir mão da administração de partes de seu território para entregá-las a uma administração estrangeira? O economista americano Paul Romer, professor em Stanford e indicado em 1997 pela "Times" como um dos 25 americanos mais influentes do mundo, acha que cidades autônomas, assim criadas, são viáveis - politicamente, inclusive -, e poderiam constituir uma solução para países de menor renda ganharem capacidade própria de crescimento, com o apoio de um outro país, em estágio superior de desenvolvimento. Seria um modo de substituir a costumeira e simples ajuda, bilateral ou proveniente de organismos internacionais, pelos benefícios do investimento vindo de fora. Os recursos - também na forma de tecnologia - seriam atraídos pela funcionalidade de um sistema produtivo-administrativo, implantado naqueles núcleos autônomos, regido por regras estabelecidas em contrato firmado entre o país concedente e o disposto a assumir responsabilidades de governança. No seu projeto, esses espaços de racionalidade tecnoburocrática são chamados de "charter cities" - cidades governadas nos termos de uma "carta" contratual.
Romer entende que o Brasil é um dos países "mais interessantes" para gerenciar essas cidades autônomas e que seria plausível aplicar a ideia no Haiti, por exemplo, que ele considera um candidato potencial para aplicação da ideia. Mas o mesmo modelo serviria para uma espécie de ocupação preservacionista da Amazônia. É uma proposta ousada, sem dúvida, que dificilmente não seria associada a inspirações de natureza neocolonialista. Romer nega validade ao juízo, enquanto explica do que se trata com a autoridade e respeitabilidade granjeadas como renovador da teoria do crescimento econômico.
Aos 55 anos, grisalho, mas com uma expressão jovem e olhos que brilham quando explica o potencial que enxerga nas suas "charter cities", Romer conversou com o Valor numa cafeteria, em Washington.
AP
Romer vê o Haiti, devastado pelo terremoto recente, como um país onde faria todo sentido a criação
de uma cidade autônoma sob administração brasileira


Valor: O que é exatamente uma cidade autônoma?
Paul Romer: A cidade pode ter várias formas. O que há em comum é um pedaço de terra desabitado e de tamanho suficiente para abrigar uma cidade, um acordo que estabeleça as regras que vão governar esse local e a liberdade para que residentes, investidores e empresas possam ir e vir. Um país doa a terra para a construção da cidade e muitas vezes também é de lá que virão os residentes. Ou a maior parte deles. Outro país ou um grupo deles terá o papel de garantidores, espécie de fiadores de que as regras serão cumpridas e respeitadas.

Valor: Não é uma espécie de neocolonialismo?
Romer: Não. A grande diferença é que todos os passos seriam absolutamente voluntários. Há sugestões para que se construa uma dessas cidades no Haiti. Para isso, o governo do Haiti e de outro país, o Brasil, por exemplo, teriam que negociar os termos em que a cidade seria administrada e encontrar um local que não é habitado ou onde a população é esparsa o suficiente para ser desapropriada e devidamente compensada ao sair. Então, todas as pessoas que fossem morar nessa cidade o fariam voluntariamente, ninguém seria obrigado a morar lá ou submetido a regras com as quais não concordasse. Isso é absolutamente diferente de qualquer experiência colonial ou das invasões militares dos Estados Unidos no Haiti.

AP

Hong Kong, mantida por 155 anos sob domínio do Reino Unido,
 pode ser tomada como um bom exemplo de cidade
que cresceu sob regras eficazes


Valor: Ainda assim, significaria abrir mão de soberania em favor de um outro país. Isso é factível?
Romer: Não defendo nenhuma mudança de fronteiras, que é o que define soberania. Trata-se de controle administrativo. E isso já existe. Alguns países, por exemplo, contratam empresas ou organizações sem fins lucrativos para cuidar da aduana.

Valor: Por que o senhor sugere um acordo desse tipo entre o Haiti e o Brasil?
Romer: O Brasil está assumindo um papel muito maior no cenário mundial - economica e politicamente. Um projeto que envolva a parceria entre duas nações teria muito mais ressonância se um país em desenvolvimento fizesse um acordo com o Brasil. O Brasil foi uma colônia e não um colonizador. Isso resolveria uma das principais preocupações dessa proposta: a de que se recriem as péssimas experiências de países ocidentais desenvolvidos, tentando, de alguma maneira, tomar conta das pessoas em outros países.

Valor: Como funcionaria essa cidade autônoma gerenciada pelo Brasil no Haiti?
Romer: Poderia ser o que eu chamo de "modelo banco central". O administrador da cidade seria nomeado como o presidente de um banco central. Essa pessoa teria uma missão clara a cumprir, que seria definida pelos governos brasileiro e haitiano. Poderia haver um mandato fixo, de quatro ou seis anos, depois do qual esse executivo seria avaliado. O Haiti talvez não tenha uma democracia consolidada em 15 ou 20 anos, mas o Brasil claramente tem e poderia, com isso, garantir um controle democrático efetivo na cidade. É como se você fixasse uma "meta de inflação" e deixasse o administrador tomar a decisão sobre a taxa de juros. Ele teria bastante flexibilidade para tomar as decisões necessárias para cumprir o mandato que lhe foi dado.

Valor: Então a cidade seria um "mini-Brasil" dentro do Haiti, com as mesmas leis e regras brasileiras?
Romer: Essa seria uma decisão dos dois governos. Imagine que, para atrair investidores para a nova cidade, as disputas comerciais fossem adjudicadas de acordo com a lei britânica, que é tradicionalmente considerada um modelo internacional. Já a legislação criminal poderia ter bases no modelo de outro país. A ideia é usar o que já foi testado e funciona. O que for mais efetivo para garantir a criação de empregos. Em vez de se ficar limitado a experiências históricas, estaríamos testando para ver o que funciona.

Valor: Os cidadãos dessa cidade poderiam votar para garantir esse controle democrático?
Romer: Num primeiro momento, nem haveria pessoas lá para votar, já que a cidade começaria do zero. Então, seria necessário começar com um administrador que fosse nomeado. É preciso lembrar que as pessoas tiveram disposição de ir para Hong Kong [que esteve sob a tutela do Reino Unido durante 155 anos] onde não podiam votar. Outros procuram hoje oportunidades em lugares, como Dubai, onde são tratados como cidadãos de segunda classe. A ausência do voto não impediria as pessoas de ir para essa nova cidade, mas, se fosse introduzido gradualmente, acho que se construiria uma democracia mais efetiva.

Valor: O acordo teria uma data para acabar?
Romer: Isso dependeria dos dois países. O Haiti pode querer que a cidade seja reintegrada ao país depois de certo número de anos. Dessa forma, a maior parte dos residentes teria necessariamente que ser haitiana. Mas se o país quisesse construir uma cidade como Hong Kong, com 10 milhões de habitantes, teria que atrair gente de todo o Caribe e América Central. Para o Haiti, ter uma cidade que se transforme no "hub" de toda uma região pode ser tão benéfico que o país pode decidir não reintegrar essa cidade.

Valor: Os custos de construir uma nova cidade são altos. Quem pagaria por eles?
Romer: A cidade se pagaria por meio do aumento do valor da terra. A autoridade administrativa seria dona da terra e poderia alugar para investidores interessados em se instalar na nova cidade. O governo de Cingapura faz isso: aluga a terra para investidores. O administrador também poderia recorrer a investidores privados para construir a infraestrutura de água, eletricidade, até mesmo ruas. Para isso, teria que negociar tarifas e regras que pudessem ser garantidas por décadas futuras. Até esse momento, o Brasil não teria gasto nada. É claro que precisaria pagar os salários das autoridades locais, juízes, policiais, professores etc. Mas também receberia pelo serviço prestado como administrador. O interessante nesse modelo é que embute os incentivos para que a cidade seja bem administrada. A autoridade investe em educação, não por um dever moral, mas porque uma força de trabalho mais preparada significa salários mais altos e empresas dispostas a pagar mais pelo espaço que ocupam ali.

Valor: Que benefícios o Brasil teria, além de receber pela administração?
Romer: O Brasil precisa se perguntar que tipo de papel vai querer ter no cenário mundial. Um deles pode ser o de fazer as coisas de sempre e se sair bem na foto. É isso o que a maioria dos países faz hoje - manda o dinheiro e diz as coisas certas. Mas todos os que estão fazendo isso não estão conseguindo quase nada. Outra alternativa é o Brasil se comprometer a melhorar as condições de vida num país e até mesmo numa região. E mostrar que isso pode ser feito por meio de um novo modelo. É claro que, quando os objetivos são ousados, há riscos, mas os benefícios podem ser tão grandes que vale a pena.

Valor: O Haiti tem condições de negociar um acordo como esse num momento tão difícil para o país?
Romer: Não tenho certeza se o governo do Haiti atualmente tem independência e força suficiente para tentar um acordo voluntário desse tipo. É uma questão em aberto.

Valor: O senhor já tratou desse assunto com o governo brasileiro?
Romer: Ainda não.

Valor: O senhor escreveu um artigo sobre como a criação dessas cidades poderia ajudar na preservação de florestas na Indonésia. O raciocínio também vale para a Amazônia?
Romer: Sim. A urbanização ajudaria muito a preservação e o reflorestamento no mundo todo. O que as pessoas querem é a chance de uma vida melhor. E se a única maneira para isso é cortando árvores, vão cortar. Mas se tiverem a chance de trabalhar numa fábrica, mandar as crianças para uma escola, vão fazer isso. Se forem construídas cidades habitáveis e com um padrão de vida que essas pessoas possam pagar, vão morar lá.

Valor: O senhor cita Hong Kong como o exemplo mais próximo do que seria uma cidade autônoma bem-sucedida. Por que, então, Macau não atingiu o mesmo desenvolvimento?
Romer: Se um grande número de cidades autônomas for fundada, como recomendo, algumas não vão dar certo. Mas esse é um risco com o qual eu acho que podemos conviver. Há também algumas lições que podem ser aprendidas da experiência em outras ex-colônias inglesas e em Macau. Hong Kong foi única porque o mandato dado ao governador-geral era para fazer a ilha crescer tanto em termos de população quanto de PIB per capita. Não era para viabilizar negócios lucrativos para empresas inglesas ou para extrair riquezas. O cálculo que os ingleses fizeram é que, se a cidade fosse um sucesso, conseguiriam renovar o acordo com a China. Isso mostra que, se o executivo de uma cidade tiver o mandato correto, pode fazer coisas bastante boas. Se não, há exemplos mais que suficientes do que pode acontecer de ruim.

Valor: O senhor diz que Hong Kong serviu de modelo para as zonas econômicas especiais na China continental, mas foi o próprio governo chinês quem implementou o projeto. Por que, no caso das cidades autônomas, seria preciso a interferência de outro governo?
Romer: Um dos motivos é escala. Alguns dos países mais pobres do mundo têm uma população total de 2 ou 5 milhões de pessoas e não teriam escala para uma cidade com um aeroporto que fosse um "hub" para rivalizar com qualquer outro no mundo. Além disso, a China, quando iniciou as zonas econômicas, já tinha alcançado coisas básicas, como uma criminalidade sob controle. Alguns países não conseguem garantir nem isso hoje. Nesse caso, talvez seja mais rápido fazer parcerias com outros países.

Valor: A crise financeira afetou os países mais desenvolvidos e supostamente com as melhores regras. Isso não mostra que copiar as normas de um país para outro pode não ser a melhor solução?
Romer: Se eu estivesse trabalhando num acordo para o funcionamento de uma das cidades autônomas, não teria o sistema financeiro dos Estados Unidos como inspiração. Olharia com muito mais atenção o que Canadá, Índia ou Brasil fizeram. Uma cidade autônoma de sucesso não será um lugar onde as regras são impostas por algum ditador e não há legitimidade. Imagine uma cidade que garanta absoluta igualdade entre os sexos. As primeiras pessoas a se mudar para lá serão aquelas que consideram esse princípio correto. Então, em vez de ser uma imposição, essa seria uma regra desenhada para atrair as pessoas que concordam com a ideia. Num segundo momento, a cidade talvez atraia as pessoas que não têm muita certeza sobre se esse conceito funciona, mas estão dispostas a ver como é a vida num lugar assim. À medida que as pessoas vêm e vão e a cidade é bem-sucedida, os conceitos se espalham e isso pode mudar sociedades inteiras.

Valor: O restante da população do país que não conseguir ir morar nessa cidade estaria condenado a condições piores de vida?
Romer: A minha resposta é para que se construa outra cidade e outra e mais outra. Talvez algumas famílias realmente prefiram ficar, já que as normas da cidade não as agradam. Mas o efeito líquido seria empurrar o mundo na direção de melhores práticas e condições de vida.

Valor: Essa não é uma visão muito otimista?
Romer: Historicamente, é assim que tem acontecido. Charles II, rei da Inglaterra, quis ampliar a liberdade de religião, mas foi derrotado pelo Parlamento. O rei deu um domínio nos Estados Unidos a William Penn, um "quaker", e deixou que ele definisse as regras de funcionamento desse território. Penn garantiu liberdade religiosa. Quem é que foi para a Pensilvânia? Os "quakers", mas também os católicos e pessoas de qualquer outra religião que queriam liberdade. De uma hora para outra, a Pensilvânia se transformou no primeiro lugar no mundo onde havia liberdade religiosa e separação entre igreja e Estado. Em algum momento, lugares como Massachusetts e Virgínia tiveram que ceder. Exatamente porque havia competição.

Valor: Como assim?
Romer: O conceito das cidades autônomas é recriar as condições da fronteira americana onde os governos tinham que tratar as pessoas bem. O motivo pelo qual os Estados Unidos se tornaram, de certa forma, progressistas em sua fundação - garantindo às mulheres o direito de propriedade à terra, falando em igualdade para todos ou oferecendo educação universal - não foi porque eram moralmente superiores. Mas porque havia cidades competindo para atrair moradores. Agora vivemos o momento oposto. Há pouquíssimos lugares que aceitam imigrantes e milhares de pessoas em busca de uma oportunidade melhor. Dessa forma, os poucos lugares que permitem a entrada de imigrantes podem tratá-los realmente mal. Então, se um país como o Brasil se dispuser a construir grandes cidades para mudar esse equilíbrio de forças, de tal forma que haja competição por pessoas, todos esses lugares estarão oferecendo condições de vida muito melhores aos seus habitantes.

Valor: Algum país já aceitou a sua proposta?
Romer: O presidente de Madagascar, que é um empresário bem-sucedido e tinha planos ambiciosos para o desenvolvimento do país, estava disposto a tentar. Mas foi derrubado por um golpe. Eu conversei com governos de alguns países ricos que estão cautelosamente otimistas para tentar. Mas há líderes nos países em desenvolvimento que estão dispostos a correr o risco porque com um crescimento de 2% ao ano levarão uma eternidade para chegar ao grau de desenvolvimento que querem.
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Por Leandra Peres, para o Valor, de Washington
Fonte: Valor Econômico online, 06/08/2010

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