segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Darwinismo e o argumento moral de Deus

Michael Ruse*


"Se o tipo de naturalismo moral evolutivo que eu endosso for verdade,
então você pode ter moral,
e Deus não tem nada a ver com isso.
Isso pode não levar ao ateísmo, mas certamente enfraquece
a questão para o teísmo.
Mais uma vez, no conflito em curso entre ciência e religião,
parece que a ciência está do lado dos vencedores,
e a religião tem que bater em retirada."

No meu texto anterior, despertado pela não-diretividade essencial do processo evolutivo darwiniano, eu levantei o que me parece ser um grande problema para aqueles que gostariam de conciliar a fé cristã com a ciência moderna. Quero seguir esse tema em um veio similar, voltando-me agora para a moral, um tema discutido em um interessante texto do The New York Times da última sexta-feira pelo colunista conservador, mas que quase sempre vale a pena ler, David Brooks sobre os fundamentos da moralidade. Ele estava relatando uma recente conferência sobre o tema, em que um grupo de "naturalistas morais" debatiam essa questão. Trata-se da alegação de que se pode dar uma explicação totalmente natural à moral, sem a necessidade de envolver Deus para ditar ou apoiar nossos imperativos éticos. Eu achei isso extremamente interessante, porque – ok, estou falando de mim novamente – o tema tem sido motivo de grande preocupação e interesse para mim desde o dia em que comecei como filósofo, há 50 anos.

Como parte da nossa doutrinação para a profissão, nós, filósofos juniores, fomos ensinados que existem algumas coisas que o mundo comum pensa que são verdadeiras (ou falsas), mas que "nós sabemos melhor". No topo da lista estava a forma mais comum de naturalismo moral, a chamada "ética evolutiva." Aí é onde você argumenta que a "descendência com modificação", como Charles Darwin chamou-a, é a chave para a moral, cuja forma mais comum é aquele monstro do passado, o Darwinismo Social. Nós, pequenos aspirantes a filósofos, aprendemos a considerar todas essas teorias com um sorriso de escárnio. O grande G. E. Moore, em seu "Principia Ethica", demonstrou que todas as tentativas de relacionar a ética à evolução hesitam na "falácia naturalista": a evolução se preocupa com declarações sobre o "ser", alegações sobre matérias de fato, enquanto a moral se refere à declarações sobre o "dever ser".

Como as coisas mudaram! O maior crédito deve ir para o evolucionista de Harvard Edward O. Wilson, que em sua "Sociobiology: The New Synthesis" (1975) simplesmente ignorou os filósofos e declarou que havia chegado o momento de "biologicizar" o assunto. Claro, a evolução tinha que ser relevante para o tema da mais alta importância acerca do que fazemos e do porquê achamos que devemos fazer o que fazemos – ou porque pensamos que não devemos fazer o que fazemos. Embora a resposta da comunidade filosófica, em geral, tenha sido de um silêncio ensurdecedor tingido com desprezo, como evolucionista profundamente comprometido, eu não acho que estava sozinho em minha reação. Como se costuma dizer sobre qualquer boa ideia, primeiro você a ignora, depois você a nega e então você diz que já sabia disso tempo todo. Eu e alguns outros, incluindo o eticista Peter Singer, passamos rapidamente de uma postura de ignorar, para negar e então aceitar – dadas as atitudes de nossos colegas, um pouco como enfrentar a morte em mais de uma forma.

Nem todos nós fomos pelo mesmo caminho. Wilson, como outros eticistas evolucionários anteriores – notavelmente Herbert Spencer, do século XIX, e Julian Huxley (irmão mais velho do escritor Aldous Huxley), do século XX –, queria justificar as afirmações morais com base na evolução. Todas essas pessoas pensam que o processo evolutivo é progressivo: vai do simples ao complexo, da mônada ao homem, como eles costumavam dizer (ou talvez hoje do verme para a mulher), e em seu decorrer o valor aumenta. Obviamente, os seres humanos são de mais valor do que as bactérias ou, levando as coisas para um nível mais alto da escala, do que os trilobitas ou os dinossauros. Assim, a moral pode ser baseada na evolução, e o que devemos fazer é promover a evolução. (As interpretações de como devemos fazer isso são tão variadas quanto a interpretação cristã do Mandamento do Amor. Spencer, um liberal vitoriano à moda antiga, queria promover o "laissez-faire". Wilson, um liberal à la Al Gore da nova moda, quer salvar as florestas tropicais).

O problema, como expliquei no meu texto anterior, é que há muito boas razões para se pensar que, contrariamente às aparências, a evolução darwiniana por meio da seleção natural não é genuinamente progressiva. Eu preferiria ser um ser humano do que uma bactéria ou uma trilobita ou um dinossauro, mas essa é a minha opinião, não a da evolução. Então, qual é a alternativa? Eu e alguns outros pensamos que isso apontava para o que se conhece no comércio como ceticismo ético ou niilismo moral. Talvez não existam fundamentos para a moral! Talvez seja tudo uma questão de psicologia produzida pela biologia, e a moralidade seja apenas uma adaptação para nos mantermos todos felizes e sociais.

Sem dúvida, a moral iria quebrar se em geral nós nos déssemos conta disso, mas depois acrescentamos que parte da adaptação era a convicção de que a moral é justificada – isto é, objetiva, de alguma forma – mesmo que ela seja, de fato, subjetiva. Para usar um termo feio, nós "objetivamos" as afirmações morais. Minha única esperança de um dia entrar no "Dicionário Oxford de Citações" é a minha afirmação (muito amada pelos criacionistas, porque mostra que eles estavam certos sobre mim todo esse tempo) de que a moral é uma ilusão coletiva posta em prática pelos nossos genes para nos fazer animais sociais.

Claro que deveria haver mais coisas nessa história do que isso. Uma coisa que tinha que ser mostrada era que a evolução realmente pode produzir indivíduos morais e não apenas monstros egocêntricos. Essa parte do programa transcorreu sem problemas, com os pesquisadores empíricos mostrando em grandes detalhes como e por que a moral é uma adaptação fantástica para os animais sociais como nós, humanos. Quem lidera essa linha de pesquisa é hoje um pesquisador de Harvard, mencionado por Brooks, o psicólogo e evolucionista Marc Hauser. A questão é que o ceticismo ético é cético com relação aos fundamentos. Isso não significa que você não tenha moral. Pelo contrário, é uma questão de onde ela vem e qual é o seu status verdadeiramente.

Outra coisa que tinha que ser mostrada é que a moral é um caso especial. A razão pela qual nós não passamos na frente de um caminhão em alta velocidade voluntariamente é porque o vemos e o ouvimos. Em outras palavras, usamos adaptações evolutivas como o olho e o ouvido para percebê-lo. Mas, é claro, o caminhão realmente existe. O simples fato de a moral ser algo que surgiu através da evolução – que temos um órgão moral, como diria Hauser – não significa que os objetos de sua reflexão sejam ilusórios.

É claro que isso é verdade, mas a resposta é que, embora possa haver outras formas de sentir o caminhão – ecolocalização, por exemplo –, em última análise, é melhor que você sinta o caminhão de alguma forma. No caso da moral, no entanto, graças à não progressividade da evolução, isso não parece ser verdade. Poderíamos ter desenvolvido sentimentos completamente diferentes para sermos sociais, e o que agora achamos que é verdade, nós poderíamos, então, pensar que seja falso ou estúpido. Eu gosto de fazer referência ao que chamo de sistema de moralidade "John Foster Dulles", em homenagem ao secretário de Estado de Eisenhower. Ele odiava os russos, mas ele sabia que os russos o odiavam. Por isso, ele se acertou com eles. Talvez, em vez de pensar que devemos amar os nossos vizinhos, poderíamos pensar que devemos odiar os nossos vizinhos, mas sabemos que eles sentem a mesma coisa por nós, então nos damos bem. Aqui você pensaria que o Mandamento do Amor é simplesmente estúpido.

É claro que você ainda poderia dizer que o Mandamento do Amor é realmente verdadeiro, mas geralmente não é isso o que você gostaria de dizer sobre moral objetiva. "A moral é objetiva, mas não sabemos o que ela pede de nós e podemos nunca saber o que ela pede de nós". Talvez o sistema de moralidade "John Foster Dulles" é a verdadeira e objetiva moral, e nós, pobres tolos iludidos, pensamos o contrário.


"O argumento moral para a existência de Deus é popular e persuasivo.
Se você não tem Deus, você não pode ter moral.
Mas se o tipo de naturalismo moral evolutivo que eu endosso for verdade,
então você pode ter moral, e
Deus não tem nada a ver com isso.
Isso pode não levar ao ateísmo,
mas certamente enfraquece a questão
 para o teísmo."

Devo dizer que, quando comecei a promover essa posição, em um livro com o título um tanto pretensioso "Taking Darwin Seriously: A Naturalistic Approach to Philosophy" [Levando Darwin a sério: Uma abordagem naturalista da filosofia], os gritos de horror, desprezo e escárnio dos meus colegas filósofos foram tais que ainda podem ser ouvidos no espaço sideral. Felizmente, eu tenho o tipo de temperamento que prospera sobre isso. No meu aniversário de 50 anos, fiz uma colagem de opiniões críticas e enviei-a como convite a todos os meus críticos. Um casal teve o bom humor e o mérito de responder com um agradecimento.

Hoje, embora eu suspeite que ainda seja uma posição minoritária, o tipo de naturalismo evolucionista sobre a moral que eu endosso tem muito mais credibilidade na comunidade filosófica. A convite da Princeton University Press, eu recentemente reuni uma coletânea sobre essas questões e ainda não ouvi que os filósofos estejam organizando um boicote. Acabei de completar o meu 70º aniversário e, mesmo que eu quisesse, não poderia juntar uma colagem semelhante de opiniões críticas.

Mas ao invés de ser apenas presunçoso, eu quero levantar o que me parece ser um ponto muito importante. Parece-me que temos aqui mais do que um desafio à fé cristã como muitos imaginam – e entre esses muitos eu incluo aqueles dentre nós que estão ansiosos para reconciliar a ciência e a religião (nós, os chamados "acomodacionistas"). O argumento moral para a existência de Deus é popular e persuasivo. Se você não tem Deus, você não pode ter moral. Mas se o tipo de naturalismo moral evolutivo que eu endosso for verdade, então você pode ter moral, e Deus não tem nada a ver com isso. Isso pode não levar ao ateísmo, mas certamente enfraquece a questão para o teísmo. Mais uma vez, no conflito em curso entre ciência e religião, parece que a ciência está do lado dos vencedores, e a religião tem que bater em retirada.
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* A análise é de Michael Ruse é professor da cátedra Lucyle T. Werkmeister de filosofia e diretor do Programa em História e Filosofia da Ciência na Universidade Estadual da Flórida. É autor de muitos livros, incluindo uma trilogia sobre a relação ciência-religião. O artigo foi publicado no sítio The Huffington Post, 29-07-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.Fonte: IHU online, 02/08/2010

Um comentário:

  1. Parabéns pelo texto, eu sou teísta e aproveitei bastante sobre o este pensamento, como estou meio cansado agora, diria que deve ter razão, mas vou refletir sobre isto e encontrar uma brecha(i hope) na compatibilidade lógica entre este pensamento e o meu. Mas enfim, não creio que este argumento enfraqueça o argumento moral teísta, mas que diminui o desprezo que os teístas têm da moralidade naturalista, que permanece muito vaga.

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