sábado, 7 de agosto de 2010

Dentro da cidadela

RELIGIÃO E ESTADO

 JOANA BOSAK DE FIGUEIREDO*

Em uma entrevista concedida quando ainda era professor de inglês em Oxford, anos atrás, o professor e crítico literário marxista Terry Eagleton se dizia “um bárbaro dentro da cidadela” por sua dissonância em relação à academia em que se encontrava. Agora, cerca de 20 anos depois, o bárbaro, agora convertido em “grande padre da teoria”, vem aí. Dia 9 de agosto o ciclo Fronteiras do Pensamento recebe o ilustre convidado britânico, para alegria e curiosidade dos amantes da teoria literária.

Atualmente professor de Literatura Inglesa na Universidade Nacional da Irlanda, de Teoria Cultural na Universidade de Lancaster, na Grã-Bretanha, e novamente de Literatura Inglesa na Universidade Notre Dame, de Indiana (EUA), Eagleton iniciou seus estudos em literatura dos séculos 19 e 20, tendo se doutorado em 1967, aos 24 anos, em Cambridge. Muito cedo, travou contato com a faceta marxista da teoria literária a partir do grande representante inglês da área, o histórico Raymond Williams, contemporâneo de Antonio Candido, de quem se aproxima por temas comuns na busca de um objeto e de uma teoria.

A despeito de sua trajetória como verdadeiro ícone dos estudos marxistas nos anos 1970 e 1980, Eagleton já desde os anos 1990 mesclou a seus estudos anteriores uma nova linha que passou a existir nessa época dentro das possibilidades de trabalho em ciências humanas: os estudos culturais.

Assim como seu conterrâneo Eric Hobsbawm fez essa conjunção em seus trabalhos, passando do exame sistemático de grandes eixos da história europeia – as suas “eras”: das revoluções, dos impérios, do capital e das incertezas – à história do jazz , à conjugação aos estudos literários; Eagleton conseguiu transcender a trincheira do marxismo ortodoxo e criar um campo de trabalho mais amplo, criativo e hoje muito mais interessante unindo as pontas do marxismo à desconstrução de Derrida, aos estudos lacanianos e de Julia Kristeva, Edward Said e Pierre Bourdieu, entre outros críticos importantes.

Desde o seu já clássico Teoria da Literatura: uma Introdução, ele propunha que a teoria literária era um campo, se não indecifrável, totalmente inexato, não podendo ser reduzido à mera conceituação de seu objeto: o texto, já que o próprio conceito do que é literatura ou o objeto da literatura, a ficção, é alvo de intensos e extremos debates no meio acadêmico. Mais ainda: Terry Eagleton defendia ardorosamente que a teoria é filha da política, assim como a literatura, herança de seu pai teórico, Raymond Williams. Segundo Eagleton, toda teoria é um conjunto datado de conceitos políticos interessantes a sua época, uma “ideologia política conservadora”.

Se a literatura é, finalmente, um texto imaginário, e sua definição é impossível, o papel da teoria da literatura segue essa linha de raciocínio: mais que nada, a teoria existe para criticar a si mesma e a seu objeto; a fronteira do texto é a inexistência de barreiras. Já diria Oscar Wilde, irlandês pertencente ao cânone literário inglês – também esse conceito extremamente conflituoso e polêmico –, que definir é limitar. Eagleton leva a sério essa premissa, lidando hoje com as fronteiras da cultura: seus temas vão da religião à pós-modernidade, da teoria literária “pura” aos estudos culturais – conceito “guarda-chuva” para diversos campos das ciências humanas hoje.

A engenhosidade de Eagleton, porém, vai muito além do que seu livro mais vendido e conhecido – quiçá, segundo John Mullan, professor de Inglês da Universidade de Londres, em artigo no jornal The Guardian, o livro de crítica literária mais vendido até hoje – o manual Teoria da Literatura: uma Introdução, pode sugerir. Textos como o recente Reason, Faith and Revolution, publicado este ano, pelo selo da Universidade de Yale (EUA), mostram que o autor se aventura pela seara da discussão da razão e da fé na atualidade como poucos.

Em Depois da Teoria (2003), Eagleton discute como a própria teoria se transformou em uma moda sem um fim necessário: o político. Paradoxalmente ao que defendia no manual, Eagleton se ressente de que a ideologia deixou de estar presente na teoria. Segundo ele, os estudantes que antes liam Flaubert sem nenhum tipo de exigência crítica foram apenas substituídos por outros que têm o seriado Friends como objeto de pesquisa.

Mas é em textos como Heathcliff and the Great Hunger, publicado em 1996, pela editora Verso, que Eagleton busca na própria literatura inglesa a matéria prima para construir um livro e uma narrativa primorosos. Partindo de um estudo do clássico O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë, publicado em 1847, Eagleton sai da Yorkshire novecentista analisada por essa irmã para chegar à faminta Irlanda da mesma época, a da Grande Fome, ou Grande Crise das Batatas, como também é conhecida; tempo de uma emigração maciça de irlandeses, principalmente rumo aos EUA.

Segundo Eagleton, Wuthering Heights pode muito bem ser analisado como uma metáfora da sociedade rural inglesa dos Oitocentos, tão brutal, selvagem e faminta quanto sua vizinha menos pretensiosa, a Irlanda, cuja pobreza é bem mais conhecida, revelada e com certeza, menos sedutora.

Ou seja, partindo da própria literatura e dos estudos culturais como um todo orgânico, pode-se dizer que em obras como essa que Eagleton continua completamente marxista: sua abordagem leva em consideração aspectos políticos e econômicos determinantes na história social de um povo e de uma nação; isso não significa que a cultura e a literatura – e ainda mais a literatura feminina do século 19, produzida por Emily Brontë, por exemplo – estejam fora dessa esfera.

Além dos estudos culturais, Terry Eagleton é hoje um teórico marxista muito bem-sucedido: soube revestir sua pesquisa e seu texto com preocupações sociais, calcado em aspectos políticos e econômicos, em uma grande obra que nos atrai pela erudição, sensibilidade e criatividade temática, atributos que só os grandes teóricos têm. Veremos o que “o grande padre da teoria”, um marxista, ainda que ressemantizado, tem a nos dizer sobre Deus e a Revolução.

ALGUMAS OBRAS


TEORIA DA LITERATURA UMA INTRODUÇÃO
Nesta obra, publicada em 1983 e atualizada em 1996, Eagleton analisa os fundamentos da teoria literária do Romantismo à pós-modernidade. Martins Fontes, 248 páginas, esgotado.

AS ILUSÕES DO PÓS-MODERNISMO
Uma crítica ao pós-modernismo sob o aspecto político e teórico, segundo o autor. Tradução de Elisabeth Barbosa, Jorge Zahar Editor, 141 páginas, R$ 34

A IDEIA DE CULTURA
Partindo das abordagens antropológica e estética do termo “cultura”, Terry Eagleton aborda as ideias de choque de culturas e de dialética entre natureza e cultura. Editora da Unesp, 208 páginas, R$ 32.

DEPOIS DA TEORIA
As grandes teorias universalistas, do marxismo ao pós-estruturalismo, deram lugar a um vazio no pensamento ocidental. Partindo dessa premissa, o autor aborda com verve irônica os impasses da filosofia e da cultura em nosso tempo. Civilização Brasileira, 304 páginas, esgotado.

JESUS CRISTO - OS EVANGELHOS
Nesta obra de caráter histórico e filosófico, Terry Eagleton aborda a vida e o pensamento de Jesus Cristo como parte de uma tradição revolucionária. Jorge Zahar Editor, 240 páginas, R$ 36,90.
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*Doutora em Literatura Comparada (UFRGS), docente do StudioClio

joanabosak@gmail.com

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