domingo, 8 de agosto de 2010

“É a política do Irã, não a cultura”

 Entrevista
Azar Nafisi, foto de Tasso Marcelo/AE

Se Azar Nafisi lançasse hoje o livro de memórias O Que Eu Não Contei (Record), ele se chamaria O Que Não Parei Mais de Contar. O comentário a própria autora fez, aos risos (e tosses, estava gripada), durante a conversa com o Estadão, na tarde de ontem. No livro lançado neste ano no Brasil, a autora iraniana (mais conhecida pelo best-seller Lendo Lolita em Teerã) revê a história de seu país a partir das vivências de sua família. Altamente literário, o título ajuda a entender o país de Neda, a jovem que morreu durante os protestos nas eleições fraudulentas do ano passado, e de Sakineh, a mulher condenada à morte por apedrejamento. Nafisi, aliás, é ativa na campanha pela libertação de Sakineh, um dos assuntos sobre os quais fala na entrevista a seguir.

Li seu artigo sobre Sakineh no Huffington Post…
Ah, ele será publicado no Brasil, com um adendo sobre Lula.

O que você diz nesse adendo?
Que é uma pena que o governo do Irã não ouça a voz de um governo que ele chama de amigo. E o fato de que, quando o presidente Lula disse “se essa mulher causa algum desconforto a vocês…”, não é a mulher que causa desconforto a Almadinejah, é Almadinejah que causa desconforto à vida dessa mulher. Digo também que gostei do que Lula disse, que ninguém pode tirar a vida de outra pessoa, que Deus dá a vida e só ele pode tirar. E acho que isso é o mais importante.

Neste caso, acho que o mais chocante é como é brutal a morte por apedrejamento…
Sim. É brutal. Mesmo que o que ele diga é verdade, que ela tenha cometido adultério, a punição do Estado iraniano para isso é uma das coisas mais horríveis. Agora eles dizem: não, não vamos apedrejá-la, vamos mantê-la presa. Isso torna as coisas melhores? Eles deveriam deixá-la ir e pedir desculpas!

O quão comum é esse tipo de morte por apedrejamento no Irã?
Não é muito comum, em parte porque o povo resiste a isso. As leis iranianas sobre as mulheres têm sido muito progressivas. As mulheres iranianas têm lutado por mais de um século. Na época da Revolução de 1979, elas estavam no parlamento. Quando esse governo chegou, elas não podiam mais ser juízas, por exemplo. Conto isso no meu livro (O Que Eu Não Contei), em 1963, minha mãe se tornou a primeira mulher no parlamento. As pessoas no meu país não estão acostumadas a ver as pessoas sendo apedrejadas. Mas isso vem sendo feito desde o começo. Além de Sakineh, há outras pessoas presas para serem apedrejadas. Não sei dizer quantas pessoas, cinco ou seis. Mas, como não é popular, e como um comitê foi formado contra o apedrejamento, e as pessoas desse comitê vem trabalhando muito, a certa altura eles disseram: ok, nós não vamos tirar a lei da Constituição, mas não vamos mais fazer isso. Mas há gente fazendo isso.

Por que você acha que esse caso específico chamou tanta atenção do resto do mundo, se isso vem acontecendo?
Por 30 anos, as pessoas vêm fazendo isso, e só agora o mundo começou a prestar atenção. Estou feliz que estejam prestando atenção agora, mas gostaria que tivessem notado isso antes. Mas o ponto é que por muito tempo a mídia entendeu que as leis iranianas eram a cultura iraniana, e só organizações dos direitos humanos entendiam que não. No ano passado, e é por isso que no meu artigo sobre Sakineh falo também de Neda, quando centenas de milhares de pessoas foram às ruas no Irã, o mundo inteiro viu que as pessoas pensam diferente das leis, e agora as pessoas entendem que essas leis não representam o que o povo pensa. Essas leis são levadas a cabo, e não são boas.

O que você acha que vai acontecer nesse caso?
Não tenho ideia. A experiência tem sido a de que o apoio internacional ajuda, porque o governo não quer que o mundo pense sobre ele dessa maneira. Alguém como o presidente Lula, que representa um governo amigo, e agora até ele vem e diz… Esperamos que o apoio ajude essa mulher, mas nunca podemos ter certeza. Eles podem querer dizer: não importa o que ninguém diz. Isso precisa ser parado. Foi o pedido da família da Sakineh. O filho dela pediu que o mundo se envolvesse. Quando presidente Lula fez aquela declaração, ele disse que esperava que a Turquia fizesse o mesmo.

Na Tenda dos Autores, você e A.B. Yehoshua falarão sobre a literatura em terras de conflito. Você pensou no que gostaria de conversar com ele sobre o tema?
Acho que literatura pode se tornar um veículo para verdade em países como os nossos. Eu gostaria de falar sobre o papel da imaginação e que, não importa de que país você venha, o que nos liga como humanos é a literatura. Árabes, israelistas, iranianos, todos dividem algo da cultura, mas o que tem causado tanto sofrimento aos nossos povos é a política. Será bom falar com ele para mostrar ao mundo que o problema não é das culturas.

Você vive em Washington, e A.B. Yehoshua, que vive em Israel e é sionista, acha que só em seu país é possível viver o judaísmo em sua completude. Acha que seria possível algum pensamento do tipo em relação ao Irã?
Não sei bem o que ele quer dizer com isso. Não venho nenhum tipo de fronteira física. Acho que, sendo do Oriente Médio, você pode viver em qualquer lugar do mundo e entender o que acontece ali. Ele deveria explicar isso. Vamos ver se aprendo algo com ele. Não acho que eu seja menos iraniana por viver em outro país.

Você sempre acaba sendo questionada sobre política em festivais literários. Não sente falta de falar em literatura, só de literatura?
Sim, eu adoraria que isso acontecesse (risos). A única razão pela qual falo sobre política quando as pessoas me perguntam sobre isso é que certas coisas só são bem compreendidas… Não sou política no sentido de não pertencer a nenhum grupo, mas tenho de defender minha integridade como mulher, como ser humano, escritora e professora. E, no Irã, a política interfere em tudo, no jeito como escrevo, como dou aulas.
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Por Raquel Cozer
Fonte: Estadão online, 07/08/2010

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