Martins Altenfelder Silva*
Pode existir desenvolvimento econômico, social e político de uma nação sem obediência aos princípios éticos? Em outras palavras, é possível o desenvolvimento a qualquer custo? Apesar da disseminação da crença em contrário, a História mostra que a resposta é negativa, pois, entendido em seu sentido mais abrangente, o desenvolvimento é impossível sem que dele participem cidadãos honestos, probos e comprometidos com os princípios éticos e morais, gerando um benéfico efeito cascata que, acredito, constitui, se não o único, pelo menos o mais promissor caminho para corrigir as graves injustiças e atenuar as perigosas tensões entre as nações, que marcam este início de século 21.
As reflexões de um dos incontestes líderes mundiais - cujas palavras transcendem a expressiva comunidade católica (perto de 1,2 bilhão de pessoas no mundo, segundo o Anuário Pontifício) - traçam um cenário perturbador, nascido da atual tendência a alijar os conceitos da ética da finalidade maior do esforço humano, que deveria ser a busca da felicidade e da justiça nas relações sociais, e não simplesmente do lucro de vários tipos a qualquer preço, em prejuízo de uma concreta sustentabilidade do desenvolvimento.
Na recente e aguardada encíclica Caridade na Verdade, o papa Bento XVI adverte que, quando prevalece o primado da técnica, a consequência é uma tremenda confusão entre fins e meios: o empresário considerará o máximo lucro na produção; o político, a consolidação do poder; o cientista, o resultado de suas pesquisas; e assim por diante. Em consequência, sob a rede das relações econômicas, financeiras ou políticas, vicejam incompreensões, contrariedades e injustiças, os fluxos dos conhecimentos técnicos multiplicam-se em benefício de seus detentores, enquanto as condições de vida das populações que vivem sob tais influxos - e quase sempre na sua ignorância - permanecem imutáveis e sem assegurar efetiva possibilidade de emancipação.
Como, é evidente, a marginalização da ética constitui uma questão que não respeita fronteiras, ela contamina os princípios que devem reger a convivência entre os povos e, inevitavelmente, resvala para a atual (má) qualidade das relações internacionais. O papa identifica o grande risco de a paz ser considerada uma mera produção técnica, fruto apenas de acordos entre governos ou de iniciativas tendentes a assegurar resultados econômicos. Entretanto, na visão de Bento XVI, a construção da paz exige pertinência nos contatos diplomáticos e, para que tais esforços possam gerar efeitos duradouros, seria necessário que se ancorassem em valores verdadeiros, entre os quais se inclui a capacidade de ouvir a voz das populações interessadas e atender a seus anseios.
Os meios de comunicação, que tiveram seu poder de penetração multiplicadíssimo com a disseminação da internet, também não escaparam do rigoroso crivo da análise papal. Para Bento XVI, "parece absurda a posição dos que defendem a neutralidade da mídia, reivindicando a sua autonomia relativamente à moral". Assim como ocorre com o espírito da lei, sempre mais poderoso do que sua forma, a leitura atenta da encíclica deixa claro que essa orientação não embute uma defesa da censura ao direito à informação, mas trata-se de um chamado à responsabilidade que, se atendido, apenas reforçará a liberdade de imprensa. Afinal, se a imprensa é um dos mais fortes pilares de proteção dos direitos civis, sua atuação não pode ignorar o pressuposto da ética.
A bem da verdade, registre-se que não faltam exemplos dessa postura correta. Um deles é um dos muitos protagonizados por este jornal, que, ao se levantar contra a escalada da impunidade e da corrupção, que se alastram pelo tecido social, está proibido de abordar um caso de interesse público e vem sendo mantido sob censura há mais de 400 dias, sem que haja indício de quando a condenação venha a ser julgada no mérito e, pois, suspensa de direito. E, pior, sem que haja uma reação da sociedade diante dessa ameaça de retorno da censura à informação. Ameaça, aliás, que já se concretizou em vários países, num retrocesso inimaginável há poucos anos, e no Brasil se vem manifestando em iniciativas recorrentes que, em nome de uma pretensa democratização da informação, embute o risco de colocar os meios de comunicação sob o controle ou até, o que é mais grave, a serviço de interesses menores de eventuais detentores do poder público.
Também inevitavelmente, ao seguir sua linha de pensamento com honestidade intelectual, o papa condena os graves desvios e insuficiências do capitalismo expostos pela recente crise financeira global e preconiza a criação de uma autoridade política mundial, com poder para gerenciar a economia global, respeitando os princípios da ética, revitalizando as economias atingidas pela crise e atenuando os desequilíbrios mais intensos. A instituição preconizada seria disciplinada por lei, reconhecida universalmente e investida de poder efetivo para garantir a segurança de todos, com respeito à justiça e aos direitos.
Utopia? Pode ser. Mas aqui vale lembrar que, na História da humanidade, as grandes revoluções benéficas nasceram quase sempre de sonhos aparentemente utópicos de líderes que valorizaram a liberdade, a justiça e a solidariedade. Portanto, creio que é absolutamente pertinente, em especial num momento em que os brasileiros irão às urnas para definir os rumos do País nos próximos anos, insistir em que desenvolvimento e ética são dois princípios inseparáveis e devem constar de todos os programas de governos, assim como integrar os valores a serem seguidos por instituições públicas e privadas que queiram cumprir seu papel social e conquistar o respeito e a admiração da sociedade.
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*PRESIDENTE DO CONSELHO DIRETOR DO CIEE NACIONAL, DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO
DO CIEE-SP E MEMBRO DA ACADEMIA CRISTÃ DE LETRAS
Fonte: Estadão online, 08/09/2010
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