quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Marc Augé - Entrevista

‘O passado já não nos interessa, agora vivemos o presente’,
diz Marc Augé*


O criador da ideia dos “não-lugares”, Marc Augé, analisa os vínculos entre a antropologia e a ficção, mas em sua dimensão temporal. “No paradoxo de não saber utilizar o tempo, não podemos conjugar o passado e o futuro”, assinala.
Marc Augé nasceu em Poitiers, cidade do centro da França, em 1935. Seu objeto de interesse vai do universo pagão da África – as práticas de bruxaria, os profetas curandeiros e os fetiches, na Costa do Marfim e Togo – à observação e o estudo das sociedades ocidentais, os mundos contemporâneos, a “supermodernidade” e os não-lugares.

A reportagem e a entrevista são de Silvina Friera e publicadas no jornal Página/12, 01-09-2010. A tradução é do Cepat.

O olhar de Marc Augé transmite uma clareza meridiana. Não está em um cinema do Bairro Latino de Paris assistindo a um velho filme norte-americano. Está em um hotel de Buenos Aires. Seus olhos irradiam faíscas próximas de uma travessura, de uma evasão. Caminhou pela Feira de Mataderos. “Gostei que não tivesse turistas”, disse o antropólogo francês que confessou em Casablanca (Gedisa) – uma “montagem” de suas recordações sobre o famoso filme – que em sua infância esteve marcada pelo êxodo. Se à noite (em seus sonhos) escapa com toda a força de suas pernas pelas estradas afora – seguindo o seu pai ou o seu fantasma –, parece que tanto nos sonhos como nesse “êxodo” em direção ao cruzamento da Lisandro de la Torre com a Avenida de los Corrales, as pernas de Augé são boas para resistir a qualquer tipo de fuga. De emoções, rostos e paisagens. Nesse lugar “popular” – como o define – viveu um momento furtivo de felicidade quando viu os cavalos, pelos quais sente uma atração irresistível. Algumas imagens, como no cinema, são mais tenazes que outras. Sua escrita também pretende fugir da antropologia para as margens da literatura. Ao menos confirma esse desejo, que alguns leitores intuem em livros recentes como El metro revisitado (Paidós). Também dirá – hoje [ontem] quando abrirá a segunda edição do Festival Internacional de Literatura em Buenos Aires (Filba), às 19h30 no Malba – que “a literatura é mais que a ficção”.

Quando você destaca que “escrever é criar uma experiência ambivalente do tempo” soa a frase de escritor. Como o antropólogo cria essa ambivalência e como acredita que o autor a faz? Vê diferenças?
É uma pergunta difícil, não devido à língua que maltratei um pouco, mas ao tempo (risos). Aparentemente, não há uma diferença radical entre o antropólogo e o escritor, devido ao fato de que o antropólogo tem que escrever. Uma boa antropologia tem que ser escrita porque essa é sua direção última. E essa escrita tem uma relação com o tempo. O que quero dizer com essa coisa de criar uma experiência ambivalente do tempo é que há um passado da experiência de vida que é utilizada tanto pelo antropólogo como pelo escritor, mas que só tem significação na perspectiva do fim. Quando escrevo, espero que ao menos um leitor – um é suficiente – me leia. Porque se escrevo, quero ser lido. O ato de escrever e a leitura são experiências profundamente antropológicas. Nem todos os antropólogos têm uma “escrita de escritor”, mas na medida em que procuram comunicar algo – que é uma constatação objetiva, mas também uma experiência subjetiva –, se conectam com o ofício do escritor.

Em Casablanca e em El metro revisitado se percebe uma escrita que coqueteia muito com os materiais da ficção. Aspira a uma “escrita de escritor”?
Sim, creio que aspiro a uma “escrita de escritor”. É possível que nesses textos tenha provado com um gênero pequeno de experiências que são antropológicas, mas que necessitam de uma forma de escrita mais literária para comunicar. Lévi-Strauss escreveu na Introdução à obra de Marcel Mauss que para entender um fato social total seria preciso compreender cada um dos participantes do fato, o que não é possível; é antes um ideal de romancista. Mas se pode tomar um como sujeito e imaginar, que é o que fiz em El metro... ou em Casablanca.

Que importância dá à imaginação na antropologia?
A imaginação é importante em todas as disciplinas, inclusive nas científicas. Não há ciência sem imaginação, porque os cientistas têm que elaborar hipóteses. E uma das hipóteses é também uma projeção. Necessitamos brincar com a imaginação, mas quando interpretamos as palavras e as teorias que atribuímos aos outros devemos ser cuidadosos, porque às vezes temos muita imaginação. O mais difícil é tentar imaginar o que os outros estão imaginando. É como imaginar os personagens de uma obra de teatro que não criamos.

Você define o texto Casablanca como uma “montagem” de algumas lembranças sobre o filme. Como é a montagem que um antropólogo faz em comparação com aquela que um escritor faz em torno das lembranças e “dos pequenos fatos verdadeiros”, segundo Stendhal?
Quando se procura utilizar certas lembranças, há um efeito de montagem. Com frequência, se entende o romance como literatura. Mas quando se revisa a história da literatura, há de tudo. Ou Voltaire, Rousseau ou Montesquieu não são escritores? Atualmente, seriam cientistas, humanistas, filósofos. Inventamos títulos terríveis, mas são escritores que escreveram ficções, ainda que nem sempre. Há uma frase do romancista Julien Gracq que se refere a este problema a propósito da filosofia. Diz que é evidente que Kant não é um escritor, mas que Nietzsche o é. Os filósofos se perguntaram pela relação entre a filosofia – que se ocupa da verdade – e o estilo. Não é possível opor um tipo de verdade objetiva que não necessitaria de uma expressão particular de escrita para a comunicação. Não gosto da palavra comunicação, porque indica uma relação sem estilo. Não se comunica nada se não há consistência; tem que haver uma captação de interesses, como na retórica. Diz-se que o primeiro ofício do orador é a captação da benevolência; é, sem dúvida, um fato da língua. Mas, hoje, temos uma ideia muito pobre da escrita literária. A literatura é mais que a ficção. Não é suficiente escrever ficções para ser um escritor. Muitas vezes se confunde literatura e ficção.

Por que se produz essa confusão?
Seria preciso ter uma aproximação histórica e não posso fazê-la. Mas esta confusão pode ser uma expressão da sociedade de consumo, porque um livro que tem interesse é um livro que vende muito. Na França é evidente: quando um livro faz sucesso, o número de exemplares vendidos aparece como uma razão do livro. Não se necessita ler o livro porque representa algum tipo de interesse concreto, mas porque os outros o leram. A sociedade de consumo introduz, por interesses próprios, esta confusão, sugerindo que só a ficção é literatura. O que não é certo. Quando pensamos na literatura do século XIX, há muita informação nas obras dos romancistas, como em Balzac.

Você conta que Casablanca foi sua primeira experiência do tempo induzida por uma obra de ficção; que esse filme lhe impôs o sentido do passado e o gosto do futuro. Que livro lhe produziu um efeito similar?
Este efeito me é produzido pela leitura de qualquer livro do século XIX até Proust. Mas o curioso é que tenho falsas lembranças de leitura. Tenho a lembrança de passagens de A Cartuxa de Parma, de Stendhal, que não existem. À beira de uma estrada Fabrizio discute com Gina; é uma cena muito poética, mas não está no romance (risos). Também Proust, que fala da memória em Em busca do tempo perdido. Há uma riqueza das pequenas cenas proustianas que nunca se esquece. Ou que se esquece para poder redescobri-las. Proust é um autor interessante para os etnólogos, porque nos proporciona reflexões sobre a permanência e a transmissão que são intuições profundas que pertencem à humanidade.

É curioso que diga que para o cineasta a dificuldade de construir um relato é maior que para o romancista. Muitos romancistas poderiam polemizar com você e dizer o contrário: que o cineasta resolve com uma ou duas imagens o que para o escritor pode ocupar várias páginas.
(Mexe a cabeça e pensa.) O que me chama a atenção do cinema é sua capacidade para descartar o banal. Um exemplo muito simples é que o cineasta pode ignorar todos os tempos mortos da vida que não lhe interessam, pode jogar com o tempo. É certo que o romancista também... e diria que ambos têm a mesma dificuldade: o tempo longo. Há filmes que são mais longos porque o cineasta precisa disso; caso estiver narrando a vida de uma pessoa, tem necessidade de uma duração maior quando se evocam lembranças. Percebemos o tempo passado através do presente do filme; mas um filme também é um escrito, um roteiro. Uma dificuldade que o cinema e a literatura compartilham é fazer sentir a passagem do tempo.

O eco ziguezagueante de uma musiquinha estranha se aproxima. Multiplica-se e molesta como um zumbido que distrai os pensamentos do antropólogo. Enruga o cenho e apalpa os bolsos. “É meu celular”, avisa enquanto trata de encontrar esse “pedaço de presente” que lhe trará outro presente que deixou atrás por alguns dias, e pede desculpas porque “pode ser da França”. Em poucos segundos volta a esse presente, o da entrevista. “A aceleração do tempo se percebe quando se tem certa idade. Me sinto uma espécie de personagem histórico. Quando falo da minha geração, digo que sou um dos últimos que tomou o trem porque tenho um computador há cinco anos. Não sou um gênio, apenas posso escrever e comunicar-me, mas tenho amigos que não embarcaram no trem”, brinca. Guarda silêncio por alguns instantes como se tentasse encontrar as palavras adequadas. “Temos dificuldades para imaginar o futuro. O paradoxo é que a ciência avança muito rapidamente e não sabemos quais serão os conhecimentos dentro de 30 anos, não podemos imaginar. Há um efeito de extenuação do futuro. Sei que há uma ‘literatura de antecipação’, mas o que pode antecipar, o que pode observar, muda tão rapidamente que é muito difícil imaginar as consequências, salvo de maneira completamente fantástica. Nos filmes de ficção científica se imaginava a partir do passado. Mas o passado não nos interessa mais, agora vivemos no presente. Neste paradoxo de não saber utilizar o tempo, não podemos conjugar o passado e o futuro”.

Em El metro revisitado você coloca que escrever um livro é uma experiência de morte, como o amor em Proust; que um livro uma vez publicado segue o caminho imposto pelos leitores. Não-Lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade é o livro que mais fugiu de seu controle?
Sim, a expressão não-lugares teve certo sucesso, mas há leitores que lhe deram um sentido que eu não havia pensado. Não sei o que aconteceu com os não-lugares... Utilizei uma palavra que correspondia a um sintoma e que serviu para razões diversas, inclusive em disciplinas diferentes como o urbanismo, a arquitetura, a arte e a literatura. Claro que há relações que se podem estabelecer, assim como negar. Mas é um termo que escapou totalmente das minhas mãos (risos).
As mãos do antropólogo do cotidiano, do último homem que pegou o trem da tecnologia, ficam flutuando no ar. Como uma lembrança que chega de longe.

Os ciganos e a xenofobia

Qual é a sua opinião sobre a expulsão dos ciganos realizada por Sarkozy?
Creio que é uma peripécia da vida política interna. Sarkozy está tentando não perder as eleições e quer recuperar alguns votos da extrema direita. Não quero dar muita significação ao assunto porque dentro de um ano ou dois não falaremos mais disso. Os expulsos poderão voltar à França; não é possível impedir que voltem porque há livre circulação na zona europeia. A Comissão Europeia conhece este problema; tem dinheiro para organizar os lugares de recepção para os diversos grupos de ciganos da Romênia e da Bulgária, mas esse dinheiro não é utilizado. As expulsões falam da mediocridade do governo.

À distância, a impressão que dá é que não houve uma forte reação da sociedade francesa para impedir as expulsões.
É uma questão complexa... No fundo, é um problema econômico que começou no final dos anos 70 quando muitos trabalhadores não especializados ficaram desempregados. E como parte deste problema está a instalação dos imigrantes em bairros isolados, sem possibilidade de se integrar culturalmente através da escola e do trabalho. Há muita gente sem trabalho que está tendo uma vida muito difícil; não é a primeira vez na história que vemos uma parte da população simpatizando com a extrema direita devido à sua situação precária. Mas, também há muita gente integrada. Não creio que haja um problema de racismo na sociedade francesa. Há mais xenofobia do que racismo.

Reprodução da ignorância

Você chama a atenção para a aliança entre juventude, pobreza e modernidade no metrô de Paris. Que consequências tem essa aliança no espaço público?
A força da república era o sistema de educação. A III República foi erguida a partir da escola e da mobilidade social. Agora há um problema geral de reprodução da ignorância. O sistema educativo não é suficiente para formar os jovens e reproduz as desigualdades. Neste sentido, somos a imagem do mundo. Se o mundo se desenvolve do jeito como está se desenvolvendo, não vamos rumo a uma democracia generalizada, mas a uma oligarquia planetária com uma elite, os consumidores e os excluídos do conhecimento, da riqueza e da educação. Se não se fizer um esforço enorme, teremos coisas terríveis.
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* Augé é professor de Antropologia e Etnologia da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris e diretor de pesquisa do CNRS. Trabalhou na África e na América Latina e é autor de numerosas obras, entre as quais se encontram: Não-Lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade (Papirus), Casablanca (Gedisa), El metro revisitado (Paidós), Por uma antropologia do mundo contemporâneo (Bertrand Brasil), Diário de guerra (Gedisa Editorial), A guerra dos sonhos (Papirus), A construção do mundo (Edições 70), Por que vivemos? (Gedisa Editorial), O sentido dos outros (Vozes).
Fonte: IHU online, 02/09/2010

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