Um jogo fácil de entender e que nos lança num encontro
com nós mesmos quando crianças.
com nós mesmos quando crianças.
E assim vamos amando o futebol
Foi na Copa de 1978. Os Kupers, britânicos, viviam na Holanda, e o pequeno Simon, de 8 anos, amava o time laranja de Cruyff acima de todas as coisas. Mas quando os holandeses fizeram 5 x 1 sobre os austríacos ele deixou a sala aborrecido e foi chutar bola no quintal. "Que graça poderia ter um jogo tão fácil?", ele diz hoje, cavucando em suas lembranças futebolísticas mais remotas. Simon Kuper ainda não sabia: tentar enxergar o mais apaixonante dos esportes com olhos desapaixonados se tornaria algo importante para ele.
Divulgação
Kuper é co-autor do termo Soccernomics,
que faz análise do futebol a partir da economia
Kuper é um racional por dever de ofício. Historiador saído dos bancos de Oxford e graduado em política e economia em Harvard, por muito tempo seu negócio foi escrever na imprensa sobre as delícias do câmbio. Entediou-se. Atualmente assina uma coluna de futebol, só que no Financial Times. Aos 41 anos, continua, pois, a ver o jogo como o menino pouco dado ao sacode das goleadas. Disso nasceu Soccernomics, seu livro com o economista Stefan Szymanski, professor da Cass Business School, de Londres. Trata-se de uma análise racional, posto que econômica, do futebol mundial. Pode impacientar os apaixonados das arquibancadas, contudo trabalha os números de maneira surpreendente. A impressão é a de que, para Kuper e Szymanski, tudo no futebol tem explicação.
Ninguém melhor que um deles, portanto, para jogar alguma luz sobre a paixão por esse esporte. O que significam 100 mil pessoas nas ruas para celebrar não a maior das conquistas, mas o aniversário de 100 anos de um time? Há racionalidade por trás disso ou só um bando de loucos, loucos por ti, Corinthians? É Kuper quem responde na entrevista a seguir.
Por que somos apaixonados por futebol? O que esse esporte tem que os outros não têm?
Eu amo críquete também! A diferença é que o futebol é um jogo tão fácil de entender que as pessoas o acompanham mais de perto. Além disso, tudo gira em torno de clubes muito antigos - Corinthians, Manchester United, Ajax. A ligação com o passado torna nosso sentimento pelo esporte algo muito profundo. Os times são parte de nossas vidas, ficam conosco do berço ao túmulo. Não há nada comparado no críquete ou no tênis, e não há clubes tão antigos no basquete. Um time de futebol proporciona a sensação de continuidade. Nós crescemos, ficamos velhos, perdemos amigos, trocamos de emprego, vamos mudando ao longo da vida. Mas quando somos adultos a única coisa que nos conecta à pessoa que éramos quando tínhamos 8 anos é nosso time de futebol. O Corinthians estará sempre lá, vestindo as mesmas cores. Essa ideia de continuidade nos conforta.
É uma posição bastante emocional, e de certo modo contrária ao que há em Soccernomics. Ele é razão pura e fria. Não existe razão demais no futebol hoje em dia?
É possível ser muito emocional em relação ao futebol, sentir-se feliz quando seu time vence ou quando você vê o Messi fazer uma jogada bonita, e ao mesmo tempo pensar o futebol racionalmente. Em Soccernomics eu e Stefan Szymanski (coautor), que é economista, tentamos analisar o jogo por esse viés, o que não diminui nosso amor pelo jogo. Somos capazes de mostrar com estatísticas que os técnicos são menos importantes do que se pensa e os salários dos jogadores por si só determinam quase inteiramente os resultados numa temporada. Os técnicos são ferramentas de marketing. Stefan estudou as contas de 40 clubes ingleses entre 1978 e 1997 e descobriu que os gastos com salários explicam 92% da variação deles na tabela de um campeonato. Em suma: a equipe que mais paga, ganha.
Mas o que as estatísticas acrescentam para o torcedor que só quer ter uma tarde agradável vendo seu time jogar? A graça do futebol não está no fato de ele ser um esporte com as portas abertas para o imprevisível?
É verdade que as estatísticas sobre o que os jogadores fazem em campo não ajudam em muita coisa. Quantos quilômetros um jogador corre ou quantas divididas um zagueiro vence não são bons medidores de sua qualidade. O italiano Paolo Maldini quase nunca dividia a bola com o adversário, mas ele foi um zagueiro brilhante. Então, a sabedoria não está nessas estatísticas de dentro do campo. Mas pode ser importante saber que o sucesso de um clube na temporada não está necessariamente ligado ao valor que ele gastou em transferências de jogadores. Ou que é irracional esperar que a Inglaterra vença uma Copa do Mundo, porque os números mostram que a Inglaterra é só um país de porte médio no futebol. Muito do futebol é previsível, por isso as estatísticas têm muito a nos dizer - exceto as de dentro do campo.
Os corintianos gostam de achar que o Corinthians é um time diferente, especial. O clube ficou 22 anos sem um título e a torcida cresceu. Em 1976, 70 mil torcedores rodaram 400 quilômetros e tomaram o Rio de Janeiro só para ver uma semifinal de campeonato. Na última terça-feira, mais de 100 mil foram às ruas celebrar o centenário do clube. Dá para explicar isso racionalmente?
Primeiro, os fãs de futebol não são atraídos simplesmente pelos times vencedores. O que as pessoas gostam é de um time com uma história colorida e, acima de tudo, se podem vê-lo jogar em um estádio prazeroso e seguro. Quando os clubes europeus constroem um estádio novo legal - como o Ajax fez anos atrás - os fãs aparecem. Se o time vai vencer ou perder é menos importante. Os torcedores são atraídos pela imagem do clube, o status dele como símbolo de uma cidade ou comunidade. Se só os times vencedores tivessem torcedores a maioria dos estádios do mundo estaria sempre vazia. Depois, é impressionante essa lealdade dos brasileiros a equipes esportivas em se tratando, como dizem os sociólogos, de uma sociedade "desconfiada por natureza". Os brasileiros não confiam em organizações comunais e isso talvez explique por que atualmente eles não se reúnem em grande número para fazer coisas nessa área. Não é uma sociedade em que as pessoas compartilham. No entanto, os fãs do Corinthians parecem se sentir ligados uns aos outros de alguma maneira. Vai ver, no Brasil, os clubes de futebol são vistos como as únicas organizações comunais confiáveis.
O lance mais polêmico da última Copa foi o gol mal anulado da Inglaterra contra a Alemanha. Voltou-se à discussão sobre o uso de equipamentos eletrônicos capazes de impedir injustiças como aquela. Tornar o futebol mais justo o tornaria menos apaixonante?
O futebol é fantasticamente popular. Como produto comercial, funciona. Não é à toa que tenha mudado tão pouco nos últimos cem anos. Ele não está quebrado, por isso, no entender da Fifa, não precisa de conserto. Eu, particularmente, não acho que, mais justo, o futebol fique menos interessante. Imagine o suspense para as 80 mil pessoas no estádio esperando para saber se aquele gol valeu ou não, até que a tecnologia dê o veredicto. Seria demais!
Recentemente você escreveu que sediar uma Copa do Mundo não traz dinheiro, traz felicidade. Por que o futebol nos faz felizes?
Sediar uma Copa significa dividir um grande projeto com seu país, significa fazer parte. Quando o Brasil receber a Copa em 2014, meses antes todo mundo na escola, no trabalho, no ponto de ônibus estará falando sobre ela. As pessoas conversarão de futebol com estranhos. Elas se sentirão unidas e mais próximas umas das outras. Mesmo se o Brasil perder todos os brasileiros permanecerão juntos, na tristeza. Portanto, há um sentimento comum muito forte quando um país recebe a Copa do Mundo. Um sentimento difícil de encontrar em outras ocasiões. É esse sentimento de união, que atrai inclusive os solitários, o grande benefício para quem sedia uma Copa.
Por que o futebol brasileiro acende tantas paixões mundo afora?
Isso está ligado às lembranças que nós estrangeiros temos das seleções brasileiras de 1958, 1970 e 1982. Há uma expectativa em toda Copa do Mundo de seremos sortudos o bastante para ver o Brasil jogar bonito. Eu não acho que isso vá acontecer mais. Jogar bonito tem a ver com os dribles. Só que o esporte mudou. Em 1970, um jogador corria em média 4 quilômetros numa partida. Hoje ele corre 10. Então, agora se você dribla um zagueiro ele simplesmente se vira e corre atrás de você. Os grandes espaços que Pelé e Garrincha encontravam para jogar não existem no futebol moderno. Jamais voltaremos a ver aquele futebol. Ele foi produto de uma era em particular.
Futebol é coisa de homem?
Está mudando. O futebol feminino é o esporte que mais cresce no mundo. Na América do Norte as mulheres gostam mais do que os homens. Não existe algo necessariamente masculino no futebol. É que na Europa e na América Latina ele sempre foi definido como "jogo masculino" e as mulheres foram excluídas de jogar ou torcer. Países como Austrália e Estados Unidos perceberam que se trata de um esporte leve e as garotas também podiam praticá-lo.
Estamos falando de um esporte que pode terminar sem vencedor e cujo espectador pode ir para casa sem ver o auge do jogo, o gol. Você acredita que um dia os americanos vão se apaixonar por algo assim?
Eles já estão. O número de americanos que viram a Copa pela TV foi 50% maior do que no Mundial de 2006. O jogo Estados Unidos x Gana teve a mesma audiência média das finais do beisebol ou do basquete profissional. É um mito que haja algo na cultura americana contra o futebol. Os americanos apenas desenvolveram antes seus próprios esportes, e isso foi um obstáculo ao crescimento do futebol nos Estados Unidos. Mas agora, graças à TV a cabo e aos imigrantes latinos, o futebol está crescendo muito rapidamente. Não estamos longe do dia em que os Estados Unidos se tornarão campeões mundiais. Olhe para o desempenho deles nos últimos anos: quartas de final da Copa do Mundo de 2002, final da Copa das Confederações de 2009 e quase quartas de final da Copa do Mundo em 2010. No ranking da Fifa eles estão logo abaixo dos dez melhores. Dado que os americanos só começaram a praticar futebol com mais ênfase nos anos 80 e a Major League Soccer tenha sido fundada há tão pouco tempo, em 1996, acho que eles estão cada vez melhores.
E qual a relação dos árabes com o futebol?
Em muitos países árabes não há outras maneiras de os homens jovens se divertirem. Na Líbia você não pode se encontrar com uma garota para tomar um drinque ou ir ao cinema. Então, grandes jogos de futebol por lá atraem 100 mil pessoas. Frequentemente, em países fechados o único lugar onde você pode se expressar, gritar o que bem entender, é um estádio de futebol. Era assim no Iraque de Saddam Hussein. Acho que nenhum país permanecerá imune ao futebol por muito tempo. Até a Índia, a última fronteira desse esporte, já gosta de futebol. Eles ainda pensam muito no críquete, é verdade. Mas outro dia o Maradona arrastou multidões ao desembarcar em Calcutá.
Futebol é o ópio do povo?
Nem sempre. Nas pesquisas para meu outro livro, Soccer Against the Enemy, eu encontrei ditadores que tentavam usar o futebol para distrair as pessoas dos assuntos políticos. Mas também encontrei pessoas usando o futebol para se rebelar contra ditadores. Na Líbia cantam slogans anti-Kadafi nos estádios. No Irã, depois de uma partida da seleção nacional, torcedores tomaram as ruas e enfrentaram a Guarda Revolucionária com palavras de ordem contra o regime. O futebol mobiliza multidões e elas são difíceis de controlar.
Tenho um amigo que gosta de dizer que o futebol é a coisa mais importante entre as menos importantes. O que você acha?
Eu concordo. No final das contas o futebol realmente não tem importância. Você pode chorar quando seu time perde, mas é crucial entender que há coisas mais importantes na vida - seus filhos, sua mulher, seus amigos. Futebol é divertido por ser um jeito de deixar os seus problemas pra trás. Eu não gosto quando algumas pessoas tomam o futebol por uma questão de vida ou morte.
__________________________________Reportagem por: Christian Carvlaho Cruz, de O Estado de S. Paulo
Fonte: Estadão online, 04/09/2010
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