Rubem Alves*
Martinho Luterno
A revista Época (9/8/10) publicou um artigo com o título “Os novos evangélicos: um movimento de fiéis critica o consumismo, a corrupção e os dogmas das igrejas — e propõe uma nova reforma protestante.” Surpreendi-me com esse título porque cresci educado pela filosofia da Reforma.
Primeiro é preciso dizer que protestantismo é uma coisa que não existe. Existe mais é como uma saudade, como um perfume de uma planta que já morreu. Porque sinto essa saudade e amo esse perfume, não freqüento as suas sepulturas, seus templos.
Aconteceu com o protestantismo aquilo que aconteceu com o ganso dessa estória que já contei:
“Era uma vez um bando de gansos selvagens que voava nas alturas. Lá de cima se via muito longe, campos verdes, lagos azuis, montanhas misteriosas e os pores-de-sol eram maravilhosos. Mas voar nas alturas era cansativo. Ao final do dia os gansos estavam exaustos. Aconteceu que um dos gansos, quando voava nas alturas, olhou para baixo e viu um pequenos sítio, casinha com chaminé, vacas, cavalos, galinhas... e um bando de gansos deitados debaixo de um árvore. Como pareciam felizes! Não precisavam trabalhar. Havia milho em abundância. O ganso selvagem, cansado, teve inveja deles. Disse adeus aos companheiros, baixou seu vôo e juntou-se aos gansos domésticos. Ah! Como era boa a vida, sem precisar fazer força. O tempo passou. Primavera, Verão, Outono, Inverno... Chegou de novo o tempo da migração dos gansos selvagens. E eles passavam grasnando, nas alturas... De repente o ganso que fora selvagem começou a sentir uma dor no seu coração, uma saudade daquele mundo selvagem e belo, as coisas que ele vira e não via mais: os campos, os lagos, as montanhas, os pores-de-sol. Aqui em baixo a vida era fácil mas os horizontes eram tão curtos! Ele ficou com saudade da beleza... E a dor foi crescendo no seu peito até que não agüentou mais. Resolveu voltar a voar nas alturas! Abriu suas asas, bateu-as com força, como nos velhos tempos. Mas caiu e quase quebrou o pescoço. Estava pesado demais para o vôo. Havia engordado com a boa vida... E assim passou o resto de sua vida, gordo e pesado, olhando para os céus, com nostalgia das alturas...”
Esse é o tema dominante em tudo o que escrevo: a liberdade. O tema não me deixa, seja como literatura seja como vida. Já escrevi vários livros e artigos sobre ele: “A menina e o pássaro encantado”, “O passarinho engaiolado”, “A libélula e a tartaruga”, “Asas e gaiolas...” Acho a liberdade mais importante que o amor porque a liberdade é o ar que o amor respira. Sem a liberdade o amor definha e morre.
Meus leitores ficam curiosos e vivem perguntando se tenho religião, se acredito em Deus, que comunidade religiosa frequento. Respondo: sou de tradição protestante. Amo o ganso que voava livre nas alturas. Mas o ganso ficou domesticado. A religião o engaiolou... Essa é a razão por que, para permanecer protestante eu tenha me desligado das igrejas protestantes. O meu protestantismo é uma saudade. Por amar o pássaro em vôo tive de abandonar as gaiolas...
Max Weber, um sociólogo inteligente, percebeu que todos os pássaros que voam livres, solitários, estão destinados a se transformarem em pássaros engaiolados, quando voam em bandos. Pior do que isso: pássaros que esquecem o vôo e passam a amar as gaiolas. As gaiolas são mais seguras que o vôo.
As religiões nascem num momento carismático, uma grande visão, uma grande paixão, grandes asas, grande vôo... Mas aqueles que ensinam o vôo mais cedo ou mais tarde têm de morrer. Mortos, seus seguidores que nunca voaram colocam o vôo em gaiolas burocráticas feitas com dogmas, rotinas e medos.
Quando os protestantes vieram para o Brasil na segunda metade do século XIX eles tentaram fugir do nome “protestante”. “Protestante” sugere alguém que é do contra. De fato, o pássaro livre protestava contra todas as gaiolas... Gaiolas são os absolutos.
Absolutos? Uma pessoa infalível, um dogma que tem de ser crido porque alguém o disse. O pássaro livre voa nas asas do pensamento. Kant começa o seu curto manifesto O que é o iluminismo? com essa afirmação: “Ouse pensar!” Somente dispomos das asas do nosso pensamento. Cada pessoa é o centro da sua própria verdade, do seu destino.
Para evitar o nome os primeiros protestantes passaram a denominar-se “evangélicos” para marcar sua diferença com os católicos que tinham medo de ler a Bíblia, medo de pensar seus pensamentos e, por isso, entregavam as suas vidas a um absoluto que lhes dizia em que deviam crer.
A tradição protestante é racional, ética, promotora da educação e da ciência e, sobretudo, não comercia com Deus em busca de milagres. A ela estão ligados nomes como Bach, Leibniz, Comenius, Pestalozzi, Kant, Hegel, Kierkegaard, Albert Schweitzer, Martin Luther King Jr., Dag Hamarkjoeld. Todos eles foram gansos selvagens. Sou protestante porque quero voar na sua companhia... Vôo na companhia de uns poucos amigos...
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*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio Popular online, 05/09/2010
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