terça-feira, 14 de setembro de 2010

Vício ricardiano

Antonio Delfim Netto*

Um dos espetáculos mais divertidos e curiosos no Brasil de hoje é assistir às proposições apodícticas de economistas aparentemente bem formados (exibem Ph.Ds. de famosas e centenárias universidades!) sobre a situação de nossa economia. Agora seu esporte predileto é criticar o que "supõem" ser o pensamento dos principais candidatos à Presidência da República a respeito da política fiscal (que afirmam estar dramaticamente errada); da política monetária (que sugerem não funcionar enquanto o Banco Central não for, por disposição constitucional, independente e, pior, acreditam que ele é mesmo portador de uma "ciência" monetária) e da política cambial (continuam a acreditar que a taxa de câmbio flutuante equilibrará de forma ordenada o balanço em conta corrente, mesmo na presença de taxa de juro real interna maior do que a externa sustentada pelo Banco Central por tempo indeterminado).
Nada disso é novidade. A especialidade dessa particular "ciência econômica" tem sido "supor". Afinal, comparado com qual "modelo" de mundo virtual eles julgam o "certo" e o "errado" da política econômica aplicada ao mundo real? Com a mais abstrata idealização da realidade e do comportamento humano: a teoria do equilíbrio geral (GE) e, mais recentemente, com seu complemento dinâmico estocástico (DSGE).
Especialidade dessa "ciência econômica" tem sido "supor"
A matemática utilizada na construção de tais modelos é sedutora. Seus resultados tão deliciosamente surpreendentes, mas de validade prática duvidosa. Dão, entretanto, aos que os dominam, um ar de fortaleza e certeza que intimida os incautos. Não é sem razão que o "supor" compõe uma das mais conhecidas piadas com as quais os economistas se divertem com eles mesmos. Ela sugere o comportamento de três náufragos numa ilha deserta. Esfomeados, encontram uma lata de feijão. O primeiro, um físico, propõe-se a abri-la agredindo-a com uma pedra; o segundo, um químico, propõe-se a fazê-lo aquecendo-a até explodir. Duas soluções arriscadas, pois o feijão pode perder-se. O terceiro, um economista, diz deixem comigo: suponham que dispomos de um abridor de latas.
O que está escondido na Teoria do Equilíbrio Geral? Uma situação imaginária, em que os desejos de consumidores e produtores de todos os bens e serviços são simultaneamente atendidos. Esses "desejos" se equilibram em mercados competitivos, onde se encontram consumidores e produtores, através de uma formação de preços fora do seu controle. A "suposição" fundamental é que os consumidores maximizam a sua utilidade e que os empresários maximizam os seus lucros. A ação dos dois grupos é acomodada e limitada pelo funcionamento do próprio mercado.
Com essas condições normais de pressão e temperatura (e um pouco de matemática) pode-se "provar" que a demanda e a oferta se equilibrarão em todos os mercados. Temos, portanto, o melhor do mundo: um conjunto de preços a partir do qual nenhum dos agentes pode melhorar a sua situação. Obviamente, qualquer semelhança dessa configuração com o mundo real é mera coincidência.
A teoria geral do equilíbrio dinâmico estocástico (DSGE) é uma generalização desse modelo com a idealização de como se comportarão os agentes (consumidores e produtores) ao longo do tempo com a introdução de um futuro incerto (estocástico). Por exemplo, os consumidores levam em conta suas necessidade de aposentadoria, e os empresários as incertezas futuras.
A teoria econômica dispensa essas idealizações para oferecer contribuições fundamentais à boa execução da política econômica. Por exemplo, reconhecer a enorme importância do equilíbrio fiscal como base para as políticas monetária e cambial. E, talvez a maior delas - frequentemente esquecida - chamar a atenção para o "custo de oportunidade" (o custo da melhor alternativa para o uso de recursos escassos disponíveis) para melhorar as decisões do governo.
Tais contribuições não necessitam da Teoria do Equilíbrio Geral, o módulo de comparação utilizado por nossos supostos "cientistas". Infelizmente alguns deles são tão sofisticados que não percebem serem vítimas do que o grande Schumpeter chamava de "o vício ricardiano": extrair conclusões práticas para a política econômica de modelos altamente abstratos.
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*Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras
Fonte: Valor Econômico online, 13/09/2010

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