(Imagem: Cindy Sherman, Untitled #316, 1995)
Até
que ponto o “humano” está pronto e a questão do “humano” está terminada? Em que
medida a categoria do “humano” representa, de uma forma original e final, todas
as humanidades que povoam este mundo? A categoria do “humano” é um sítio
universal ou uma zona de poder?
Desde
os acontecimentos mais distantes até os mais próximos, sobretudo aqueles
que se referem a nossa exposição à violência e até nossa cumplicidade com a
mesma; desde os diferenciais contornos sociais, históricos, políticos e
culturais, em torno do “ser”, do reconhecimento do “ser”; desde aqueles que se
encontram mais vulneráveis do que outros, aqueles que não chegam a ser reconhecidos
e permanecem desconhecidos; o que é uma vida digna de ser
vivida, uma vida que vale a pena? O que é uma vida e um mundo habitável?
Quem pode habitar a plenitude do mundo social? E quem não? Que vida
(ou, que vidas, se há uma série delas) é considerada como não digna e
(consequentemente) que vida pode ser vista entregue fora de si mesma, da
sua “autonomia”, a movimentos que vão do sofrimento físico e/ou psicológico a
erradicação total do próprio ser? Certamente, essa categoria de questões não
nos leva a uma tarefa fácil de reflexão, entretanto, certamente, nos leva a uma
tarefa mais necessária nestes tempos.
Nos
concentrado especificamente em torno das “vidas humanas”, às vezes, pode
parecer que a questão do “humano” está terminada, que o “humano” está pronto e
o “humano” é o que é, uma unidade consigo mesmo, um ser autônomo e
deliberativo. Às vezes, pode parecer que quando
evocamos o “humano”, estamos falando desde um sítio universal e falando, afinal
de contas, em nome de todos os “humanos”. Pode-se, de fato, recorrer a uma
figura do “humano” que está ocorrendo do início ao fim e com toda autonomia
possível? Pode-se fazer uso de uma universalidade do “humano”? Na melhor das
hipóteses (ou, que seja, na pior delas), podemos evocar o “Humano” (com um “h”
maiúsculo e no singular) que seria o lugar da representação de todas as “vidas
humanas”? Não pode ser que tal categoria exclua parte da clientela que
procura representar mesmo, de tal forma que existem aqueles que contestam
significativamente tal lócus absoluto? E se a categoria do “humano”
se mostrar fundada por e com objetivos bem particulares? Quem é e o que quer o
“humano”?
A
questão do “humano” certamente pertence ao domínio conexo de análises do Ensaios
de Gênero, de forma que sempre foi levantada e, eu acredito, que sempre
continuará sendo. Desde este blog e junto de vocês, o “humano” vem sido
pensado e repensado em contextos dos mais diferentes, sobretudo através de como
o “humano”, em continuidade com as normas de gênero em maior grau de discussão,
é explorado sexualmente, estigmatizado, como é discriminado, submetido a uma
lógica da divisão do trabalho, como chega a viver de forma diferencial as
variáveis da pobreza, da infância, da educação, da política, entre tantas
outras. Em tais análises, o “humano” claramente diferencia a si mesmo, se
mostra como projetado contra um e partir de um Outro de si mesmo, explorando
outras “vidas humanas”. Aqueles que estão mais vulneráveis à violência
(a qualquer variável dela) e aqueles que, de fato, sofrem violência em razão de
seu corpo, seu gênero, sua sexualidade, sua raça, sua etnia e outras variáveis
não colocam de maneira muito problemática como nem todos estão incluídos nesse
“humano” prometedor? E que, ademais, esse “humano” está desde o início
regulado por um ideal normativo de “humano”?
Certamente,
essa categoria de questões não nos leva a uma tarefa fácil de reflexão,
entretanto, certamente, nos leva a uma tarefa mais necessária nestes tempos.
Uma tarefa de entender como o “humano” chega a ser reconhecido ou deixa de ser
reconhecido pelos contornos históricos, políticos e culturais que restringem e
facultam esse “humano.
(Imagem: Francis Bacon, Auto-retrato, 1972)
Esse
ideal normativo, formado através das varias normas sociais, não produz o
“humano”, o “menos humano” e aqueles que não contam como “humanos” de forma
alguma? Aliás, desde as várias normas sociais (apoiadas institucionalmente ou
não), qual “humano” conta como “humano”, como “menos humano” ou qual “humano”
não conta de forma alguma? Que vidas são consideradas como vidas que não
contam? Que perdas humanas são lamentadas? Quem chega a chorar e quem pode
chorar? Quem fixa uma marca imediatamente, quem merece luto público, duelo
político, e quem não? Essas perguntas podem nos levar a um melhor
esclarecimento sobre o “humano” em jogo, a desloca-lo das ruínas do
humanismo e da ontologia.
Lançada
essa série de problemáticas, queria (re)começar com vocês, com Judith Butler
(sempre e sempre) e com outras e outros pensadores, refletindo ao largo de
ensaios que estão por vir sobre o que significa habitar o mundo, o que
constitui um mundo habitável e, portanto, sobre o que constitui uma vida diga
de ser vivida, digna de reconhecimento. Gostaria
de me debruçar sobre as vidas humanas especificamente, sobre as vidas de certos
sujeitos que podem contar mais do que outros, as vidas humanas que podem ser
consideradas de menos valor e as que, absolutamente, não chegam a ser contadas
como “vidas” propriamente ditas. É claro, trata-se de uma discussão crítica
que tenta entender sempre tal valoração em meio e desde as normas constituintes
do mundo social, logo, intercambiando as normas que produzem e concebem o
“humano” em termos de gênero, raça, etnia, entre outros, embora, no nosso caso,
privilegiamos majoritariamente a discussão a partir dos estudos de gênero.
O
que constitui uma vida habitável, como atenta Butler principalmente em Deshacer
el género (2006) e Vida precaria: el poder del duelo y la violencia
(2006), não constitui uma questão fácil — como se pode pensar —, sendo que tal
questão pode se direcionar mesmo para dimensão da vida que pode ser
indiscutível, que está no limite do “argumentável”, principalmente quando se
refere a nossa exposição à violência e nossa cumplicidade com ela. Assim, tal
discussão não poderá, nunca poderá, ser encerrada de uma vez por todas, mas
sempre estará aberta a novas revisitações e ressignificações, a fim de expor a
contingência mesma da representatividade do “humano” e reabrir sempre tal
categoria a fim de propósitos críticos e democráticos. Que recomecemos e
sigamos nesse processo de desconstrução e reconstrução do “humano”, refletindo
sobre as normas sociais, a modificação e expansão das mesmas!
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Fonte: https://ensaiosdegenero.wordpress.com/2015/02/24/afinal-que-humano/
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