Há o "gostar", o "adorar"... e o "amo-te", expressão que está fora do
vocabulário de muitas pessoas. Porque é que tanta gente tem dificuldade
em dizer essa palavra?
Fomos procurar saber.
“Como se escreve ‘amor’?” – Piglet
“Não se escreve… sente-se.” – Pooh
A.A. Milne, Winnie-the-Pooh
Paulo Almeida nunca
disse “amo-te”. A expressão nunca escorregou pela boca fora e as cordas
vocais ainda não souberam verbalizar o quanto ele gosta de Cátia.
Namoram há três anos e vivem juntos há sensivelmente um ano e meio,
quando ambos fizeram as malas e embarcaram na viagem da emigração, rumo a
uma Inglaterra cheia de promessas. Ela para trabalhar como enfermeira e
ele como assistente de enfermagem. Paulo ama Cátia. Só que nunca o
disse.
O casal conheceu-se quando ainda era adolescente. Na altura da escola secundária e das aulas de surf
na praia de São Pedro do Estoril, junto à linha de Cascais. O desbravar
das ondas e a areia molhada uniu-os, mas os laços então criados
precisavam de maturidade. “O primeiro encontro foi aos 15 ou 16 anos,
mas na altura decidimos que não era aquilo que queríamos. Ela sempre foi
uma rapariga especial. Eu nunca iria arriscar sem ter a certeza”, conta
Paulo Almeida, 25 anos, ao Observador. Está sentado à mesa de um bar
cascalense, rodeado de amigos, acabado de chegar de terras de Sua
Majestade.
A tão desejada maturidade, essa, chegou com o tempo.
Bem como uma segunda oportunidade para concretizar a paixão que não
amansou com o passar dos anos. Estiveram sempre em contacto um com o
outro, pelo que a amizade foi-se estreitando até desembocar nos desafios
de uma vida a dois. “Ao longo destes três anos, que eu me lembre, nunca
disse ‘Amo-te'”, desabafa. “Para mim, a expressão está demasiado
vulgarizada. Acho que as pessoas dizem-no demasiadas vezes e dizem-no
sem o sentirem.”
"Também se ama em silêncio. Sei que a maior parte das
pessoas tem medo do silêncio. É nesse contexto que se descobre a
verdade: acho difícil mentir sem palavras.”
“Dizer ‘Amo-te’ tornou-se banal. ‘Eu amo-te’ tanto serve para pessoas
como para descontos de supermercados”, concorda Maria Rita*, que está
do outro lado de um ecrã de computador. Em conversa com o Observador,
digita lentamente os carateres que são usados para confessar que apenas
se serviu da expressão uma vez na vida. “Por medo, disse-o à minha mãe.”
Já descolou a data aos eventos, mas recorda-se de como tudo aconteceu
quando ainda era adolescente: certo dia despertou de um pesadelo, no
qual se deparou com a mãe já sem vida e deitada num caixão. Assim que
acordou, a mãe confortou a cara pálida e o ar transtornado da filha.
“Acho que até gritei [durante o sonho].”
Maria Rita evitou contar à
mãe o que tinha acabado de ver de olhos fechados. Tentou não dizer
nada, mas não conseguiu. Na sequência dos relatos, o “eu amo-te”
escapou-lhe do domínio das intenções. “Sempre me recusei a dizê-lo,
nunca achei necessário. Não me arrependo. Naquela altura, foi
simplesmente fantástico e fez todo o sentido. Fiquei aliviada e, minutos
depois, senti-me um pouco parva”, conta. “Era o momento. Foi o
momento.”
Fora da esfera familiar, não há vocabulário que a valha.
Diz que já amou, que ama e que se apaixona muito facilmente, mas nunca
verbalizou esses sentimentos. Não acredita que seja necessário fazê-lo e
delega maior importância aos gestos e às atitudes. “É mais importante
fazeres a pessoa sentir-se amada, além de que também se ama em
silêncio”, argumenta. “Sei que a maior parte das pessoas tem medo do
silêncio. É nesse contexto que se descobre a verdade: acho difícil
mentir sem palavras.”
A
isso acrescenta que “amo-te” é uma expressão menos bonita, quer no
português de Portugal quer no português com sotaque carioca, mais quente
e gramaticalmente invertido. Menos bonita que um “I love you”, que foge melhor da boca, e que um caliente “te quiero”, muito à semelhança do que canta o grupo musical Clã no tema “Problema de Expressão”:
Só para dizer que te amo,
nem sempre encontro o melhor termo,
nem sempre escolho o melhor modo.
Devia ser como no cinema,
a língua inglesa fica sempre bem
e nunca atraiçoa ninguém.
nem sempre encontro o melhor termo,
nem sempre escolho o melhor modo.
Devia ser como no cinema,
a língua inglesa fica sempre bem
e nunca atraiçoa ninguém.
“Amar, gostar, adorar. Vai dar tudo ao mesmo”
Cátia, a namorada de Paulo Almeida, já usou a formulação “que não
deve ser pronunciada”. Tal qual uma feiticeira destemida, ao jeito de
uma das histórias de Harry Potter, pôs por palavras o que sentia em
diversas ocasiões, incluindo em mensagens telefónicas com o intuito de
desejar “boa noite” ao namorado. O assistente de enfermagem que lhe
roubou o coração nunca lhe respondeu de volta, pelo menos não da
forma desejada.
Enquanto bebe um trago da cerveja que tem diante
de si, Paulo pondera as consequências da sua escassez de palavras. “Se
calhar ela pode sentir que eu gosto menos dela… Obviamente que isto já
foi uma conversa falada entre nós e eu expliquei-lhe o meu ponto de
vista”, apressa-se a dizer. “Quando ela diz ‘boa noite, amo-te’, eu digo
‘dorme bem’. Eu já disse o ‘adoro-te’ e não acho que isso esteja antes
do amor. Amar, gostar, adorar. Vai dar tudo ao mesmo.”
Para Paulo
não há necessidade (ou vontade) de ouvir a expressão, até porque o
abraço é mais forte e um sinónimo de entrega. E é o abraço que ocupa, na
língua afetiva dele, o lugar de destaque. “Ela [a Cátia] é tão magrinha
que, às vezes, dou-lhe um abraço e quase lhe parto os braços. Quando
lhe dou um abraço, ou estou presente, ela sente-se protegida, já me
contou”, atesta. “Sente conforto.”
Também Maria Rita já recebeu um
“amo-te” fugidio, espontâneo, no decorrer de uma conversa corriqueira.
Não se recorda do assunto em debate, mas sabe que era de noite e que os
dois — ele era uma paixão de verão, até porque, argumenta, na vida dela
nunca houve espaço para relações — estavam sentados num muro. A
secretária de 26 anos foi apanhada de surpresa assim que as três
sílabas interromperam o discurso do casal veraneante.
“Temos a tendência em assumir a nossa forma de estar ou o nosso mundo como standard…
Estávamos a conversar, tudo muito normal, e depois… BAM! ‘Amo-te'”,
conta, tentando descrever os pormenores do que se passou há alguns
meses. “Eu ri-me. Confesso que não foi apropriado, mas quando estou
desconfortável tenho a tendência para me rir. Mas agradeci e continuei a
falar.”
Uma questão de “vínculos”
Cláudia Morais, psicóloga e autora do livro Sobreviver à Crise Conjugal,
partilha algumas luzes sobre o assunto. Apesar de, na sua opinião, o
cinema e alguma literatura contribuírem para uma noção errada do amor,
não considera que a expressão esteja banalizada e aponta o olhar clínico
para quem diz o contrário. “Este tipo de respostas surge, muitas vezes,
como um mecanismo de defesa, no sentido em que a pessoa não é capaz de
dizê-lo e opta por usar esta desculpa.”
“Quando alguém diz que
prefere agir em vez de dizer, pode acontecer que a pessoa está centrada
em si e não em quem ama”, acrescenta numa voz calma, do outro lado da
linha do telefone. “Ser-se romântico é gostar, é dar à pessoa que se ama
o que ela precisa. Quando alguém escolhe mostrar só de outras formas, o
alvo desse amor pode não se sentir absolutamente seguro.” A
psicóloga não duvida da capacidade de amar de Paulo Almeida, nem tão
pouco da de Maria Rita, mas põe o dedo na ferida: “Dizer que amamos
alguém é arriscar, é pormo-nos numa situação de vulnerabilidade. Se a
pessoa não corresponder, vamos sentir sensações de desamparo e de
abandono.”
É
tudo uma questão de vínculos. Isto é, as pessoas que não se sentem à
vontade para se exprimirem são, à partida, as que têm vínculos pouco
seguros. Por vinculação entenda-se as primeiras ligações, do bebé aos
pais, mas também as afetivas, partilhadas já em adulto com os parceiros
amorosos, explica Cláudia Morais, que gere o blogue A Psicóloga. Trocado por miúdos, quanto
mais segura for a nossa ligação aos pais, maior é a probabilidade de
criarmos vínculos estáveis ao nível amoroso, e vice-versa.
A
inexistência de ligações certas na bagagem emocional faz com que seja
mais difícil criar vínculos no mesmo registo — que o diga Matilde*. Aos
27 anos, é mãe e esposa sem nunca ter dito — adivinhe-se — “Amo-te”. Nem
ao marido nem ao filho de dois anos e meio. Em conversa com o
Observador, Matilde vai buscar ao passado as razões para o seu problema
de expressão. “Estive a pensar no outro dia o porquê, o porquê de eu ser
assim. São coisas de infância”, avança.
"Incoscientemente, acho que 'amar' é uma coisa que estupidifica as pessoas."
Por partes. Matilde está casada há seis meses, mas vive com o
recém-marido há seis anos. O amor que os uniu nunca precisou de rótulos e
foi o companheiro, sete anos mais velho do que ela, que trouxe o
casamento para a equação amorosa. A cerimónia que fez deles um casal
oficial aos olhos da lei não foi celebrada na igreja, mas sim junto da
família, de rostos e nomes conhecidos e com o filho no papel de menino
das alianças. Mas mesmo agora, com o anel de ouro no dedo, Matilde não
diz “amo-te”. Porque nunca o fez e porque nunca o vai fazer.
“Os
meus pais estão separados e, posteriormente, a minha mãe teve dois
namorados que eram violentos”, explica. O pai separou-se da mãe quando
ela tinha apenas um ano e transformou-se num progenitor ausente,
enquanto a mãe entregou-se “de alma e coração” a dois homens que lhe
causaram danos físicos e emocionais — a dupla história de horror
prolongou-se entre os 5 e os 11 anos de Matilde. “Inconscientemente,
acho que ‘amar’ é uma coisa que estupidifica as pessoas. As pessoas amam
tanto que ficam cegas e deixam de conseguir discernir uma boa relação
de uma má. O meu avô fez 30 por uma linha à minha avó e, desde que ela
se separou dele [há 40 anos], nunca mais teve um homem e ficou deprimida
para o resto da vida.”
Ser emocionalmente racional é uma defesa,
uma obrigação tendo em conta o contexto em que cresceu. Talvez por isso
prefira o conforto de um “eu gosto muito de ti” que, volta e meia,
dedica aos dois homens da sua vida — um com 1,80 m de altura e outro com
uns mínimos 1,15 m. “Também não o digo ao meu filho. Não é uma
expressão que use, está fora do meu vocabulário. Ao meu filho pergunto
‘De 0 a 10 quanto é que a mãe gosta de ti?’, ele já sabe e responde
sempre ‘1000!’. É muito”, assegura. O certo é que, apesar de não o
exprimir, Matilde admite que ama a dupla masculina lá de casa, mesmo que
familiares e amigos duvidem, por vezes, do quanto ela gosta do marido.
Racionalidade
e frieza à parte, esta mãe de 27 anos confessa que gosta de comédias
românticas: “Disso eu gosto!”. E atira para o ar o primeiro nome que lhe
vem à cabeça: “O Notting Hill é giro”, afirma, referindo-se à
comédia protagonizada por Julia Roberts e Hugh Grant, um romance ao
jeito de Hollywood e passado em cenários britânicos, onde não faltam
citações que ficam no ouvido dos mais e menos românticos: “I’m
just a girl standing in front of a boy asking him to love her” (“Sou
apenas uma rapariga em frente de um rapaz, a pedir-lhe que a ame”).
"Quando há violência [no passado], há quase sempre um
vínculo inseguro: os filhos transformam-se em adultos menos competentes
das suas emoções."
Há finais felizes sem um “amo-te”?
A psicóloga Cláudia Morais assegura que, por norma, quando há um
passado violento, o mais provável é existirem vínculos inseguros a
toldar o futuro amoroso. Nessas circunstâncias, “os filhos
transformam-se em adultos menos competentes das suas emoções”. “Isso
pode querer dizer que nem sempre são capazes de exteriorizar as suas
emoções, nem sempre são capazes de construir, na vida, relações tão
gratificantes.” E acrescenta: “Somos mais felizes na medida em que somos capazes de construir laços seguros. A ciência mostra isso.”
Cláudia
Morais trabalha diariamente com casais cujo escorrer dos anos foi
apagando as marcas do amor. A terapia de casais é um desafio constante,
mas nem por isso deixa de surpreender a profissional. Cláudia conta que
dá de caras com casais mais velhos que, ao fim de 30 ou 40 anos de uma
vida em comum, e no decorrer das sessões, encontram a fórmula mágica
para dizerem “amo-te” pela primeira vez.
“Estamos constantemente a
crescer e a mudar, e vamo-nos livrando de algumas amarras. Há pessoas
que o fazem primeiro com os netos, e noutros casos fazem-no por escrito e
não oralmente”, diz. Por norma, são indivíduos que tiveram infâncias
mais difíceis, relações turbulentas ou menos afetuosas com os pais, mas
que depois de tantos anos estreiam-se no vocabulário do amor.
Uma coisa é certa para a psicóloga: “O facto de não se dizer com estas letras não significa que haja algum problema. Pode-se ser feliz sem se dizer ‘amo-te’.” Paulo Almeida, Maria Rita e Matilde parecem concordar.
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Reportagem por
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