Protegidos pela
polícia, desenhistas gritam: ‘Nós não temos medo’. Charge do quadrinista
francês Halim Mahmoudi -
Divulgação / Halim Mahmoudi
De origem argelina, Halim Mahmoudi
afirma que desenhistas não têm liberdade de expressão nas redações francesas
RIO - O quadrinista e cartunista Halim Mahmoudi é uma voz destoante no
debate que se seguiu aos atentados terroristas à sede do jornal satírico
“Charlie Hebdo”, em Paris. Francês de origem argelina, ele cresceu nos
subúrbios pobres da cidade francesa de Rouen, em uma cultura muçulmana —
experiência retratada em duas de suas graphic
novels, o premiado “Arabico” e “Un monde libre” —, e sempre
condenou as caricaturas de Maomé feitas pela semanário.
Embora também esteja arrasado com o massacre, que matou oito membros da
equipe do jornal, Mahmoudi critica a comoção que tomou conta do país nas
últimas semanas. Para o quadrinista, as manifestações que levaram milhões de
pessoas às ruas e transformaram o slogan “Je suis Charlie” em símbolo da
liberdade acabaram escondendo outras questões importantes, como a discriminação
contra os muçulmanos. Em entrevista ao GLOBO, ele afirma que o desenho de imprensa
é uma “indústria corrompida" e acusa as redações dos jornais de censurar
os seus chargistas. “Não existe liberdade de expressão na França, nenhum
desenhista está livre para desenhar o que quer”.
Como reagiu ao saber dos atentados?
Fiquei perplexo, devastado pela dor. Conhecia alguns dos cartunistas,
especialmente Tignous. Nos dias seguintes, sofri duplamente: sofri como
desenhista de imprensa satírica, devastado pela morte de colegas, mas também
senti raiva frente à violência do tratamento midiático contra os muçulmanos, os
árabes e os negros que, como eu, vivem na França. Em um primeiro momento,
recusei todos os pedidos de desenhos sobre o assunto. Me senti em uma
armadilha. A maioria dos desenhistas usou o lápis como uma arma, e não um meio
de comunicação. Parece que todo mundo perdeu a cabeça.
O cartunismo está hoje no centro do
debate da liberdade de expressão na França. Como isso influencia o seu
trabalho?
Na verdade, a profissão de desenhista nunca esteve no centro do debate.
Houve apenas discussões inúteis para se assegurar de que são os outros que não
sabem nada de humor. É mais uma terapia de grupo do que um debate de fato... No
fundo, somos mais ameaçados pelas linhas editoriais e contingências econômicas
do que por fundamentalistas religiosos. Não há fatwas contra cada desenhista do país, isso é paranoia!
Suas duas graphic novels, ‘Arabico’
e ‘Un monde libre’ abordam a discriminação contra imigrantes na França. Existe
tabu sobre esse assunto na França?
Falei sobre discriminação de maneira frontal, direta. Na França, pode-se
falar sobre discriminação, mas de forma gentil. Só se for para fazer chorar e
dizer que não é culpa de ninguém. Ou então que é culpa dos pais imigrantes que
não souberam educar seus filhos, ou das crianças que não quiseram se integrar.
O debate sobre a discriminação é quase inexistente.
Como vê o movimento ‘Je suis
Charlie’? Acredita que levantou questões importantes?
Ao contrário, o “Je suis Charlie” foi muito útil para mascarar as boas
questões. O movimento foi muito violento ao tentar impedir que quem pensasse
diferente se expressasse. Sob o pretexto de que nada justifica um assassinato,
e estamos todos de acordo nesse ponto, não temos mais o direito de pensar
diferente, de matizar o assunto. Ficou muito difícil criticar o “Charlie”,
questionar a validade das charges deles, sem passar por conservador, covarde ou
traidor.
Você é contra o estilo do ‘Charlie
Hebdo’?
É um jornal anticlerical, mas não se ataca os terroristas insultando a fé de
milhões de pessoas, isso não serve para nada. Eles tinham se refugiado no mito
coletivo do guerreiro contra o estrangeiro, contra um religião que eles não
compreendem, contra um mundo árabe que eles infantilizam.
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Mas não há liberdade de expressão no
país?
Não existe liberdade de expressão na França, nenhum desenhista está livre
para desenhar o que quer. Sempre tem um comitê de redação, um chefe, uma linha
editorial, tabus absolutos, uma censura, um medo dos anunciantes que financiam
o jornal ou dos recursos jurídicos implacáveis. Muitos cartunistas se
autocensuram para serem publicados. A tal liberdade de expressão custou caro à
Placid, um antigo cartunista do “Charlie Hebdo” que, em janeiro de 2005, foi
condenado pela justiça francesa por ter feito a caricatura de um policial com
um nariz de porco. Placid não foi defendido por nenhum dos seus colegas do
“Charlie”.
Como vê as condições de trabalho
para os cartunistas?
O desenho de imprensa é uma indústria corrompida, um meio congestionado, com
um punhado de desenhistas sendo tratados como estrelas de cinema. Eles
trabalham em quase todos jornais do país. Há pouco espaço para os jovens, ou
para um tipo diferente de desenho. Esses poucos desenhistas são produtos
comerciais, eles expõem, fazem livros, publicam em todos os lugares e mantêm a
ilusão de que o desenho satírico é um baluarte contra o obscurantismo. Na
verdade, é o contrário, pois vivemos o reinado dos desenhos que não dizem nada.
Acredita que os atentados podem
mudar para sempre o desenho satírico na França e na Europa?
Não, acredito que nada vai mudar. Vai continuar com pequenos jornais
engajados, sem anunciantes, onde se verá mais desenhos satíricos do que na
grande mídia. Mas, globalmente, o desenho vai continuar o que ele sempre foi:
politicamente correto. Somos meros papagaios. O abismo vai aumentar entre uma
Europa que acredita ter o monopólio do humor e da liberdade, e o resto do
mundo, que será acusado de não ser “livre”.
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Fonte: Jornal O Globo online, 10/02/2015
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