Conhecido por seus estudos sobre “modernidade líquida”, sociólogo
polonês afirma: interregno que vivemos é transitório; sociedade já
procura novos arranjos
O sociólogo polônes Zygmunt Bauman, em entrevista à MGMagazine traduzida para o português e publicada pelo site Fronteiras do Pensamento,
fala, aos 89 anos, sobre o mundo atual e como entende os efeitos da
modernidade sobre as pessoas. “As consequências são a austeridade, o
aumento do desemprego e, sobretudo, a devastação emocional e mental de
muitos jovens que entram agora no mercado de trabalho e sentem que não
são bem-vindos, que não podem adicionar nada ao bem-estar da sociedade,
porque são uma carga”, diz.
O senhor imaginou que poderia se tornar uma estrela midiática em nível global?
Certamente não. Mas não sou uma estrela. Quando eu morrer, o que
provavelmente acontecerá logo, com certeza morrerei como uma pessoa
insatisfeita, que não alcançou seu objetivo.
Por quê?
Porque tratei de transmitir certas ideias durante toda a minha vida,
que tem sido muito longa. E quando olho pra trás, existe toda uma
montanha cinza de esperanças e expectativas que morreram ao nascer ou
faleceram muito jovens. Não tenho nada para me gabar. Tento juntar
palavras para dizer às pessoas quais são os problemas, de onde eles vêm,
onde se escondem, como encontrar ajuda para resolvê-los se for
possível. Mas são palavras. E não nego que são poderosas, porque a nossa
realidade, o que nós pensamos que é o mundo, esta sala, nossa vida,
nossas lembranças, são palavras. Mas, apesar de ter vivido tantos anos,
não consegui resolver o problema de transformar as palavras em carne.
Hoje, existe uma enorme quantidade de pessoas que querem a
transformação, que têm ideias de como tornar o mundo melhor não somente
para eles, mas também para os outros, mais hospitaleiro. Mas na
sociedade contemporânea, na qual somos mais livres do que nunca, ao
mesmo tempo somos também mais impotentes do que em qualquer outro
momento da história. Todos sentimos a desagradável experiência de ser
incapazes de mudar qualquer coisa. Somos um conjunto de indivíduos com
boas intenções, mas entre as intenções e os projetos e a realidade tem
muita distância. Todos sofremos agora mais do que em qualquer outro
momento pela falta total de agentes, de instituições coletivas capazes
de atuar efetivamente.
O que mudou?
Quando eu era jovem, todos os meus contemporâneos, de esquerda,
direita ou centro, coincidiam em um ponto: se chegamos ao governo ou
fazemos uma revolução, sabemos o que fazer e como fazer através do poder
do Estado. Agora, ninguém acredita que o governo pode fazer algo. Os
governos são vistos como instituições que nunca cumprem suas promessas. É
um grave problema. Porque significa que, embora saibamos como criar uma
sociedade mais humana – e no momento abandonamos a esperança de poder
projetá-la–, a grande pergunta, para a qual não tenho resposta, é quem
vai transformá-la em realidade.
Viver em um mundo líquido, o que isso significa exatamente?
Modernidade significa modernização obsessiva, viciante, compulsiva.
Modernização significa não aceitar as coisas como elas são, e sim
transformá-las em algo que consideramos que é melhor. Modernizamos tudo.
Você pega as suas regulações, seus objetos, e trata de modernizá-los.
Não duram muito tempo. Isso é o mundo líquido. Nada tem uma forma
definida que dure muito tempo. Deve-se dizer que fundir o que é sólido,
transformá-lo em líquido e moldá-lo de novo era uma preocupação da
modernidade desde o princípio, mas o objetivo era outro.
Arbitrariamente, mas acredito que de forma útil, situo o início da
modernidade no ano de 1.775 no terremoto de Lisboa, seguido de um
incêndio que destruiu o que restava e em seguida um tsunami que levou consigo tudo para o mar.
Por que nesse terremoto?
Foi uma catástrofe, não só material, mas também intelectual. As
pessoas pensavam, até então, que Deus tinha criado tudo, que tinha
criado a natureza e disposto leis. Mas, de repente, veem que a natureza é
cega, indiferente, hostil com os humanos. Não se pode confiar nela. O
mundo tem que estar sob direção humana. Substituir o que existe pelo que
se pode projetar. Assim, Rousseau, Voltaire ou Holbach viram que o
antigo regime não funcionava e decidiram que tinham de fundi-lo e
refazê-lo de novo no molde da racionalidade. A diferença em relação ao
mundo de hoje é que não o faziam porque não gostavam do que era sólido, e
sim, pelo contrário, porque acreditavam que o regime que existia não
era suficientemente sólido. Queriam construir algo resistente para
sempre que substituísse o oxidado. Era a época da modernidade sólida. A
época das grandes fábricas empregando milhares de trabalhadores em
enormes edifícios de tijolos, fortalezas que iam durar tanto quanto as
catedrais góticas. No entanto, a história decidiu um caminho muito
diferente.
Tornou-se líquida?
Sim. Hoje a maior preocupação da nossa vida social e individual é
como prevenir que as coisas sejam fixas, que sejam tão sólidas que não
possam mudar o futuro. Não acreditamos que existam soluções definitivas,
e não é só isso: não gostamos delas. Por exemplo: a crise que muitos
homens têm ao fazer 40 anos. Ficam paralisados pelo medo de que as
coisas já não sejam como antes. E o que mais lhes dá medo é ter uma
identidade aferrada a eles. Uma imagem que não se pode tirar. Estamos
acostumados com um tempo veloz, certos de que as coisas não vão durar
muito, de que vão aparecer novas oportunidades que vão desvalorizar as
existentes. E isso acontece em todos os aspectos da vida. Há duas
semanas, as pessoas faziam filas durante a noite pelo iPhone 5 e agora
mesmo estão fazendo pelo 6. Posso garantir que em dois anos aparecerá o 7
e milhões de iPhones 6 serão jogados no lixo. E isso dos objetos
materiais funciona da mesma forma com as relações pessoais e com a
própria relação que temos conosco mesmos, como nos avaliamos, que imagem
temos de nossa pessoa, que ambição permitimos que nos guie. Tudo muda
de um momento a outro, somos conscientes de que somos transformáveis e,
portanto, temos medo de fixar qualquer coisa para sempre. Provavelmente,
seu governo, como o do Reino Unido, convoca seus cidadãos a serem
flexíveis.
Sim, convoca.
O que significa ser flexível? Significa que você não está
comprometido com nada para sempre, mas sim pronto para mudar a sintonia,
a mente, em qualquer momento no qual seja requisitado. Isso cria uma
situação líquida. Como um líquido em um copo, no qual o mais leve
empurrão muda a forma da água. E isso está em todos os lugares.
Quais o senhor acredita que são os efeitos desta nova situação nas pessoas?
Há alguns anos, os jovens iam trabalhar para a Ford ou a Fiat como
aprendizes e podiam acabar ficando ali pelos próximos 40 anos se não se
embebedavam ou morriam antes. Hoje, os jovens que não perderam a ambição
depois de ter amargas experiências de trabalho sonham em ir ao Vale do
Silício. É a meca das ambições de todo homem jovem, a ponta da lança da
inovação, do progresso. Você sabe qual é a média de um trabalhador de
uma empresa do Vale do Silício? Oito meses. O sociólogo Richard Sennet
calculou, há uns anos, que o trabalhador médio mudaria de empresa onze
vezes durante a sua vida. Hoje, essa quantidade é inclusive maior. As
gerações que emergem das universidades em grandes quantidades estão
ainda buscando emprego. E se encontram, não tem nada a ver com suas
habilidades e expectativas. Estão empregados em trabalhos precários,
temporários, sem segurança, sem carreira. Então, a principal maneira
pela qual nos conectamos com o mundo, que é a nossa profissão, nosso
trabalho, é fluida, líquida. Estamos conectados apenas pela água. E não
se pode estar conectado por isso, ocorrem inundações, fugas…
Por isso você diz que passamos do proletariado ao precariado?
Há não muito tempo o precariado era a condição de vagabundos,
sem-teto, mendigos. Agora, marca a natureza da vida de pessoas que há 50
anos estavam bem instaladas. Pessoas de classe média. Com exceção do 1%
que está acima de tudo, ninguém pode se sentir seguro hoje. Todos podem
perder as conquistas alcançadas durante sua vida sem aviso prévio. Não
faz tantos anos, seis, o crédito e os bancos entraram em colapso e as
pessoas começaram a ser despejadas de suas casas e seus trabalhos. Antes
disso, os otimistas falavam de orgia de consumo, as pessoas pensavam
que podiam gastar dinheiro que não tinham porque as coisas seriam cada
vez melhores, assim como seus rendimentos, mas tudo isso desabou. As
consequências são hoje os cortes, a austeridade, o alto nível de
desemprego e, sobretudo, a devastação emocional e mental de muitos
jovens que entram agora no mercado de trabalho e sentem que não são
bem-vindos, que não podem acrescentar nada ao bem-estar da sociedade,
que são um peso.
Aumenta o que o senhor chama de vidas desperdiçadas.
Cada vez há mais. Mas é que, além disso, as pessoas que têm emprego
experimentam a forte sensação de que existem altas possibilidades de que
também virem resíduos. E, mesmo conhecendo a ameaça, são incapazes de
preveni-la. É uma combinação de ignorância e impotência. Não sabem o que
vai acontecer, mas nem mesmo sabendo seriam capazes de preveni-lo. Ser o
resto, um resíduo, é uma condição ainda de uma minoria. No entanto,
impacta não somente os empobrecidos, mas também setores cada vez maiores
das classes médias, que são a base de nossas sociedades democráticas
modernas. Estão atribuladas.
As classes médias vão desaparecer?
Estamos em um interregno. A palavra foi usada pela primeira vez na
história da Roma Antiga. O primeiro rei lendário foi Rômulo, que reinou
por 38 anos. Essa era a expectativa de vida das pessoas, então, quando
ele morreu, pouca gente lembrava do mundo sem ele. As pessoas estavam
confusas. O que fazer? Rômulo lhes dizia o que fazer. E se houvesse
outro, ninguém sabia o que ele lhes pediria. Gramsci atualizou a ideia
de interregno para definir uma situação na qual as antigas formas de
fazer as coisas já não funcionam, mas as formas de resolver os problemas
de uma nova maneira efetiva ainda não existem ou não as conhecemos. E
nós estamos assim. Os governos vivem presos entre duas pressões
impossíveis de reconciliar: a do eleitorado e a dos mercados. Eles têm
medo de que, se não agem como as bolsas e o capital móvel querem, as
bolsas quebrarão e o dinheiro irá a outro país. Não se trata apenas de
que possa haver corrupção e estupidez entre os nossos políticos, mas sim
que essas situações os deixam impotentes. E, por isso, as pessoas
buscam desesperadamente novas formas de fazer política.
Como os indignados?
É um bom exemplo. Se o governo não cumpre, vamos à praça pública. Mas
é uma boa tentativa que não traz muito resultado. Estamos tentando.
Tentando criar alternativas praticáveis para atender às necessidades
coletivas. O interregno por definição é transitório. Eu acredito que não
viverei para ver o novo arranjo, mas sua vida estará repleta de buscas
por essas alternativas. Porque este período de suspensão, no qual muitas
coisas vão mal e temos poucas ideias para resolvê-las, não é
eternamente concebível.
Será que já não estamos líquidos demais?
As mudanças vêm e vão. Muita gente está hoje convencida de que já
existem alternativas, mas que são invisíveis porque ainda estão muito
dispersas. Jeremy Rifkin fala da utilidade pública colaborativa.
Benjamin Barber publicou o livro Se os prefeitos governassem o mundo,
no qual diz que os estados estão acabados, que foram uma boa ferramenta
para a separação, a independência e a autonomia, mas que em nossos
tempos de interdependência devem ser substituídos. Que as instituições
locais são capazes de enfrentar os problemas muito melhor, têm a
dimensão adequada para ver e experimentar sua coletividade como uma
totalidade. Podem levar adiante lutas muito mais efetivas para melhorar
as escolas, a saúde, o emprego, a paisagem. Pede um tipo de Parlamento
mundial de prefeitos das grandes cidades. Um Parlamento onde as pessoas
falem e compartilhem experiências que são altamente parecidas. E as
mudanças podem já estar aqui. Minha tese, quando eu estudava, foi sobre
os movimentos operários na Grã Bretanha. Pesquisei nos arquivos do
século XIX e nos jornais. Para minha surpresa, descobri que até 1875 não
se mencionava que estava acontecendo uma revolução industrial, havia
apenas informações dispersas. Que alguém tinha construído uma fábrica,
que o teto de uma fábrica desabou… Para nós, é óbvio que estavam no
coração de uma revolução, para eles, não. É possível que, quando você
for entrevistar alguém dentro de 20 anos, essa pessoa lhe diga: “Quando
você entrevistou o Bauman em Leeds, vocês estavam no meio de uma
revolução e o senhor perguntava a ele sobre mudanças”.
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Fonte: No ContiOutra
http://outraspalavras.net/outrasmidias/capa-outras-midias/bauman-talvez-estejamos-em-plena-revolucao/
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