Rosana Pinheiro-Machado*
Rui Costa (PT), o governador da Bahia. Para ele, a ação da PM que acabou
com mais de dez mortos
equivale à de um artilheiro na frente do gol
Choramos pelos jornalistas do Charlie Hebdo, mas não pelos jovens negros
mortos pela PM-BA. A nossa comoção por uns e não por outros é
ideológica
A história de três mortes brutais. Eduardo
Campos, candidato à Presidência da República, sofre um acidente de avião
e tem sua vida interrompida. Um atentando em Paris executou friamente
cartunistas da revista francesa Charlie Hebdo. Mais recentemente, numa ação muito pouco justificada, a Polícia Militar da Bahia matou 15 jovens negros,
que, ao que tudo indica, foram torturados, humilhados, quando já
rendidos. Três episódios, mas somente dois causaram comoção coletiva.Por quê?
Racismo, pobrefobia, idolatria do Norte Global e produção social da indiferença são algumas das razões que explicam a desigualdade afetiva diante da morte. Durante o atentando em Paris, o tema da comoção seletiva foi bastante discutido. Por que, afinal de contas, algumas mortes comovem mais do que outras? Eu mesma já escrevi sobre a questão da identificação durante a cobertura da morte de Campos. Havia um sentimento forjado de proximidade. Ele tinha aparecido em rede nacional no dia anterior. Imaginávamos que podia ser nós naquele avião. E, claro, era jovem, branco e de olhos claros. No Charlie Hebdo foi diferente, já que em casos de terrorismo contra países desenvolvidos a mídia internacional ajuda na espetacularização. Junto a isso, as elites intelectuais brasileiras contribuíram para a comoção: incorporaram a hashtag, mandaram fotos da marcha de Paris e, claro, mostravam suas ligações com a revista e com a França. Não há absolutamente nada de errado com nenhuma dessas atitudes. Eu me horrorizei com ambas as mortes e me solidarizei profundamente com as vítimas. Só que, se a comoção seletiva da morte é construída por meio da identificação, eu apenas não acho palavras para justificar o silêncio perturbador e a indiferença em relação aos 15 meninos negros, pobres e rendidos. Não nos identificamos também com essas pessoas? Por quê?
A dor e o amor são sentimentos socialmente construídos. Isso significa dizer que a cultura influencia nossos padrões afetivos. Mas mais do que cair numa explicação vulgar culturalista, é importante situar esse conceito dentro de uma perspectiva da hegemonia de Gramsci, em que a cultura é tecida entre valores e interesses dominantes do establishment. A nossa comoção por uns e não por outros é, portanto, um fato ideológico e reflete – para nós brasileiros – uma dominação que é contra nós mesmos: ela reage a um imaginário branco que nega o fato elementar de que somos uma sociedade predominante negra. Matamos a nossa própria singularidade.
Se todo o silêncio sobre esse genocídio se justifica “porque, afinal, isso é triste, mas ocorre todos os dias”, então, eu preciso dizer, sem medir minhas palavras, que isso é um ato de canalhice intelectual. Somos, então, uma máquina concomitantemente passiva e ativa da biopolítica estatal. Passiva porque deixamos o Estado gerenciar as vidas humanas que valem mais, mas somos ativos com nossa indiferença à violência estrutural e ao sofrimento social: ao nos indignarmos com um tipo de morte e ignorarmos outro tipo, somos parte da governamentalidade que “deixa morrer” – como diria Foucault. Fazemos uma escolha do tipo de morte que vale sofrer e, portanto, dizemos o tipo de vida que merece existir.
Dando continuidade ao conceito de política da vida de Michel Foucault, o filósofo Agamben nos fala sobre a thanatopolítica, a política da morte. Ele versa sobre a vida nua daquele que nasce em um grupo cuja existência não conta como vida e é, portanto, destituído de direitos. Os 15 jovens negros da periferia são atualização desse homo sacer: corpos nus, violentados, excluídos da lei. Eles são amostras de um permanente Estado de Exceção, que suspende a lei e pratica a morte em massa. O Estado brasileiro hoje, enquanto estrutura (e não enquanto um governo, um partido ou um ator social em particular), adota a thanatopolítica. E isso é legitimado socialmente – quando não desejado conscientemente – já que a cultura produtora de emoções é um produto ideológico. Basta ver as reações – ou melhor, a não reação – às declarações do governador da Bahia que disse que o fuzilamento era como um artilheiro diante do gol.
A não-tomada de posição, já diria David Graeber, é uma tomada de posição. Somos parte do establishment e conveniente com modo operante assassino que perpetua no Brasil. Julgamos aqueles que, de forma mais consciente, dizem que bandido bom é bandido morto, mas é exatamente isso que permitimos quando ignoramos a morte desses jovens. Qual a dimensão da indignação nas suas redes sociais pelo o que ocorreu? Nenhuma! Reproduzimos a indiferença social sobre essas “vidas nuas”: as populações vulneráveis indígenas, negras, homossexuais e pobres. Choramos a morte de artistas franceses – e justificamos que há um crime maior em jogo: a liberdade de expressão. Concordo. Eu apenas penso que, por de trás daqueles meninos executados sem qualquer justificativa plausível, também temos algo maior em jogo: a construção de uma sociedade livre, democrática, justa, diversa, em que todos os corpos valham a mesma coisa.
Mais trágico do que a estupidez da morte, somente a miséria humana de nossa indiferença.
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*Rosana Pinheiro-Machado é cientista social e antropóloga. Professora do departamento de Desenvolvimento Internacional da Universidade de Oxford
Fonte: Carta Capital online, 12/02/2015
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