Alison Entrekin*
O impacto na tradução das características estruturais e culturais de um idioma
Algumas traduções saem como se fossem cópias do original. São poucas.
E tem outras em que é preciso trair para ser fiel. São a maioria. Não
digo que é o caso de trair o autor, mas de trair um pouco o que está na
página. É complexo, eu sei, porque teoricamente um livro já publicado na
língua original deveria ser tratado como algo fechado, sem precisar de
intervenções estilísticas de tradutores e editores em outras línguas.
Mas na realidade não é bem assim.
Às vezes parece que há um hiato entre as línguas e culturas. Eu diria
que o brasileiro, de forma geral, se sente mais à vontade com as
emoções fortes do que nós da língua inglesa – e a maneira de colocá-las
no papel diverge. Assim, sem nenhum ajuste, nenhuma intervenção, o que é
poético em português pode parecer meio piegas em inglês, enquanto o
nosso poético pode parecer um tanto seco transposto para o português. Um
texto analítico e espirituoso em português às vezes soa prolixo ou
pedante em inglês, ao passo que um texto claro e objetivo em inglês pode
parecer simplista demais em português.
Acho fascinante esse impacto da cultura na recepção de uma tradução.
Isto é, mesmo que exista uma tradução fiel para determinada coisa, a
maneira com que é recebida depende do condicionamento cultural e das
expectativas estéticas e estilísticas do leitor.
Mas as diferenças não são apenas culturais, também têm a ver com as
características estruturais dos idiomas. Via de regra, as frases em
português se organizam em torno dos substantivos, enquanto as mesmas em
inglês se estruturam melhor em torno dos verbos. E já falei da pontuação
em outra coluna.
Essas coisas todas influenciam o jeito que se lê uma tradução e,
portanto, são as coisas com as quais mais me preocupo no meu trabalho.
Com freqüência, eu me encontro invertendo, quebrando ou juntando frases,
trocando substantivos por verbos e fazendo pequenos – mas
significativos – ajustes à pontuação. Cometo essas traições numa
tentativa de recriar o tom e a atmosfera do original, porque acredito
que uma obra literária é maior que a soma de suas partes. Não é apenas
uma história, não são apenas as palavras escritas no papel. É toda uma
viagem metafísica que o leitor empreende, e quero que o leitor da minha
tradução faça uma viagem parecida com a do leitor do original.
As cenas eróticas são das mais encrencadas. O assunto é um campo minado de possíveis faux pas
e constrangimentos, e qualquer deslize pode produzir um efeito chulo ou
cômico. Num livro que traduzi recentemente, a autora usa a palavra
“sexo” para falar dos órgãos genitais. Cabe perfeitamente no texto
original e ela conseguiu escrever cenas sensuais sem pender para o
vulgar. Temos a mesma palavra em inglês, com a mesma acepção, mas ela
soava pudica demais na tradução. As outras opções não eram nada
animadoras. De um lado, tinha as mais pornográficas (do tipo pau e
boceta), e do outro, as mais clínicas (pênis e vagina). A esta altura,
alguns dos meus leitores devem estar rindo, enquanto outros estão se
perguntando se é necessário usar palavras tão fortes num ensaio sobre
tradução. Mas é justamente aonde quero chegar: se o tradutor errar a
mão, se a palavra não couber no contexto, ela salta da página e cria um
efeito engraçado ou constrangedor. Na tradução em questão, acabei
tirando quase todas as palavras que se referem às partes íntimas.
“Como?” você pergunta. Dei voltas, usei referências vagas (“lá em
baixo”, “entre as pernas”, etc.) e até deixei “sex” em dois lugares onde
eu achava menos estranho (mas a editora achou esquisito e pediu para
tirar).
Tive a mesma dificuldade com as menções de calcinhas, que, por algum
motivo, são um tanto controversas entre os leitores de língua inglesa. A
palavra “panties”, usada nos Estados Unidos, provoca certo mal-estar
entre outros falantes da língua inglesa, ao passo que “knickers”, usado
no Reino Unido e Austrália, produz efeito semelhante em alguns
americanos. Mas o problema não era só o fato de pertencerem a variantes
diferentes do inglês. Na minha cabeça, elas traíam o tom do texto que eu
estava traduzindo – e quando mostrei para algumas amigas veio a
confirmação: também as incomodavam. Acabei usando “underwear” (roupas
íntimas) em algumas partes da tradução, e cortando a palavra em outras.
Calcinhas molhadas, então, nem se fala! Há uma linha tênue entre o
erótico e o pornográfico – e a posição desta linha varia de língua para
língua, de cultura para cultura. A verdade é que têm coisas que você
pode falar numa língua, e não têm nada demais, enquanto na outra são
gatilhos para toda uma série de reações indesejadas. Sempre que estou na
dúvida, pergunto para amigos gringos se estão tendo a mesma reação que
eu. Chamo isso de “cringe factor” em inglês – algo como “índice de
torcimento de nariz”.
O humor é outra coisa complicada, porque depende muitas vezes de um
profundo conhecimento da cultura em questão. Quando eu era pequena, uns
amigos americanos vieram nos visitar na Austrália, e um dia assistimos
ao seriado inglês Fawlty Towers juntos. Enquanto a minha
família rolava no chão de rir, nossos amigos davam sorrisinhos amarelos,
decerto se perguntando qual era a graça daquilo.[i]
E isto é, para mim, o cerne da questão: a graça. Eu me
pergunto: “Qual é a graça (beleza/sedução/poder) deste livro? O que ele
me provoca?” e depois tento reproduzir aquilo. É uma estrela guia, muito
acima das palavras no papel, que me ajuda a ir além dos detalhes e
pensar no livro como um todo. E é por isso que gosto de ler o livro
antes de começar a tradução, porque preciso ter a experiência da leitura
como ponto de partida.
[i] Não sei se isso aconteceria hoje em dia, devido ao maior grau de intercâmbio cultural entre os Estados Unidos e a Inglaterra.
Alison Entrekin é tradutora literária australiana radicada no Brasil. Verteu para o inglês Cidade de Deus, do Paulo Lins, O filho eterno, do Cristovão Tezza, Perto do coração selvagem, da Clarice Lispector e Budapeste, do Chico Buarque, entre outros.
Fonte: http://www.revistapessoa.com/2015/02/
Nenhum comentário:
Postar um comentário