Luiz Felipe Pondé*
O sucesso físico, financeiro, intelectual ou imaterial, sempre foi um desafio: o risco é deformar a alma
A humildade é uma das virtudes mais difíceis na vida. Principalmente
porque está fora de moda, confundida com baixa autoestima. Somos
ensinados a buscar o orgulho como autoafirmação. Nada mais distante de
uma personalidade razoavelmente madura do que o orgulho.
A humildade é uma das virtudes bíblicas. O filósofo judeu Martin Buber,
quando elenca em seu maravilhoso "Hasidism and Modern Man" (Prometheus
Books), de 1988, as quatro principais virtudes do místico hassídico,
coloca a humildade como a máxima entre elas.
O hassidismo é uma escola judaica típica do leste europeu dos séculos 18
e 19, e o termo vem da palavra hebraica "hesed", que pode ser traduzida
por "piedade".
As quatro virtudes são: êxtase na contemplação ("hitlahavut"), trabalho
("avodá"), a intenção reta do coração ("kavaná") e a humildade
("shiflut"). Segundo ele, alguém que tem intimidade com D'us (no
judaísmo, não se escreve o nome de Deus completo) tem gosto pelo
trabalho, seja ele qual for, porque sente que ser parte do mundo é
colaborar com ele.
O êxtase é o que acontece com quem vê D'us e sua piedade com frequência.
O ato de contemplar D'us --a palavra "hitlahavut", em hebraico, remete
ao fogo-- "incendeia a alma". A intimidade com Deus leva o místico a não
conseguir mentir aquilo que sente e pensa, ele diz. Daí a ideia de um
coração reto.
Por fim, a humildade. As três anteriores convergem para o que Buber se
refere como a consciência de que D'us carrega o mundo na palma da Sua
mão, imagem comum na Bíblia hebraica (o Velho Testamento dos cristãos).
É comum personagens como Davi e Abraão usarem essa imagem ou similares
para descrever a relação entre D'us e o mundo. A humildade é marca
suprema da alma que se conhece sem mentir para si mesma.
A humildade também pode ser vista como grande virtude e desafio para
pessoas distantes de qualquer sensibilidade religiosa, mas que têm
grande sucesso na vida.
Se você é alguém que não teve sucesso na vida, dizer que é humilde é
mais falta de opção do que qualquer virtude de fato. Por isso, a
humildade sempre foi cobrada de grandes guerreiros e mulheres lindas.
O sucesso, seja ele físico, financeiro, intelectual ou "imaterial",
sempre foi um desafio: o risco do sucesso é deformar a alma. Sobre isso,
basta ver o horror que é o mundo intelectual e seu profundo desprezo
(ao contrário do que querem transparecer) pelo "povo".
A chamada "segurança de si" vai melhor com a humildade do que com o
self-marketing. Qualquer pessoa sabe que não se pode falar das próprias
virtudes, porque o autoelogio é signo de desespero.
A humildade é o manto com o qual a alma virtuosa se cobre e esconde sua
face. E isso nada tem a ver com tristeza ou falta de percepção do
sucesso. A felicidade, quando verdadeira, é sempre uma forma de
generosidade.
Assim como D'us esconde a sua face, segundo o hassidismo, para nos
"proteger" de sua grandeza, o virtuoso esconde seu rosto "em chamas",
seja ele incendiado por D'us, seja pelo sucesso, para que não saibam que
ele está acima do homem comum.
Não é outro o sentido de se dizer, no cristianismo, que Jesus era um
humilde. Qualquer homem comum que fosse alçado a condição de D'us seria
um miserável orgulhoso.
Porém, existe um outro tipo de humildade, de que não se costuma falar
muito, mas que considero tão essencial quanto o que é mais falado no
mundo da filosofia moral. Trata-se da humildade da qual fala Freud.
Estranho? Nem tanto. Na psicanálise, a humildade é também essencial.
O sábio de Viena dizia que se ele conseguisse levar seu paciente a
trabalhar e a amar razoavelmente, estaria satisfeito como psicanalista.
Além do fato de que grande parte dos psicanalistas é tão horrorosamente
orgulhosa quanto minha tribo de filósofos e afins (em alguns casos, o
orgulho de alguns beira o grotesco), acho que essa fala de Freud não
serve apenas para esses profissionais, mas também para os pacientes.
Muitas vezes, se concentrar em conseguir levantar de manhã e trabalhar,
conseguir olhar para as pessoas à sua volta e ser generoso, pode ser o
maior dos milagres na Terra.
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* Filósofo
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