Gerivaldo
Neiva *
Certa
vez, há muitos anos, um camponês disse à sua amada: - O que quer que eu faça
para provar meu amor por você? A amada, em tom de brincadeira, respondeu: -
Se é verdade tua louca paixão, corre e vá buscar de tua mãe o coração. O
camponês partiu rapidamente e sua amada não teve tempo de lhe explicar que tudo
não passava de uma brincadeira. Cego de paixão, o camponês encontrou a mãe
ajoelhada e rezando, mas mesmo assim rasgou-lhe o peito e arrancou-lhe o
coração.
No
retorno, cantando vitória, o camponês caiu e quebrou uma perna, lançando o
coração de sua mãe a uma certa distância. Enquanto agonizava de dor, ouviu uma
voz: - "Magoou-se, pobre filho meu? Vem buscar-me filho, aqui estou,
vem buscar-me que ainda sou teu!"
Em
resumo, este é o enredo dramático de uma canção de Vicente Celestino que fez
muito sucesso nos anos 30, inclusive servindo de inspiração para um filme, em
1951, com o mesmo nome: Coração Materno.[1]
Como
se explica racionalmente, se é que sentimentos tão profundos possam ser
explicados pela razão, que um homem, para demonstrar seu amor por uma mulher,
arranque o coração do peito da própria mãe e este coração, mesmo assim,
compadece-se do filho algoz que cai e quebra a perna: - Magoou-se, pobre
filho meu?
Ausente
a razão, portanto, pode se concluir que não há lugar para interpretações
jurídicas desse fato. O direito não alcança a tragédia humana, seja movida pelo
ódio ou pelo amor. Para o Direito, resta a interpretação criminológica do
fenômeno que resulta em uma conduta típica. O amor, o ódio e a paixão de nada
servem para o Direito.
De
outro lado, são esses sentimentos que movem a vida das pessoas e o mundo. Sim,
o mundo move-se pela força do amor, do ódio e da paixão. Sendo assim, então,
por que o Direito não alcança esses sentimentos quando lida com as tragédias
humanas? Pode o Direito, ou qualquer outra ciência, interpretar apenas
criminologicamente fenômenos perpassados por sentimentos que só a alma humana
pode entender? Enfim, que lugar teria para o Direito as razões de um homem que
arranca o coração da mãe para provar seu amor e o amor dessa mãe ao perdoar o
filho?
Na
verdade, o amor é algo que muito se sente e pouco se explica. Utilizando-se da
primeira epístola de Paulo aos Coríntios, o cantor e poeta Renato Russo (Legião
Urbana) traduziu muito bem: “O amor é o fogo que arde sem se ver. É ferida
que dói e não se sente. É um contentamento descontente. É dor que desatina sem
doer. [...]É um não querer mais que bem querer. É solitário andar por entre a
gente. É um não contentar-se de contente. É cuidar que se ganha em se perder. É
um estar-se preso por vontade. É servir a quem vence, o vencedor. É um ter com
quem nos mata a lealdade. Tão contrário a si é o mesmo amor”.
Na
legislação brasileira, o Código Penal prevê a hipótese do perdão do ofendido para os
crimes que se procedem mediante Queixa, extinguindo-se a punibilidade, conforme
dispõem os artigos 105 e 107, V, do citado diploma legal. A figura do perdão
judicial é prevista no artigo 121, §, do Código Penal, apenas para os crimes de homicídio culposo: “Na
hipótese de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as
consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a
sanção penal se torne desnecessária”. Assim, por exemplo, o pai que
atropela culposamente o próprio filho ao manobrar o carro na garagem pode não
sofrer punição, tendo-se em vista a grave consequência de atropelar e matar o
próprio filho.
Por
fim, utilizando-se do recurso Ctrl+f, busquei na Constituição Brasileira palavras como amor,
abraço, amigo, amizade, beijo, beleza, carinho, dedicação, gostar, música,
paixão, poesia, saudade, traição etc. Para minha decepção, só encontrei amor
em amortização no artigo 234,
Que decepção! Por que estas palavras não estão na Constituição? Será que não
pode? Sei que não pode: lei é lei e poesia é poesia! Basta!
Prá
não dizer que não falei de flores, na legislação brasileira existe hipótese em
que a ausência do amor ou a traição são punidos severamente. Aliás, é a única
hipótese de pena de morte no Brasil. De fato, o artigo 355, do Código Penal Militar, prevê a pena de morte para o crime de
traição à pátria: “Tomar o nacional armas contra o Brasil ou Estado aliado,
ou prestar serviço nas forças armadas de nação em guerra contra o Brasil”.
Como
se vê, finalmente, estamos muito distantes ainda de construirmos um direito
para a vida plena, feliz e abundante. Um Direito que tenha como objetivo
proporcionar a felicidade e que tenha a capacidade de entender o amor como o
combustível para as relações humanas e das pessoas para com o planeta. Fora
disso, a pena de morte continuará em vigor para o crime
militar de “traição” e, mesmo que não prevista em lei, para os
jovens negros e excluídos das periferias, mortos em tantas chacinas estampadas
diariamente nos jornais do país e no choro incontido de suas mães, que lhes
perdoarão sempre: - Magoou-se, pobre filho meu?
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*
Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e
Porta-Voz no Brasil do movimento Law Enforcement Against Prohibition
(Leap-Brasil).
Coração
Materno, interpretada por Caetano Veloso: http://youtu.be/hJkZWhDcMi0
[1]Coração
Materno, de Vicente Celestino.
Disse
um campônio à sua amada: "Minha idolatrada, diga o que quer/Por ti vou
matar, vou roubar/Embora tristezas me causes mulher/Provar quero eu que te
quero/Venero teus olhos, teu porte, teu ser/Mas diga, tua ordem espero/Por ti
não importa matar ou morrer"/E ela disse ao campônio, a brincar/"Se é
verdade tua louca paixão/Parte já e pra mim vá buscar/De tua mãe, inteiro o
coração"/E a correr o campônio partiu/Como um raio na estrada sumiu/E sua
amada qual louca ficou/A chorar na estrada tombou/Chega à choupana o
campônio/Encontra a mãezinha ajoelhada a rezar/Rasga-lhe o peito o
demônio/Tombando a velhinha aos pés do altar/Tira do peito sangrando/Da velha
mãezinha o pobre coração/E volta a correr proclamando/"Vitória, vitória,
tem minha paixão"/Mas em meio da estrada caiu/E na queda uma perna
partiu/E à distância saltou-lhe da mão/Sobre a terra o pobre coração/Nesse
instante uma voz ecoou: "Magoou-se, pobre filho meu? Vem buscar-me filho,
aqui estou, vem buscar-me que ainda sou teu"
Fonte: http://gerivaldoneiva.jusbrasil.com.br/artigos/167148064/o-amor-o-amor-materno-e-o-direito?utm_campaign=newsletter-daily_20150212_722&utm_medium=email&utm_source=newsletter
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