Juremir Machado da Silva*
Entrevista do Caderno de Sábado com Shlomo Sand
Raízes do sangue e do ódio
Judeu, historiador, professor da Universidade de Tel Aviv, autor de
vários best-sellers, entre os quais “A invenção do povo judeu” e “Como
deixei de ser judeu”, Shlomo Sand, 68 anos, é um intelectual polêmico
que não teme enfrentar as posições dominantes nem a ira de alguns dos
seus colegas de profissão. De Nice, na França, onde passava alguns dias
ao sol e escrevendo um livro sobre a relação da história com a ciência,
ele concedeu, por telefone, esta entrevista ao Caderno de Sábado. Como
sempre, foi implacável.
Passado o impacto da tragédia de Charlie Hebdo, Sand faz o balanço da
relação do Ocidente com a religião islâmica e do conflito
israelo-palestino,
Caderno de Sábado – Por que, após os atentados de Paris, o senhor
declarou, contra boa parte da intelectualidade, não ser Charlie?
Shlomo Sand – Logo depois dos atentados de Paris, escrevi um texto
intitulado “Eu sou Charlie Chaplin”. Expus a minha recusa ao slogan “eu
sou Charlie”, que reuniu pessoas solidárias aos cartunistas de Charlie
Hebdo assassinados por extremistas. O crime cometido não tem
justificativa nem desculpa. Dito isso, eu fiz a seguinte pergunta: devo
me identificar com as vítimas e ser Charlie porque os mortos
representavam a encarnação da liberdade de expressão? Algumas das
caricaturas de Charlie Hebdo eram de mau gosto. Apenas algumas delas me
faziam rir. Havia na maioria das charges publicadas pelo jornal uma
raiva manipuladora com o objetivo de conquistar mais leitores. A
caricatura de Maomé com um turbante-bomba publicada por um jornal
dinamarquês em 2006 já me havia parecido uma pura provocação. Algo como
relacionar judeu com dinheiro. Tudo isso só tem servido para associar
islamismo e terrorismo. Incita ao ódio, dissemina preconceito,
desrespeita a fé do outro. Sendo assim, não sou Charlie.
Caderno de Sábado – O que deve prevalecer, a liberdade de expressão,
de sátira, de humor, ou o respeito às crenças e às diferenças?
Sand – O limite da liberdade de expressão é a difusão do racismo.
Duvido que Charlie Hebdo se atrevesse, como escrevi no meu artigo logo
depois dos fatos, a publicar uma caricatura do profeta Moisés de quipá
com ar de agiota numa esquina. Concordo com a proibição, na França, a
que o humorista e polemista Dieudonné faça piadas com o holocausto, mas
não posso admitir que ele seja agredido. Se fosse, porém, eu não sairia
com um cartaz dizendo “eu sou Dieudonné”. O limite ao humor é a
incitação ao ódio, ao racismo e ao preconceito. Uma coisa é satirizar
uma religião dominadora e opressiva. Outra, atacar a crença de grupos
dominados e humilhados. O Ocidente está acostumado a apoiar as piores
opressões no Oriente Médio. Dito isso, precisamos lutar contra o
extremismo de organizações como o Estado Islâmico, sem esquecer que
europeus deixaram esse crescimento acontecer bancando, muitas vezes, os
bombeiros incendiários.
Caderno de Sábado – O Ocidente tem então responsabilidade no que aconteceu como sustentam alguns intelectuais de esquerda?
Sand – É disso que estou falando. O Ocidente não faz o papel de
Voltaire no Oriente Médio ou no mundo islâmico. É preciso não
ridicularizar grosseiramente o islamismo na Europa onde vivem milhões de
muçulmanos em condições precárias, realizando os trabalhos mais
insalubres. Por tudo isso, não sou Charlie. Minha simpatia fica com os
muçulmanos que vivem em guetos e poderão ser vítimas do ódio
desencadeado pelos atentados. Minha referência é outro Charlie, aquele
que nunca zombou de pobres e humildes, Charlie Chaplin. É fundamental
lutar contra o terrorismo, que existe e produz devastação, tomando-se o
cuidado de não estimular racismo e ódio. Além disso, a Europa não pode
esquecer seu passado colonialista recente e os rastros que isso deixou. A
Europa acompanhou os Estados Unidos ajudando a criar o caos no Iraque e
na região. Com apoio de aliados “esclarecidos”, grandes defensores da
“liberdade de expressão”, como os sauditas, ajuda a preservar fronteiras
ilógicas estabelecidas por interesses imperialistas. A minha conclusão é
simples: o Ocidente não é a vítima ingênua e inocente como gosta de se
apresentar. A França é responsável pela situação atual do Mali.
Precisamos dar uma basta à hipocrisia que dá aos ocidentais sempre o bom
papel. Intelectuais e escritores desempenham um papel nisso.
Caderno de Sábado – Livros como o romance de Michel Houellebecq,
“Submissão”, que trata da ascensão ao poder na França de um presidente
muçulmano, em 2022, incitam o medo do islamismo?
Sand – Michel Houellebecq, mesmo que não seja a sua intenção,
contribui para que as pessoas sintam medo do islamismo. Ninguém pode
escrever um livro tendo como tema uma ameaça de judeização do mundo, mas
o autor de um romance sobre uma ameaça de islamização ganha todos os
espaços de mídia. A questão é: como lutar contra o terrorismo? A
resposta, como venho mostrando nas minhas reflexões sobre o conflito
israelo-palestino, está em entender as origens do conflito. Sem
desconstruir os mitos não se chega ao cerne dos problemas maiores.
Caderno de Sábado – Como viu a participação do primeiro-ministro
israelense Benjamin Netanyahu nas manifestações de Paris depois do
atentado contra a mercearia judaica e contra Charlie Hebdo?
Sand – Terrível. Netanyahu nem sequer compreende o fato de que judeus
possam viver em outros países. Na cabeça dele, todo judeu fora de
Israel está em situação temporária fora de casa e deveria voltar para o
seu lugar. Ele não entende o conceito de cidadão e de cidadania.
Caderno de Sábado – Um dos assassinos dos atentados de Paris, o que
invadiu a mercearia de produtos judaicos, fez menção à questão da
Palestina. O senhor é um estudioso das relações entre judeus e
palestinos. Vê uma saída para esse conflito que parece sem fim?
Sand – Não. Não vejo saída. Seria preciso uma forte pressão
internacional para salvar Israel de si mesmo. Essa pressão teria de vir
dos Estados Unidos, mas isso não acontecerá, pois Barack Obama não é
presidente que se poderia imaginar. Ele cedeu rapidamente ao lobby
sionista e aos interesses da indústria armamentista. Israel não percebe
as próprias contradições. Desde 1947, instalou um regime de apartheid
que não para de se acentuar. Temo pelo futuro de Israel. As reações e
revoltas poderão se ampliar atingido até a Galileia.
Caderno de Sábado – Não vê Israel como uma verdadeira democracia?
Sand – Claro que não. Israel é uma etnocracia, o Estado dos judeus, o
que se baseia numa visão etnocêntrica. Uma democracia é de todos os
seus cidadãos independentemente das suas crenças ou “raças”. As medidas
recentes com o objetivo de enfatizar o caráter judaico do Estado de
Israel enfatizam esse elemento inaceitável de separação. Israel e Líbano
são dois países com elementos liberais e democráticos, mas Israel não
pode ser visto como uma verdadeira democracia na medida em que não
aceita o fundamento universalista do regime democrático. Os
assentamentos, que continuam, e a lógica empregada pelo sistema
dominante alimentam esse apartheid que tem consequências cotidianas
deploráveis para palestinos vivendo em condições precárias e
insustentáveis. Qualquer um pode ver isso. Repito, só a pressão
internacional poderá levar Israel a ser democrático. Quanto ao conflito,
precisamos de dois Estados com base nas fronteiras de 1967. Fora disso,
nada poderá funcionar mesmo.
Caderno de Sábado – Como superar a questão dos refugiados palestinos
que gostariam de ter direito de retornar à terra de pais ou avós?
Sand – Temos de ver a situação com moderação. Todos os refugiados não
podem voltar, pois isso significaria o fim de Israel. Mas precisamos
fazer com que uma parte desses descendentes de palestinos possa voltar. O
princípio é simples: em 1947, a terra onde está Israel era deles, dos
palestinos, que foram expulsos de lá. Essa história de direito de dois
mil à terra de Israel é uma bobagem. Ninguém tem esse tipo de direito.
Ou todos os brasileiros de origem europeia deveriam sair do país e
devolver o Brasil inteiro aos índios? Os Estados Unidos também deveriam
ser evacuados? Não existe isso. Os judeus não são um povo, não são uma
raça. Há judeus russos, poloneses, judeus saídos do Iêmen, de origens
distintas. Só a religião é comum entre eles. Os brasileiros não são uma
raça. Nem os judeus. Boa parte dos judeus de hoje não descende de
ninguém que jamais tenha vivido na Palestina, mas de pessoas convertidas
ao judaísmo em outros lugares.
Caderno de Sábado – E a lei de retorno para judeus?
Sand – Só devem poder ir viver em Israel judeus perseguidos. É um
critério factível e sustentável moralmente. Os demais têm as suas
nacionalidades e não são nem devem ser israelenses. Os fundamentos que
justificam a existência de Israel são o holocausto e o fato consumado.
Dado que Israel existe, precisa continuar existindo. Para isso, temos de
conciliar israelenses e palestinos no mesmo espaço. Como a terra era
dos palestinos e não se pode receber de volta todos os refugiados, cabe
juntar dinheiro e indenizar todos os que foram despojados. Um mítico
direito de dois mil anos atrás não pode se sobrepor ao direito de
propriedade legítimo de 1947. Israel precisa assumir o seu papel na
tragédia da população palestina.
Caderno de Sábado – Não acredita numa unidade genômica dos judeus?
Sand – De jeito nenhum. Essas pesquisas de DNA, essas pesquisas que
falam de um DNA comum a todos os judeus, são uma empulhação. Tudo isso
faz parte de um mito perigoso, o mito do povo judeu como raça.
Caderno de Sábado – Seus colegas o odeiam?
Sand – Historiadores apegados aos mitos sionistas me odeiam, mas meus
livros são best-sellers em Israel. Estou escrevendo um livro sobre
história e ciência para mostrar que história não é ciência. Ideologias,
mitos e emoções permeiam boa parte dos relatos.
------------------* Professor Universitário. Sociólogo. Escritor.
Fonte: Correio do Povo online, 08/02/2015
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