George Monbiot*
"Assim como a sociedade humana foi despedaçada pelo consumismo e
pelo materialismo, empurrando-nos para uma Era da Solidão sem
precedentes, os ecossistemas foram destroçados pelas mesmas forças"
Uma mulher entra numa grande loja de varejo. Sufocada pelas
prateleiras abarrotadas, música melosa, cartazes de ofertas,
consumidores indiferentes que perambulam pelos corredores, ela e é
levada a gritar – repentinamente e para seu próprio espanto. “Isso é
tudo o que existe?” Um funcionário sai de seu posto e vem até ela: “Não,
minha senhora. Tem mais coisas em nosso catálogo.”
Essa é a resposta que recebemos para tudo – a única resposta. Podemos
ter perdido nossos vínculos, nossas comunidades e nossa noção de
sentido e valor, mas sempre haverá mais dinheiro e objetos com que
substituí-los. Agora que a promessa evaporou, o tamanho do vazio
torna-se compreensível.
Não que a velha ordem moderna fosse necessariamente melhor: era ruim
de modo diferente. Hierarquias de classe e gênero esmagam o espírito
humano tão completamente quanto a fragmentação. A questão é que o vazio
preenchido com lixo poderia ter sido ocupado por uma sociedade melhor,
construída sobre apoio mútuo e conectividade, sem a estratificação
asfixiante da velha ordem. Mas os movimentos que ajudaram a quebrar o
velho mundo foram favorecidos e cooptados pelo consumismo.
A individuação, resposta necessária à conformidade opressiva, é
capturável. Novas hierarquias sociais, construídas em torno de bens que
dão status, e consumo compulsivo tomaram o lugar da velha. O conflito
entre individualismo e igualitarismo, ignorado por aqueles que ajudaram a
quebrar as velhas normas e restrições opressivas, não se resolve por si
mesmo.
De modo que nos encontramos perdidos no século 21, vivendo num estado
de desagregação social que dificilmente alguém desejou, mas emerge de
um mundo que depende do aumento do consumo para evitar o colapso
econômico, saturado de publicidade e enquadrado pelo fundamentalismo de
mercado. Habitamos um planeta que nossos ancestrais achariam impossível
imaginar: 7 bilhões de pessoas padecendo de solidão epidêmica. É um
mundo feito por nós, mas que não escolhemos.
Agora, tudo indica que a festa para a qual fomos convidados é
restrita aos poucos. Há duas semanas, a Oxfam revelou que o 1% mais rico
do planeta possui agora 48% da riqueza mundial; e ano que vem, eles
terão mais que o resto do mundo inteiro junto. No mesmo dia, uma empresa
austríaca divulgou o modelo de seu novo superiate. Construído sobre o
casco de um navio petroleiro, medirá 280 metros (918 pés) de
comprimento. Terá 11 decks, três helipontos, teatros, salas de concerto e
restaurantes, carros elétricos para levar proprietário e hóspedes de um
lado para o outro do navio, e uma pista de esqui com quatro andares.
Em 1949, Aldous Huxley escreveu a George Orwell
argumentando que sua própria visão distópica era a mais convincente. “O
desejo de poder pode ser tão plenamente satisfeito quando se leva as
pessoas a amarem sua servidão quanto se você as flagela e chuta para que
obedeçam…” Não creio que estivesse errado.
O consumismo é contrário ao bem comum. Ele reprime a sensibilidade,
embotando nosso interesse por outras pessoas. A liberdade de gastar
desloca outras liberdades, assim como comer em posição de lótus
possibilita esquecer nossas carências. A maioria das formas pacíficas de
protesto são agora proibidas, mas ninguém nos impede de devorar os
recursos dos quais dependem as futuras gerações. Tudo isso ajuda os
oligarcas globais a esgarçar a rede de segurança social, encontrar um
jeito de aliviar-se das restrições impostas tanto pela democracia quanto
pela tributação e neutralizar ou privatizar o bem comum.
Assim como a sociedade humana foi despedaçada pelo consumismo e pelo
materialismo, empurrando-nos para uma Era da Solidão sem precedentes, os
ecossistemas foram destroçados pelas mesmas forças. É a mentalidade
consumista, elevada à escala global, que agora nos ameaça com um colapso
climático, catalisa uma sexta grande extinção de espécies, põe em risco
o abastecimento global de água e violenta o solo do qual toda a vida
humana depende.
Mas eu não acredito que o consentimento à servidão, vislumbrado por Huxley,
seja um estado permanente. A estagnação dos salários, a brutalidade das
novas condições de emprego, o rompimento do vínculo entre progressão
educacional e avanço social, a impossibilidade para muitos jovens de
encontrar boa moradia: tudo nos confronta com a pergunta que só poderia
ser adiada em condições de crescimento geral da prosperidade – “isso é
tudo o que existe”?
Como sugere o crescimento do Syriza e do Podemos,
não é possível construir movimentos políticos que desafiem essas
questões se não construirmos também relações sociais. Não é suficiente
convocar as pessoas a mudar suas políticas: precisamos criar não só
identidade com projetos políticos, mas também experiências de apoio
mútuo que ofereçam a segurança, a sobrevivência e o respeito que o
Estado não mais proverá.
Em uma série notável de iniciativas que se desdobram além de seus
temas usuais, a rede Amigos da Terra começou a explorar as formas como
podemos nos reconectar uns com os outros e com o mundo natural. Está,
por exemplo, procurando novos modelos para a vida urbana com base na
partilha, ao invés do consumo competitivo. Partilha não apenas de
carros, eletrodomésticos e ferramentas, mas também de dinheiro (por meio
de cooperativas de crédito e microfinanças) e poder. Isso significa um
processo de decisões, liderado pela comunidade, em relação a temas como
transporte, planejamento e talvez os níveis de renda, salários mínimos e
máximos, os orçamentos municipais e a tributação.
Tais iniciativas não substituem a ação governamental: sem a
articulação do Estado, elas perdem sentido. Mas podem unir pessoas com
uma noção comum de propósito, pertencimento e apoio mútuo que os
processos centralizados nunca poderão proporcionar.
Os Amigos da Terra também apoiam a revolução da empatia liderada pelo autor Roman Krznaric,
e a educação permanente, que poderia contrapor-se à escolaridade sempre
mais restrita, hoje imposta a nossos filhos – uma educação cujo
objetivo é preparar as pessoas para empregos que nunca terão, a serviço
de uma economia organizada em benefício de outros.
Nessas ideias e movimentos encontramos os sinais de uma resposta à
pergunta inicial. Não, isso não e tudo que existe. Há conexão. Apesar
dos melhores esforços daqueles que acreditam não haver algo chamado
sociedade, não perdemos nossa capacidade de nos vincular.
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* Escreve George Monbiot, jornalista,
escritor, acadêmico e ambientalista do Reino Unidos, escreve uma coluna
semanal no jornal The Guardian, em artigo publicado pelo sítio Outras Palavras, 10-02-2015.
Fonte: IHU online, 13/02/2015
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