quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Uma filosofia do vício

Rosângela Chaves*
 
O sucesso do livro Cinquenta Tons de Cinza, da inglesa E. L. James, embalado agora pela estreia do filme baseado na obra, impulsionou o lançamento de uma série de publicações que exploram um erotismo mais picante – basta percorrer as livrarias para deparar-se com títulos sugestivos como A Cor da Luxúria ou Algemas de Seda. O curioso é que toda essa subliteratura pode parecer até “casta” diante daquele que é um dos mais importantes nomes da ficção erótica de todos os tempos e cujo bicentenário de morte foi celebrado em dezembro do ano passado: o Marquês de Sade (1740-1814).

Hoje um autor praticamente ignorado do grande público, Sade – cujo nome, não por acaso, deu origem ao termo “sadismo” – deixou uma obra que ainda provoca perplexidade. Um de seus livros mais famosos, 120 Dias de Sodoma, foi levado às telas por Pasolini – e quem viu essa crua e polêmica adaptação feita pelo cineasta italiano sabe a que excessos pode chegar a tirania sexual concebida pelo autor libertino francês.

Num ensaio sobre Sade, Roland Barthes escreveu que ele pode ser considerado o fundador de uma linguagem do erotismo. Para Barthes, os críticos de Sade o censuram por insistirem em ver em sua obra traços de realismo. Mas o universo de Sade, argumenta, é o da imaginação, do discurso – e os cerca de 600 tipos de perversão sexual que ele tão metodicamente descreve em 120 Dias de Sodoma são uma prova de que está mais próximo da fábula do que da realidade.

No ensaio O Homem Revoltado, Albert Camus também reflete sobre a obra de Sade. Sem o mesmo entusiasmo de Barthes pela literatura sadiana, Camus considera o escritor libertino um precursor das ideologias totalitárias que dominariam o mundo na primeira metade do século 20. No seu entendimento, Sade deu impulso a uma moral da dominação, ao proclamar o império dos desejos sobre a ética e a razão. A celebração do sexo feita por Sade está longe, segundo Camus, de ser democrática – essa sexualidade sem freios é prerrogativa de nobres (como o próprio Marquês), que têm a sua disposição uma fileira de escravos para se submeter a seus caprichos.

Esse autor tão controverso, curiosamente, não via a si mesmo como um mero autor de livros eróticos. A pretensão de Sade era maior: seu propósito era erigir uma “filosofia do vício”, que exaltava tanto o sexo quanto o crime. Se levarmos em conta que Sade amargou quase 30 anos na prisão – por conta dos escândalos em que se envolveu e em represália à publicação dos seus romances libidinosos –, escapou por pouco da guilhotina durante a Revolução Francesa e morreu num hospício aos 74 anos, não é de se espantar que tenha desenvolvido uma imaginação tão prodigiosa e depravada. Como diz Camus a respeito do autor, “27 anos de prisão não produzem uma inteligência conciliadora. Um confinamento tão longo engendra vassalos ou assassinos”.
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* Jornalista. Mestre em filosofia.
Fonte: O Popular online, 25/02/2015
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