TONY BRENTON*
A
crise na Ucrânia tem um ano. Após o drama inicial, o caso assumiu os
contornos de uma telenovela demasiado realista. Os mesmos enredos estão
sempre a aparecer: a contagem de mortos crescente, as acusações de
atrocidades de ambos os lados, as sanções, os cessar-fogos regulares e
regularmente quebrados.
Essa fase pode estar a acabar agora. Os russos rearmaram os rebeldes do Leste da Ucrânia, que estão a atravessar um período de sucessos militares. Este facto fez que Washington se sentisse inclinada a fornecer armamento letal ao governo ucraniano de Kiev. A perspetiva que isto acarreta de um confronto mais direto entre a Rússia e o Ocidente alarmou Angela Merkel e François Hollande o suficiente para os fazer correr para Moscovo naquilo que se esperava vir a ser uma derradeira missão de paz.
Aí encontraram-se com Vladimir Putin. Muito depende agora de quem é o Sr. Putin e o que pretende alcançar. Encontrava-me com ele regularmente quando era embaixador em Moscovo entre 2004 e 2008 e regressei com umas ideias muito claras sobre o desafio que eles enfrentaram. Putin, nascido numa família pobre em 1952 em São Petersburgo, reconhece que foi um rapaz rebelde que foi detido devido ao seu vandalismo. Nesse ponto a intensa autodisciplina, característica que ainda tem muito peso na sua personalidade, entrou em ação. Ele trabalhou duramente até conseguir uma licenciatura em Direito, um cinto preto de judo e a admissão na organização de elite da União Soviética, o KGB. É um pouco como conseguir passar do reformatório para a Guarda Russa.
Depois de um período a trabalhar em São Petersburgo a seguir à queda do comunismo (onde o conheci como um jovem oficial com a reputação de conseguir as coisas feitas), a sua ascensão subsequente foi meteórica. Dependeu de dois atributos que eu vi nele em abundância - lealdade e impiedade. As suas ligações próximas a antigos colegas do KGB levaram-no de São Petersburgo para o Kremlin em 1997. Lá, ele próprio se recomendou ao presidente Ieltsin, tanto através da pura competência administrativa como por derrubar um procurador problemático que andava atrás da família de Ieltsin.
E a sua escolha final como sucessor de Ieltsin em 1999 teve a ajuda do seu bem-sucedido avanço na segunda guerra da Chechénia, lançada em resposta a uma série de ataques terroristas (alegadamente organizados pelos serviços secretos russos), nos quais morreram centenas de russos inocentes.
Como presidente, Putin continua a exibir as mesmas qualidades que o levaram ao topo. Numa cultura que premeia os excessos emocionais, nunca o vi abandonar-se a eles. Está sempre impecavelmente vestido, exala uma espécie de agressiva aptidão física que intimida os flácidos homens de meia-idade que o rodeiam e tem um domínio impressionante dos factos de qualquer assunto que esteja a discutir. Vi-o corrigir ministros britânicos sobre os pormenores do mercado do gás do Reino Unido e espantar autoridades dos serviços secretos britânicos ao responder-lhes a uma exposição sobre as nossas políticas antiterroristas com a afirmação contundente: "Nós matamo-los." As suas conferências de imprensa anuais são tours de force - três horas sem notas a aceitar perguntas de todos os lados, sobre todos os assuntos. Os nossos políticos nunca tentariam tal coisa.
Pelo menos em público a empatia não é o seu forte (um relatório da CIA de 2008 concluía mesmo que ele tem síndrome de Asperger). Ficou famosa a sua resposta às perguntas sobre a perda do submarino Kursk com 118 vidas lá dentro: "Afundou--se." Mas apesar de direto, ele consegue ser hábil e egoisticamente opaco. Passou os últimos onze meses a negar, perante a evidência mais forte, que a Rússia tivesse quaisquer tropas na Ucrânia. Numa menor dimensão sei que em 2008, a seguir a uma explosão na televisão de raiva contra um oligarca devido ao fecho de uma fábrica, os dois deram os parabéns um ao outro pelos seus desempenhos depois de a câmara ser desligada.
Putin é fundamentalmente motivado pela sua determinação em restaurar a Rússia como uma potência para ser levada a sério. Ele desconfia profundamente do Ocidente. Mas não gosta de correr riscos. O seu orgulho na Rússia era evidente sempre que o encontrei, desde as extravagantes receções no Kremlin para celebrar a elite artística russa até à sua resposta fria numa reunião em Downing Street ao ouvir que um projeto de gás iria custar à Rússia mais milhares de milhões do que o previsto - seguida, por fim, da expropriação russa da empresa em questão. A sua cautela tem sido muito questionada desde a anexação da Crimeia no ano passado - que apanhou praticamente todos os observadores de surpresa (incluindo eu). Mas o Putin que eu conheci era um homem que analisava as situações muito cuidadosamente, estava muito consciente da fraqueza relativa da Rússia em relação ao Ocidente e agia apenas se estivesse confiante numa vantagem decisiva ou se sentisse insuportavelmente provocado - como aconteceu na Georgia em 2008. Não existe simplesmente qualquer prova que justifique a histeria ocidental sobre uma Rússia revanchista. O Putin que conheço não vai confrontar a NATO.
Não obstante, sair da confusão instalada na Ucrânia não vai ser fácil. Putin assumiu publicamente a proteção dos dissidentes do Leste. Também não vai deixar a Ucrânia abandonar o seu estatuto de neutralidade e aderir à NATO. Não vai deixar que as pressões económicas ou mesmo o fornecimento de armas o forcem a aceitar um acordo com perdas para aquilo que ele vê como interesses russos vitais. Ele sabe que a elite russa, e o povo, o apoiam firmemente em tudo isto. Por outro lado, não quer a guerra com toda a certeza. E não quer juntar a enfraquecida Ucrânia Oriental, menos ainda outras partes da antiga União Soviética, à já substancial crise económica russa. Merkel e Hollande enfrentam uma tarefa extremamente difícil. E Vladimir Putin faz questão que assim seja. Mas a última coisa que ele quer é torná-la impossível.
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* EX-EMBAIXADOR BRITÂNICO NA RÚSSIA
Fonte: http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=4393463&page=-1
Imagem da Internet
Essa fase pode estar a acabar agora. Os russos rearmaram os rebeldes do Leste da Ucrânia, que estão a atravessar um período de sucessos militares. Este facto fez que Washington se sentisse inclinada a fornecer armamento letal ao governo ucraniano de Kiev. A perspetiva que isto acarreta de um confronto mais direto entre a Rússia e o Ocidente alarmou Angela Merkel e François Hollande o suficiente para os fazer correr para Moscovo naquilo que se esperava vir a ser uma derradeira missão de paz.
Aí encontraram-se com Vladimir Putin. Muito depende agora de quem é o Sr. Putin e o que pretende alcançar. Encontrava-me com ele regularmente quando era embaixador em Moscovo entre 2004 e 2008 e regressei com umas ideias muito claras sobre o desafio que eles enfrentaram. Putin, nascido numa família pobre em 1952 em São Petersburgo, reconhece que foi um rapaz rebelde que foi detido devido ao seu vandalismo. Nesse ponto a intensa autodisciplina, característica que ainda tem muito peso na sua personalidade, entrou em ação. Ele trabalhou duramente até conseguir uma licenciatura em Direito, um cinto preto de judo e a admissão na organização de elite da União Soviética, o KGB. É um pouco como conseguir passar do reformatório para a Guarda Russa.
Depois de um período a trabalhar em São Petersburgo a seguir à queda do comunismo (onde o conheci como um jovem oficial com a reputação de conseguir as coisas feitas), a sua ascensão subsequente foi meteórica. Dependeu de dois atributos que eu vi nele em abundância - lealdade e impiedade. As suas ligações próximas a antigos colegas do KGB levaram-no de São Petersburgo para o Kremlin em 1997. Lá, ele próprio se recomendou ao presidente Ieltsin, tanto através da pura competência administrativa como por derrubar um procurador problemático que andava atrás da família de Ieltsin.
E a sua escolha final como sucessor de Ieltsin em 1999 teve a ajuda do seu bem-sucedido avanço na segunda guerra da Chechénia, lançada em resposta a uma série de ataques terroristas (alegadamente organizados pelos serviços secretos russos), nos quais morreram centenas de russos inocentes.
Como presidente, Putin continua a exibir as mesmas qualidades que o levaram ao topo. Numa cultura que premeia os excessos emocionais, nunca o vi abandonar-se a eles. Está sempre impecavelmente vestido, exala uma espécie de agressiva aptidão física que intimida os flácidos homens de meia-idade que o rodeiam e tem um domínio impressionante dos factos de qualquer assunto que esteja a discutir. Vi-o corrigir ministros britânicos sobre os pormenores do mercado do gás do Reino Unido e espantar autoridades dos serviços secretos britânicos ao responder-lhes a uma exposição sobre as nossas políticas antiterroristas com a afirmação contundente: "Nós matamo-los." As suas conferências de imprensa anuais são tours de force - três horas sem notas a aceitar perguntas de todos os lados, sobre todos os assuntos. Os nossos políticos nunca tentariam tal coisa.
Pelo menos em público a empatia não é o seu forte (um relatório da CIA de 2008 concluía mesmo que ele tem síndrome de Asperger). Ficou famosa a sua resposta às perguntas sobre a perda do submarino Kursk com 118 vidas lá dentro: "Afundou--se." Mas apesar de direto, ele consegue ser hábil e egoisticamente opaco. Passou os últimos onze meses a negar, perante a evidência mais forte, que a Rússia tivesse quaisquer tropas na Ucrânia. Numa menor dimensão sei que em 2008, a seguir a uma explosão na televisão de raiva contra um oligarca devido ao fecho de uma fábrica, os dois deram os parabéns um ao outro pelos seus desempenhos depois de a câmara ser desligada.
Putin é fundamentalmente motivado pela sua determinação em restaurar a Rússia como uma potência para ser levada a sério. Ele desconfia profundamente do Ocidente. Mas não gosta de correr riscos. O seu orgulho na Rússia era evidente sempre que o encontrei, desde as extravagantes receções no Kremlin para celebrar a elite artística russa até à sua resposta fria numa reunião em Downing Street ao ouvir que um projeto de gás iria custar à Rússia mais milhares de milhões do que o previsto - seguida, por fim, da expropriação russa da empresa em questão. A sua cautela tem sido muito questionada desde a anexação da Crimeia no ano passado - que apanhou praticamente todos os observadores de surpresa (incluindo eu). Mas o Putin que eu conheci era um homem que analisava as situações muito cuidadosamente, estava muito consciente da fraqueza relativa da Rússia em relação ao Ocidente e agia apenas se estivesse confiante numa vantagem decisiva ou se sentisse insuportavelmente provocado - como aconteceu na Georgia em 2008. Não existe simplesmente qualquer prova que justifique a histeria ocidental sobre uma Rússia revanchista. O Putin que conheço não vai confrontar a NATO.
Não obstante, sair da confusão instalada na Ucrânia não vai ser fácil. Putin assumiu publicamente a proteção dos dissidentes do Leste. Também não vai deixar a Ucrânia abandonar o seu estatuto de neutralidade e aderir à NATO. Não vai deixar que as pressões económicas ou mesmo o fornecimento de armas o forcem a aceitar um acordo com perdas para aquilo que ele vê como interesses russos vitais. Ele sabe que a elite russa, e o povo, o apoiam firmemente em tudo isto. Por outro lado, não quer a guerra com toda a certeza. E não quer juntar a enfraquecida Ucrânia Oriental, menos ainda outras partes da antiga União Soviética, à já substancial crise económica russa. Merkel e Hollande enfrentam uma tarefa extremamente difícil. E Vladimir Putin faz questão que assim seja. Mas a última coisa que ele quer é torná-la impossível.
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* EX-EMBAIXADOR BRITÂNICO NA RÚSSIA
Fonte: http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=4393463&page=-1
Imagem da Internet
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