Luiz
Felipe Pondé*
Direitos
humanos, dignidade ou liberdades individuais deveriam estar na seção de artigos
de luxo
Muito
já foi escrito sobre os totalitarismos do século 20 --de grandes obras, como a
da filósofa Hanna Arendt, até textos de ocasião.
Em
meio a isso tudo, gostaria de apontar uma das causas de formas totalitárias de
organização social que muitas vezes escapa ao nosso entendimento mais imediato.
Apesar de óbvia.
Uma
das matrizes mais seguras de formas totalitárias de organização social são as
boas intenções articuladas coletivamente em momentos de escassez de recursos
materiais ou imateriais necessários à vida. Dito de outra forma: liberdade
individual é artigo de luxo, caro como bolsa Chanel.
De
tudo o que já foi dito sobre as liberdades individuais pelos filósofos,
psicólogos e cientistas sociais nos últimos 200 anos, falta dizer que uma
analogia entre marcas caras de luxo e ideias como direitos humanos, liberdades
individuais ou dignidade da pessoa humana se faz necessário.
Antes
de tudo, porque muitas vezes o modo como se fala disso faz os mais jovens
pensarem que coisas assim caem do céu ou são fruto das redes sociais ou
manifestações na avenida Paulista.
Resumindo
a ópera até aqui: liberdades individuais são coisas de rico. "Rico",
aqui, significa sociedades com razoável estabilidade de recursos que, por sua
vez, produz em uma razoável estabilidade institucional. Dito de forma, talvez,
mais poética: quando se fica pobre, tudo vai para o saco.
Sei
que nossa sensibilidade um tanto infantil decorrente da ideologização da
filosofia e das ciências humanas impede que percebamos como funciona essa
matriz de sociedades totalitárias. Quer ver?
Recentemente,
esta Folha publicou uma matéria na qual condomínios pensavam em formas de
assegurar a justa economia da água. Uma dessas formas seria a criação de
"guardiões da água" nos condomínios. Basta uma coisa como essa para
percebermos como funciona o processo totalitário. Preste atenção.
O
fato de os nazistas e soviéticos serem muito maus acabou por embotar nosso
discernimento posterior ao advento das grandes sociedades totalitárias do
século 20.
Formas
totalitárias se organizam facilmente ao redor de "causas justas"
(honra da Alemanha, justiça contra os ricos na Rússia). Essa peça do
quebra-cabeça normalmente falta nas aulas dos professores gurus de filosofia
por aí. É porque está justificada a suspensão das liberdades individuais que
você vira um "comissário do povo" ou um "comissário da
água".
De
um dia para o outro, você está vigiando os ruídos dos chuveiros e descargas na
casa do vizinho. Comissões estabelecem multas condominiais para quem
desobedecer a justa norma de economia de água.
No
elevador, começamos a sentir uma justa antipatia pela pessoa que, ao que tudo
indica, não tem espírito coletivo, e gasta mais do que deve. Facilmente, um
vizinho poderá juntar essa justa antipatia a velhos desafetos: essa pessoa
sempre foi metida, tem um carro melhor do que o meu, sua mulher é mais gostosa,
seus seios são mais durinhos.
De
novo, lembremos: economizar água é uma necessidade justa. Esforços devem ser
feitos nesse sentido, do contrário, ficamos sem água. Logo, quem não colaborar
merece sanções. Como garantir esse processo se não fiscalizarmos uns aos
outros? Queria ver Foucault sem água.
Os
regimes totalitários nunca sobreviveriam sem a adesão do cidadão comum a causas
que lhe parecem ou são de fato justas. Num cenário de falta de água
generalizada, quem tomar banho muito longo em nome das liberdades individuais
será considerado um cretino. Porque esse banho seria um luxo. E aí voltamos ao
início.
Perdemos
a noção de que são as condições materiais que sustentam o mundo à nossa volta.
Até o marxismo diz isso, de certa forma, mas, infelizmente, só o diz para
afirmar sua metafísica besta da história da luta de classes.
Direitos
humanos, dignidade da pessoa humana ou liberdades individuais deveriam estar na
seção de produtos de luxo, como os da Chanel, e não em discussões sobre justiça
social. Basta faltar água e todo o blá-blá-blá sobre valores democráticos ruem
como um castelo de cartas. Estamos já há muito tempo mentindo sobre essas
coisas.
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* Filósofo. Escritor. Prof. Universitário.
ponde.folha@uol.com.br
Fonte: Folha online, 09/02/2015
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