segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

ÁGUA CHANEL


Luiz Felipe Pondé*


Direitos humanos, dignidade ou liberdades individuais deveriam estar na seção de artigos de luxo 

Muito já foi escrito sobre os totalitarismos do século 20 --de grandes obras, como a da filósofa Hanna Arendt, até textos de ocasião. 

Em meio a isso tudo, gostaria de apontar uma das causas de formas totalitárias de organização social que muitas vezes escapa ao nosso entendimento mais imediato. Apesar de óbvia. 

Uma das matrizes mais seguras de formas totalitárias de organização social são as boas intenções articuladas coletivamente em momentos de escassez de recursos materiais ou imateriais necessários à vida. Dito de outra forma: liberdade individual é artigo de luxo, caro como bolsa Chanel. 

De tudo o que já foi dito sobre as liberdades individuais pelos filósofos, psicólogos e cientistas sociais nos últimos 200 anos, falta dizer que uma analogia entre marcas caras de luxo e ideias como direitos humanos, liberdades individuais ou dignidade da pessoa humana se faz necessário. 

Antes de tudo, porque muitas vezes o modo como se fala disso faz os mais jovens pensarem que coisas assim caem do céu ou são fruto das redes sociais ou manifestações na avenida Paulista. 

Resumindo a ópera até aqui: liberdades individuais são coisas de rico. "Rico", aqui, significa sociedades com razoável estabilidade de recursos que, por sua vez, produz em uma razoável estabilidade institucional. Dito de forma, talvez, mais poética: quando se fica pobre, tudo vai para o saco. 

Sei que nossa sensibilidade um tanto infantil decorrente da ideologização da filosofia e das ciências humanas impede que percebamos como funciona essa matriz de sociedades totalitárias. Quer ver? 

Recentemente, esta Folha publicou uma matéria na qual condomínios pensavam em formas de assegurar a justa economia da água. Uma dessas formas seria a criação de "guardiões da água" nos condomínios. Basta uma coisa como essa para percebermos como funciona o processo totalitário. Preste atenção. 

O fato de os nazistas e soviéticos serem muito maus acabou por embotar nosso discernimento posterior ao advento das grandes sociedades totalitárias do século 20. 

Formas totalitárias se organizam facilmente ao redor de "causas justas" (honra da Alemanha, justiça contra os ricos na Rússia). Essa peça do quebra-cabeça normalmente falta nas aulas dos professores gurus de filosofia por aí. É porque está justificada a suspensão das liberdades individuais que você vira um "comissário do povo" ou um "comissário da água". 

De um dia para o outro, você está vigiando os ruídos dos chuveiros e descargas na casa do vizinho. Comissões estabelecem multas condominiais para quem desobedecer a justa norma de economia de água. 

No elevador, começamos a sentir uma justa antipatia pela pessoa que, ao que tudo indica, não tem espírito coletivo, e gasta mais do que deve. Facilmente, um vizinho poderá juntar essa justa antipatia a velhos desafetos: essa pessoa sempre foi metida, tem um carro melhor do que o meu, sua mulher é mais gostosa, seus seios são mais durinhos. 

De novo, lembremos: economizar água é uma necessidade justa. Esforços devem ser feitos nesse sentido, do contrário, ficamos sem água. Logo, quem não colaborar merece sanções. Como garantir esse processo se não fiscalizarmos uns aos outros? Queria ver Foucault sem água. 

Os regimes totalitários nunca sobreviveriam sem a adesão do cidadão comum a causas que lhe parecem ou são de fato justas. Num cenário de falta de água generalizada, quem tomar banho muito longo em nome das liberdades individuais será considerado um cretino. Porque esse banho seria um luxo. E aí voltamos ao início. 

Perdemos a noção de que são as condições materiais que sustentam o mundo à nossa volta. Até o marxismo diz isso, de certa forma, mas, infelizmente, só o diz para afirmar sua metafísica besta da história da luta de classes. 

Direitos humanos, dignidade da pessoa humana ou liberdades individuais deveriam estar na seção de produtos de luxo, como os da Chanel, e não em discussões sobre justiça social. Basta faltar água e todo o blá-blá-blá sobre valores democráticos ruem como um castelo de cartas. Estamos já há muito tempo mentindo sobre essas coisas. 
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* Filósofo. Escritor. Prof. Universitário.
ponde.folha@uol.com.br 
Fonte: Folha online, 09/02/2015
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