Marcela Belchior*
Adital
Em uma atitude que nenhum pontífice jamais havia ousado ter na história recente da Igreja Católica, o Papa Francisco pegou a Cúria Romana despreparada e falou claramente da necessidade de mudança na cúpula do Vaticano. Em discurso proferido no último dia 22 de dezembro, o primeiro papa latino-americano tornou público que não sente na equipe da Santa Sé fidelidade às suas diretivas e solidariedade às perspectivas de seu pontificado.
Os 2.300 curiais se dividem em três grupos: os que estão do
lado de Francisco, se empenhando por atender às suas indicações; os que não se
opõem, mas se limitam a um trabalho burocrático, deixando a máquina lenta; e,
finalmente, aqueles profundamente contrários à forma de agir de Jorge Mario
Bergoglio, sua teologia, seu estilo de vida e seu próprio magistério.
São esses dois últimos grupos que formam a grande maioria da
Cúria e atuam, deliberadamente, obstruindo a mensagem libertadora do Papa.
Operando em torno da manutenção do establishment católico, complicando o
caminho das reformas imaginadas pelo Papa, essa oposição também tem motivações
políticas e financeiras, associada a interesses dos que defendem os privilégios
dos ricos pelo sistema neoliberal em detrimento das causas estruturais que
geram a pobreza, denunciadas por Francisco.
"Pode haver um órgão como a Cúria Romana que não seja
dominado pelas tentações do poder?”. Com essa pergunta, o jornalista,
vaticanista e escritor italiano Luigi Sandri (foto) nos ajuda a compreender o
que se passa no Vaticano e como isso reflete em toda a comunidade católica do
mundo. Autor dos livros Cronache dal futuro (em português,
"Crônicas do futuro”) e Dal Gerusalemme I al Vaticano III. I Concili
nella storia tra Vangelo e potere (em português, "De Jerusalém I ao
Vaticano III. Os Concílios na história entre o Evangelho e o poder”), Sandri,
em entrevista exclusiva para a Adital, defende que é preciso, sim, uma
reforma dentro cúpula da Igreja Católica.
Para o escritor, essa reforma é o passo decisivo para uma
reformulação subsequente da Igreja Católica Apostólica Romana. "Mas o
caminho não será fácil, e serão inevitáveis as tensões, sofrimentos e
contradições”, adverte. Atualmente, a estrutura da Santa Sé remonta (acredite)
à reforma lançada pelo Papa Sisto V, ainda de 1588, época em que toda a América
Latina, principal reduto católico no mundo, mal brotava nos mapas do globo.
Somente com uma equipe que reflita sua mentalidade, o Papa pode tornar real uma
mudança nos rumos da Igreja Católica. Caso contrário, Francisco corre o risco
de continuar sozinho na luta pela libertação dos povos.
Adital - No fim de 2014, dia 22 de
dezembro, em discurso proferido à Cúria Romana, o Papa Francisco a chamou a
"melhorar-se”, apontando o que ele nomeou "doenças curiais” e
"mau funcionamento” da equipe de administração da Igreja Católica. Dentre
elas, estavam a falta de autocrítica e de cooperação e a rivalidade. O que isso
pode dizer da composição atual da Cúria Romana?
Luigi Sandri -
O discurso do dia 22 de dezembro de 2014 me parece ser um dos mais importantes
até agora pronunciados pelo Papa Francisco. De fato, se ele se refere
diretamente às "quinze doenças” da Cúria Romana, indiretamente se reflete
nas estruturas globais da Igreja Católica Romana e propõe um modelo de
comunidade cristã chamada constantemente à conversão e a uma vigilância crítica
para não ser seduzida pelas tentações do poder.
Naturalmente, Bergoglio estava se referindo à atual
composição da Cúria, mas, em minha opinião, foi além. De fato, eu acredito, a
verdadeira questão de fundo que, implicitamente, emerge a partir do afiado
diagnóstico papal é esta: pode haver um órgão como a Cúria que não seja,
inevitavelmente, tentado e por vezes dominado pelas tentações do poder?
Adital - Em que medida esse discurso do
Papa aponta para um contexto de conflito e enfrentamento dentro do Vaticano?
LS - Na medida em
que Francisco, no seu discurso, ia elencando as "doenças” (bem quinze!) da
Cúria, as feições dos cardeais e dos prelados que o escutavam pareciam
petrificadas. Acho que muitos, senão a maioria daqueles eclesiásticos,
considerassem inédita — e talvez intolerável — a denúncia do Papa. Se o
pontífice, prevendo esta reação (não explícita, mas nem por isso menos forte),
falou daquele modo, significa que ele não considera mais admissível uma
crescente oposição de muitos ambientes curiais ao seu modo de exercitar o
"ministério de bispo de Roma”.
Por outro lado, se Francisco sentisse toda a Cúria unida a
ele, fiel às suas diretivas, solidária com às suas perspectivas, por que se
atreveria a agir daquela forma que, nos tempos modernos, nenhum pontífice
jamais havia ousado?
Em minha memória vem o discurso de Paolo VI, no dia 21 de
setembro de 1963. Papa havia três meses, no início da segunda sessão do
Vaticano II, aquele pontífice fez um discurso memorável para convidar a Cúria a
não se opor às reformas que o Concílio ia propondo e a aceitar com humildade
algumas fortes críticas à mesma Cúria, que haviam surgido ao longo da primeira
sessão do Concílio, iniciada com João XXIII, em outubro de 1962. Assim, Montini
[Paulo VI] soube mesclar algumas veladas críticas com amplos elogios, a fim de
não irritar demais os curiais.
Totalmente diferente agora foi o tom de Francisco: seu
discurso pareceu afiado, sem mediação: quase uma tempestade de granizo, que
pegou a Cúria despreparada para um temporal como esse.
Papa repreendeu Cúria Romana no fim
do ano passado. Foto: ANSA.
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Adital - Que tipo de resistências a Cúria Romana manifesta
hoje à atuação do Papa Francisco?
LS - Devemos
lembrar que a Cúria não é um corpo monolítico: por exemplo, na época do
Concílio Vaticano II, grande parte dela fez de tudo para frear, ou até mesmo
sabotar, a iniciativa do Papa João; mas houve também um grupo pequeno, mas
tenaz, que se esforçou ao máximo para que o Concílio conseguisse realizar a
esperada "atualização”.
Voltando para a atualidade, acho que os curiais (cerca de
2.300 pessoas, no seu conjunto!) podem ser divididos, esquematicamente, em três
grupos. Uma parte, com todo o coração, está do lado de Francisco e se empenha
ao máximo para concretizar suas indicações. Outra parte é cética: não se opõe
diretamente ao Papa, mas também não o apoia e se limita a fazer um trabalho
burocrático, fundamentalmente tentando deixar a máquina mais lenta.
Enfim, uma parte é profundamente contraria à forma de agir
de Bergoglio, ao seu estilo de vida, à sua teologia, ao seu próprio magistério,
quando propõe ideias ou lança hipóteses que, para eles, parecem quase
"heréticas” e, de todo modo, longínquas do quanto propunham Wojtyla e
Ratzinger. É difícil "quantificar” a força numérica dos três grupos, mas é
certo que o segundo e o terceiro formam uma articulada maioria, ou então seria
inexplicável porque o Papa tenha "flagelado” a Cúria com o discurso do dia
22 de dezembro.
Adital - De que maneira essas
dificuldades refletem na atuação da Igreja Católica?
LS - Imagino que,
no Brasil, — mas também em qualquer outro país da América Latina ou da Ásia ou
da África e do Norte do mundo! — as pessoas nada saibam das brigas curiais e
tenham outros problemas para se preocuparem. Todavia, um discurso como aquele
do dia 22 de dezembro, retomado por muitos meios de comunicação, sugere também
aos mais distraídos e às pessoas mais distantes de Roma que na Cúria — isto é,
no órgão que auxilia o Papa no governo da Igreja Católica — está crescendo uma
dura oposição a Bergoglio. Em suma, terminou, na Cúria e no establishmentcatólico,
a lua de mel (se é que tenha existido) com Jorge Mario Bergoglio.
Adital - Essa resistência da Cúria pode
ser compreendida como uma manifestação de oposição ao Sumo Pontífice?
LS - Naturalmente,
estamos de frente à oposição de uma parte da Cúria ao Papa. Mas, atenção: esta
oposição se manifesta em "estilo curial” e, por isto, é subterrânea,
implícita, alusiva, clara aos adeptos aos trabalhos, mas obscura para as
pessoas comuns. Só de vez em quando esta se torna clamorosa, pública, ponta de
um icebergmuito maior do que parece à primeira vista. Um exemplo:
O cardeal dos Estados Unidos Raymond L. Burke, prefeito do
Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica (uma espécie de Corte Constitucional
da Igreja Romana), em entrevistas a muitos meios de comunicação, na ocasião do
Sínodo dos Bispos, em outubro de 2014, dedicado à família, dirigiu criticas
quase depreciativas a Francisco, afirmando que, com ele reinante, a Igreja
parecia um navio sem timoneiro no meio da tempestade. Afirmação gravíssima e
quase ofensiva, que o Papa não podia fingir não ter ouvido. E, por isso, no dia
08 de novembro, depôs o purpurado do seu importante cargo e o nomeou Patrono da
Ordem Soberana Militar de Malta, um cargo puramente coreográfico.
Ainda mais sensacional — ainda que indireta — foi a
contestação ao Papa de cinco cardeais da Cúria, chefiada pelo cardeal alemão
Gerhard Ludwig Müller, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o
guardião da ortodoxia católica. Em meados de setembro de 2014, saiu em inglês
e, em outubro, em italiano, "Perseverar na verdade”, um livro que se opõe,
frontalmente, à tese sustentada por outro cardeal alemão da Cúria, Walter
Kasper. Este, escolhido pelo papa, no dia 20 de fevereiro de 2014, tinha feito
um relatório para o plenum do Colégio Cardinalício, convocado por
Francisco para refletir sobre o tema do Sínodo.
O purpurado, em resumo, tinha prospectado a possibilidade de
que, em casos específicos, pessoas divorciadas e casadas novamente poderiam
receber a Eucaristia. Uma hipótese inaceitável para os cinco (que, depois, em
várias entrevistas, se uniram ao cardeal Angelo Scola, arcebispo de Milão,
Camillo Ruini, ex-vigário de Roma e por três mandatos indicado pelo Papa
Wojtyla como presidente da Conferência Episcopal Italiana; Francis E. George,
arcebispo de Chicago). Formalmente, aquele livro contestava Kasper; na verdade,
se opunha a Francisco.
Oposição
a Francisco é implícita e pode passar despercebida por alguns. Foto:
Reprodução.
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Adital - Como isso atinge os planos do
Papa Francisco no sentido de realizar reformas dentro da instituição religiosa?
LS - A oposição,
agora clara e pública, de uma parte do Colégio Cardinalício (e, naturalmente,
do episcopado mundial) a Francisco complica o caminho das reformas imaginadas
pelo Papa reinante. Na verdade, ele deseja intensamente manter unida a Igreja
Romana, tentando fazer coexistir, serenamente, dentro dela, os vários pontos de
vista teológicos e pastorais nela existentes. No entanto, em algum momento,
sobre algumas questões, será necessário deliberar e fazer escolhas precisas.
Assim, o Sínodo de outubro próximo (que é como o segundo "round” daquele
de 2014) vai finalmente decidir se será possível ou não dar a comunhão — pelo
menos em alguns casos — aos divorciados que voltaram a casar.
Se o Papa não decidir de outra forma, também a próxima
Assembleia será "consultiva”: ou seja, elaborará "conselhos” para
oferecer ao Papa que, finalmente, decidirá livremente. Mas, politicamente e
eclesiasticamente, seria muito difícil para o Papa repudiar um "conselho”
sinodal e rejeitá-lo.
Agora, se, com a necessária maioria dos dois terços do
Sínodo "aconselhará” ao Papa uma escolha pastoral "liberal” para os
divorciados que voltaram a casar, o que irão fazer os cardeais e bispos
"perdedores” no Sínodo? O que farão Müller e seus fãs? Será, portanto,
muito difícil, para o mesmo Bergoglio, manter unida a "unidade na
diversidade”, quando, na verdade, a escolha "pastoral” indicada será uma, e
apenas uma, desagradável aos "perdedores”.
Adital - Dentro e fora do Vaticano, por
quem está composta a oposição ao Papa Francisco?
LS - Francisco
gostaria de dar respostas "pastorais” a problemas difíceis e complexos,
tais como os divorciados que voltaram a casar e as uniões civis: ou seja,
mantendo-se firme os "princípios doutrinários”, o Papa, como um bom
pastor, gostaria de ajudar as pessoas que estão nessas situações, sem
marginalizá-las da Igreja e sem considerá-los pecadores não arrependidos.
A resposta dos cardeais e bispos para as perspectivas
abertas pelo Papa está ligada à mentalidade e à cultura dos povos entre os
quais os bispos atuam. Por exemplo, ressalvadas raríssimas exceções, a
mentalidade geral dos africanos é, culturalmente, totalmente contra as uniões
homossexuais; por esta razão, também no Sínodo 2014, os "padres” do
continente africano se opuseram a qualquer mudança do ensinamento do magistério
dos últimos papas, condensada no Catecismo (1997), que, apesar de respeitar as
pessoas homossexuais, faz um julgamento moral absolutamente negativo dos atos
homossexuais. Mesmo alguns prelados do norte do mundo reivindicam a mesma
atitude rígida, mas, na Europa e na América do Norte, há também prelados (e seu
número está crescendo) que dão uma avaliação ética favorável às uniões
homossexuais, se vividas com amor, fidelidade e respeito.
Ao contrário, sobre a doutrina social — tão ousada, que
alguns lobistas e alguns grupos, incluindo católicos, acusam Bergoglio de ser
"comunista” —, quase todos os cardeais e bispos do sul estão totalmente de
acordo com o Papa, que denuncia "as causas estruturais da pobreza”. Em vez
disso, no norte do mundo, a doutrina social de Francisco é vista com suspeita
(ou com preocupação) por muitos eclesiásticos e por muitos políticos católicos.
Com algumas exceções, essa oposição é implícita, subterrânea, alusiva, mas
duríssima. Ou, então — em alguns corredores da Cúria — irreverente, pois se
comenta sarcasticamente "a teologia de Copacabana” de Bergoglio.
Adital - Interesses exteriores à Igreja
Católica e à religião estariam por trás dessa oposição? Quais?
LS - Sim, a
oposição à doutrina social de Francisco, tanto dentro como fora da Igreja
Católica, também tem uma raiz política e financeira: na verdade, os grandes
capitalistas, os executivos das empresas multinacionais, os políticos que
defendem os privilégios dos ricos se sentem ameaçados em seus interesses por um
ensinamento papal que denuncia as causas estruturais que, inevitavelmente,
geram os pobres, ou seja, os "empobrecidos pelo sistema” neoliberal. Como
poderão amar o ensinamento de Bergoglio aqueles católicos que, sempre nas
primeiras filas nas procissões com bandas de música e flores, se veem despidos
pela própria ganância e, em contradição, com as suas obras muito distantes do
Evangelho?
Ao contrário, nas questões mais relacionadas com a
sexualidade (divórcio, uniões homossexuais) alguma oposição ao Papa pode vir,
em alguns países, a partir desses "pensadores livres” ou desses
"ateus devotos”, que não acreditam em nada no magistério da Igreja Romana
e, todavia, eles estão felizes de que isso exista, quando coincide com as suas
ideias reacionárias.
Resistência
à mensagem libertadora ao Papa possui também raiz política e financeira.
Foto: Reprodução.
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Adital - O Papa Francisco surpreendeu o Vaticano quando, em tão pouco tempo, já criou uma imagem que ameaçaria elementos de uma postura tradicionalista da Igreja Católica - no que se refere à doutrina e à disciplina?
LS - Muitos, na
Igreja Católica, confundem a Tradição ("T” maiúscula) com a "tradição”
("t” minúscula) e ignoram que alguns costumes e hábitos, difundidos hoje
na Igreja, não derivam mesmo de um ensinamento de Jesus, mas surgiram,
historicamente, em determinados contextos culturais, para atender às
necessidades locais. Às vezes, essas escolhas foram inteligentes e úteis para
fortalecer a fé; outras vezes, míopes. Em qualquer caso, elas podem e devem ser
rediscutidas se a situação atual e o bem da Igreja o aconselham. A
"pastoral” é a arte de saber traduzir o Evangelho em modalidades que mudam
de tempos em tempos. Não é a "fé” que muda, mas os "caminhos” para
torná-la explícita aqui e agora.
Os tradicionalistas mais brilhantes não sabem que muitas
"tradições”, que eles consideram "sacrossantas”, nasceram apenas 500
anos atrás, na época do Concílio de Trento (1545-1563). Ou, por exemplo, não
sabem que o celibato eclesiástico, que é norma na Igreja Latina, não é
"Tradição”, mas apenas "tradição”: é a lei, reafirmada, no século
XII, por vários Concílios Lateranenses. Mas (como disposição intangível), na
verdade, não deriva das Escrituras: de fato, na carta a Timóteo I (3, 1-4) e a
Tito (1, 5-9), o apóstolo Paulo diz que "o bispo deve ser sóbrio,
prudente, casado com uma mulher só e capaz de conduzir bem própria família”.
Portanto, uma defesa acirrada do celibato eclesiástico não
pode se basear no Novo Testamento. Então, uma coisa é enaltecer o carisma da
virgindade (Jesus elogia aqueles que se tornam eunucos por amor ao Reino dos
Céus), outra é exigir por lei a todos os eclesiásticos o celibato. Em tal
contexto, parece uma hipótese sábia — muitas vezes, expressa no Brasil, em
outros países da América Latina e África — a ordenação sacerdotal de homens
casados, primeiro passo para rediscutir a fundo a relação entre celibato e
sacerdócio.
E, sempre citando a "tradição”, desde sempre as Igrejas
Ortodoxas e as Igrejas Orientais Católicas têm um clero celibatário e casado.
Portanto, os tradicionalistas que querem defender a "Igreja de sempre”,
muitas vezes, não sabem como, séculos atrás, viveu a Igreja. Eles confundem o
"sempre” com opções pastorais escolhidas pelas autoridades eclesiásticas
em tempos mais recentes.
Adital - O último concílio, realizado
entre 1962 e 1965, primou por uma abertura e uma descentralização da
instituição. Isso não se concretizou? Por que hoje essa orientação parece ser
rejeitada dentro do próprio Vaticano?
LS - Afirmando a
"primazia do povo de Deus” e a "colegialidade episcopal” (o colégio
dos bispos unido com o Romano Pontífice é, este também, sujeito de plena e
suprema autoridade sobre toda a Igreja), o Vaticano II lançou as bases para uma
descentralização radical das estruturas católicas. O Sínodo dos Bispos, criado
pelo Papa Paulo VI, em 1965, vai nesse sentido, mas muito timidamente, pois não
encarna a "colegialidade” no sentido pleno.
Além disso, o Papa Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI não
quiseram implementar, de forma aberta, a "colegialidade”: de fato, sempre
tomaram as decisões mais importantes por conta própria, sem um real
envolvimento do episcopado. Exemplo clamoroso, nesse sentido, Paulo VI: ele
retirou do Concílio a oportunidade dos bispos discutirem os meios eticamente
admissíveis para regular os nascimentos; em seguida, confiou a um comitê de 75
membros (prelados, teólogos, médicos, casais) o estudo do problema, a fim de
ter uma "opinião consultiva”. O parecer veio e, esmagadoramente, era a
favor de deixar os cônjuges decidirem segundo a sua consciência. Mas ele
recusou esta opinião e, em 25 de julho de 1968, publicou a encíclica Humanae
Vitae, que proclamava a contracepção imoral. E na Igreja Católica se
levantou uma imensa onda de contestação ao ensinamento papal.
Os últimos papas têm afirmado a disponibilidade deles em
rediscutirem "a forma de exercício do serviço petrino”, mas, na verdade,
até Francisco estas palavras foram só... palavras. Em seguida, no que se refere
ao "povo de Deus”, no pós-concílio, em nível local e nacional, foram
tentadas várias e interessantes maneiras de dar concretude àquele projeto: nos
Países Baixos, na Suíça, na Alemanha, na Áustria, em Sínodos ou Encontros
nacionais, clero e leigos, juntos, tentaram encontrar soluções para os
problemas pastorais pendentes; mas, quando eles fizeram propostas desagradáveis
a Roma (liberdade de consciência no controle da natalidade, celibato
opcional...), estas propostas foram, todas, rejeitadas pela Cúria Romana.
Falta, então, no nível da Igreja Universal, uma espécie de Senado, onde o
"povo de Deus” esteja, de alguma forma, representado. A Igreja Romana
continua a ser clerical e machista.
Papa Francisco começou a reverter o curso: assim ele quis
que, em vista do Sínodo de 2014 (e, agora, até mesmo de 2015), nas várias
dioceses do mundo, fosse distribuído um questionário para os fiéis expressarem
a sua opinião sobre os temas da família. Foi uma experiência reduzida, mas
significativa, que poderia (quem sabe) ter desenvolvimentos mais profundos no
futuro.
Até agora, no entanto, a "descentralização” esperada
não aconteceu. De fato, a Cúria Romana deveria "devolver” às Igrejas
locais (dioceses e Conferências Episcopais) direitos que, por razões
históricas, e por razões talvez um tempo até mesmo justas, tinha gradualmente
reservado para si. O principal desses direitos é a escolha dos bispos das
dioceses. Atualmente, a regra é a seguinte: o núncio em um determinado país faz
sua investigação e, depois, escolhe uma tríade: a Cúria (Congregação dos
Bispos) examina com cuidado a terna e, finalmente, o Papa escolhe o candidato
que ele acredita ser o melhor.
A igreja local não tem nem a primeira nem a última palavra:
ambas são prerrogativas da Cúria Romana. Em vez disso, a concreta e coerente
aplicação dos grandes (no entanto, genéricos) princípios enunciados pelo
Vaticano II exige (exigiria!) que, pouco a pouco, gradualmente, a nomeação do
bispo das dioceses passe para a mão do "povo de Deus” daquela diocese,
eventualmente com a participação da Conferência Episcopal. Um modo realista e
viável para chegar à escolha seria confiá-la ao Conselho Pastoral (clérigos e
leigos) e presbiteral da diocese: duas estruturas, cujos membros são eleitos de
alguma forma pelo povo, através dos Conselhos Pastorais Paroquiais.
Aliás, no início da Igreja, era toda a comunidade que
escolhia o seu próprio pastor! Por que não poderia ser assim hoje? Trata-se,
obviamente, de ponderar bem essas mudanças, evitar ingenuidade (ainda hoje,
como nos primeiros tempos, poderiam se formar grupos extremamente opostos),
agir com cautela: mas o Vaticano II não será implementado de verdade até que os
fiéis, homens e mulheres, de uma diocese não tenham voz, uma grande voz, na
escolha de seu pastor.
Adital - O discurso do Papa – de
desapego, respeito pelos pobres e simplicidade – sugere uma ruptura à cultura
tradicionalista que havia sido instaurada na Igreja. Por que isso incomoda a
alguns setores - sociais e religiosos?
LS - A maneira com
a qual Francisco exercita o seu ministério de bispo de Roma tem perturbado
aqueles que têm uma visão sacral, mítica da pessoa do Papa. Para estas pessoas,
é insuportável e quase um sacrilégio, o fato de que o Papa viva com
simplicidade, fale continuamente dos pobres, coma com as pessoas que vivem com
ele em Santa Marta (o palácio que, durante o conclave, hospeda os cardeais que
votam; fica a 300 metros do Palácio Apostólico, onde o Papa vai apenas para os
encontros oficiais ou, aos domingos, para recitar o Angelus com as
pessoas que se amontoam na Praça de São Pedro).
É verdade que, durante séculos, os papas — que, por tanto
tempo, foram também reis, isto é, soberanos do Estado Pontifício — viveram com
grande luxo. Mas, como vivia Jesus? Como viviam os bispos de Roma, senão entre
os pobres e como os pobres, até que os imperadores Constantino e Teodósio
cobrissem os papas com privilégios, interessados em ter o apoio do clero para
manter firme o seu poder? Talvez Francisco não esteja alinhado com a
"tradição”; mas o é certamente com a "Tradição”!
Adital - Quando assumiu o pontificado,
o Papa Francisco conseguiu construir uma equipe, dentro da Cúria Romana,
compatível com seu pensamento?
LS - Francisco
tenta formar na Cúria uma equipe que reflita a sua mentalidade e esteja
determinada a levar adiante as reformas que ele deseja. Mas não é fácil,
porque, devido à oposição de uma parte dos cardeais e prelados, Bergoglio corre
o risco de ficar sozinho ou de ter uma máquina curial bloqueada.
Um exemplo da necessidade, para ele, de ter em consideração
as várias "almas” curiais, e de não se opor frontalmente àqueles que não
compartilham seus pensamentos ou a sua prática, é o fato de que o Papa ordenou
Müller cardeal e que, apesar da hostilidade teológica do purpurado para com
ele, o deixou no comando (onde foi colocado por Ratzinger) de um
dicastero-chave da Cúria, como a Congregação para a Doutrina da Fé, o antigo
Santo Ofício. Uma coexistência que, para o próprio Francisco, não foi, não é e
não será indolor.
No entanto, com as nomeações relacionadas ao próximo
consistório de meados de fevereiro, veremos mais claramente se delinear toda a
equipe que Francisco quer perto dele para levar a cabo as reformas que
considera necessárias para a Igreja Romana [com relação à hipótese da reforma
da Cúria Romana, veremos quais os resultados do Consistório com o Colégio
Cardinalício, convocado pelo Papa, que iniciou seus trabalhos na quinta, dia 12
de fevereiro, em Roma, e termina hoje [sexta-feira], dia 13]. O projeto de
reforma da Cúria foi confiada por ele a oito cardeais de vários continentes
(agora nove, porque, acrescentou o secretário de Estado, Pietro Parolin),
liderada pelo arcebispo de Tegucigalpa [Honduras], Oscar Andres Rodriguez
Maradiaga. Veremos, em poucos meses, todo o projeto e as reações que ele vai
despertar dentro do Colégio dos Cardeais e dentro da Cúria Romana. Pelo
"tom” dessas reações será possível compreender mais claramente onde poderá
levar o vento dos Andes soprando sobre o Tibre.
Adital - Atualmente, há necessidade de
uma reformulação da própria estrutura da Cúria Romana?
LS - Obviamente, é
necessária uma mudança profunda, radical, da Cúria, cuja estrutura, em
substância, remonta à reforma lançada pelo Papa Sisto V em 1588. Pio X, em
1908, trouxe mudanças importantes e, ainda mais trouxeram — tentando considerar
os resultados do Vaticano II — Paulo VI em 1967 e, em 1988, João Paulo II, com
a Pastor bonus, a Constituição Apostólica que reorganizou a Cúria e dura
até hoje. É certo que a reforma que Francisco está pensando, e que o Conselho
dos oito+um está preparando comportará notáveis mudanças: sumirão algumas
"Congregações”, outras serão fundidas, outras ainda serão novas em folha
(por exemplo: a Congregação para os Leigos), e o mesmo acontecerá com os
Conselhos Pontifícios e outros órgãos.
Mas, além dessas importantes mudanças, a reforma, eu
acredito, deverá ser avaliada em relação a estes três pontos: 1) as relações
entre Papa e Cúria. O encontro do pontífice com todos os chefes-dicastero será
ocasional (hoje acontece duas ou três vezes ao ano) ou então com uma frequência
estável, uma ou duas vezes ao mês? A frequência (normativa) desses encontros
dirá quanta colegialidade se pretende atuar.
2) As relações entre Sínodo e Cúria. Atualmente, o
organograma do poder Vaticano prevê esta pirâmide: Papa-Cúria-Sínodo. Deveria
ser mudado para Papa-Sínodo-Cúria. Não é um jogo de palavras: trata-se de ver
se, em perspectiva, a Cúria está a serviço do Papa, mas controla os bispos; ou
se a Cúria está a serviço do bispo de Roma e do Colégio Episcopal a ele unido.
Se for escolhida esta segunda hipótese, aos poucos, derivarão dela importantes
e positivas consequências legislativas e pastorais, e a "descentralização”
não será uma caixa vazia.
3) A presença da mulher. Atualmente, todos os centros do
poder no Vaticano estão nas mãos dos homens (sexo masculino); como poderá a
outra metade da Igreja estar representada? E aqui surge um problema muito
complexo, delicado e urgente, que não pode ser resolvido com êxito sem uma
radical rediscussão do conceito (não evangélico) de "sacerdócio”,
para retomar os conceitos evangélicos e neotestamentários de "serviço/diakonia/ministro/ministério”.
Deixando intocada a "doutrina” atual, é impossível, na Igreja Romana, dar
um lugar apropriado e voz deliberativa também às mulheres; tudo é possível, no
entanto, caso se parta de "ministérios/serviços” abertos a homens e
mulheres.
Francisco
tenta formar na Cúria uma equipe que reflita sua mentalidade e
leve adiante reformas. |
Não vejo, no entanto, a forma como o grupo dos 8+1 cardeais
possa enfrentar esse gigantesco problema doutrinal, teológico, jurídico e
pastoral. Eu acredito que a questão do ministério das mulheres, e muitas
outras, hoje urgentes, incumbentes e "quentes” — o statusdo
presbítero; a realização da Igreja = Povo de Deus; a necessidade de um
ecumenismo corajoso e mais intensas relações com o judaísmo e com as religiões
não-cristãs ou afro-americanas; uma visão renovada da sexualidade que se
confronte com a modernidade; as consequências institucionais decorrentes da
decisão de pôr na base de ação da Igreja o compromisso com a justiça/a paz/a
defesa da criação — exigiriam nada menos do que um novo Concílio, o
"Vaticano III”. Uma grande assembleia, que poderia ser celebrada fora de
Roma, em uma cidade do sul do mundo (onde hoje vive a maioria dos católicos) e
em que participem, a pleno direito, grandes representações de padres,
monges/freiras, religiosos/religiosas e leigos homens e mulheres.
Enfim, uma reforma radical da Cúria, filha da visão de um
bispo de Roma, que "veio quase do fim do mundo” (como disse à multidão o
recém-eleito Papa, na noite de 13 de março de 2013), implica na reforma da
Igreja; e vice-versa. Pode ser também que, por enquanto, Francisco reforme a
Cúria, como um passo decisivo para a reforma subsequente da Igreja Romana. Mas
o caminho não será fácil, e serão inevitáveis as tensões, sofrimentos e
contradições. E, todavia, é grande a esperança de que o sonho comece a se
tornar realidade.
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Marcela
Belchior
É jornalista da
Adital. Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP), estuda as relações culturais na América Latina.
E-mail:
marcela@adital.com.br
belchior.marcela@gmail.com
Fonte: Adital
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