quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

O vínculo já rompido entre a democracia e a economia de mercado.

Slavoj Žižek* 

 

Bombardeados constantemente por "livres escolhas", impostas, forçados a tomar decisões pelas quais geralmente não somos nem mesmo suficientemente qualificados (ou informados), vivemos a nossa liberdade por aquilo que ela realmente é: um peso que nos subtrai a verdadeira escolha de mudar.


O filósofo alemão Peter Sloterdijk observa que, se há uma pessoa a quem farão monumentos nos próximos cem anos, será Lee Quan Yew, o líder de Singapura, que inventou e realizou o chamado "capitalismo de rosto asiático". O vírus desse capitalismo autoritário está se espalhando, lenta mas inexoravelmente, em todo o mundo. Deng Xiaoping, antes de iniciar as suas reformas, tinha estado em Singapura e o tinha expressamente elogiado como modelo de referência para a China.

Essa mudança tem um significado histórico e mundial: até hoje, o capitalismo parece estar intimamente associado com a democracia – certamente, às vezes, recorreu à ditadura direta, mas, depois de uma ou duas décadas, a democracia se impôs novamente (basta lembrar os casos da Coreia do Sul e do Chile).

Agora, no entanto, rompeu-se o vínculo entre democracia e capitalismo. Hoje, muitas vezes se fala do fracasso da civilização ocidental como modelo de referência global e do fracasso daqueles Estados pós-coloniais que tentaram imitá-lo. Esse diagnóstico, no entanto, tem um defeito: acabou, sim, o sonho de Fukuyama de uma democracia liberal global, mas, em nível econômico, o capitalismo triunfou em todo o mundo – os países do Terceiro Mundo que o apoiaram registram hoje taxas de crescimento espetaculares.

O capitalismo global não tem problemas para se adaptar a uma pluralidade de religiões, culturas e tradições locais. Portanto, a ironia cruel do antieurocentrismo é que, em nome do anticolonialismo, critica-se o Ocidente justamente no momento histórico em que o capitalismo global não precisa mais dos valores culturais ocidentais para funcionar perfeitamente e está confortável com a "modernidade alternativa".

O capitalismo global não implica, necessariamente, o hedonismo e o individualismo permissivo. A Índia, por exemplo, tomou o caminho da rápida modernização capitalista: mas não houve remoção universal das tradicionais estruturas sociais, como a priorização dos laços comunitários e não o sucesso pessoal e o respeito pelos idosos.

Isso não demonstra, de modo algum, que tais realidades não sejam totalmente "modernas". E equivocam-se grandemente os teóricos pós-coloniais "servis", que veem na persistência das tradições pré-modernas uma forma de resistência ao capitalismo global e ao seu processo violento de modernização que destrói os laços tradicionais.

A fidelidade a esses valores é, paradoxalmente, a verdadeira prerrogativa que permite que países como China, Singapura e Índia sigam o caminho do processo capitalista de modo até mais radical do que nos países liberais ocidentais. A referência aos valores tradicionais oferece uma justificativa ética para aqueles que compartilham a lógica impiedosa da concorrência de mercado.

É muito mais fácil fazer referência a valores tradicionais para poder justificar a indiferença aos outros. "Faço isso para ajudar os meus pais, para ganhar o dinheiro necessário para os meus filhos e primos para poderem estudar...": tais motivações são muito mais aceitáveis do que "Eu faço isso por mim".

Não é por acaso que a liberdade é um fundamento fraco para o capitalismo no Ocidente, porque também é um fundamento vazio. A liberdade sobrevive também aqui, mas em uma forma estranhamente confusa. A partir do momento em que a livre escolha foi elevada a valor supremo, o controle social não pode mais tocá-la. Muitas vezes, porém, o acordo é apenas retórico.

A falta de liberdade mascarada pelo seu oposto se manifesta em uma miríade de formas: quando somos privados da assistência à saúde, dizem-nos que nos oferecem a liberdade de escolha (do prestador de assistência à saúde); quando não podemos mais contar com um emprego de longo prazo e somos forçados a procurar um novo trabalho precário a cada dois anos, dizem-nos que nos oferecem a oportunidade de nos reinventarmos e de descobrir novos e inesperados recursos criativos, latentes na nossa personalidade; quando devemos pagar a educação dos nossos filhos, dizem-nos que "investimos em nós mesmos", como um capitalista que deve escolher livremente como investir os recursos possuídos (ou emprestados): na educação, saúde, viagens...

Bombardeados constantemente por "livres escolhas", impostas, forçados a tomar decisões pelas quais geralmente não somos nem mesmo suficientemente qualificados (ou informados), vivemos a nossa liberdade por aquilo que ela realmente é: um peso que nos subtrai a verdadeira escolha de mudar.

Talvez, esse paradoxo também nos permite jogar uma nova luz sobre a nossa obsessão com aquilo que está acontecendo na Ucrânia, ou com a ascensão do Isis no Iraque. O que nos fascina no Ocidente não é o fato de que, em Kiev, o povo lutou pela miragem de um estilo de vida europeu, mas que (ao menos aparentemente) combateu simplesmente para tomar nas mãos as rédeas do seu próprio destino. Atuou como um agente político de uma mudança radical que, no Ocidente, não podemos mais optar por fazer.
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* A opinião é do filósofo esloveno Slavoj Žižek, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 03-02-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU online, 05/02/2015
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