Pedro Meca (foto reproduzida daqui)
Esteve em Lisboa em 1998, visitando organizações de apoio
aos sem-abrigo. Numa delas, quando passava no sector da roupa, perguntou: “Onde
está o espelho?” Não havia. Os sem-abrigo, os pobres, não têm direito a ver-se
ao espelho? “Têm, o espelho faz mesmo falta. Há gente que não se vê inteiro há
anos.”
“Romper com o assistencialismo” era a lógica proposta por
este “companheiro da noite”, que morreu esta semana com 80 anos, em Paris. O
funeral decorreu nesta manhã de sábado, na capela do convento de Saint Jacques,
na capital francesa. Foi o “companheiro da noite dos que nada tinham, um
mendicante”, disseram os dominicanos da província de França, anunciando a morte
do homem que dedicou a sua vida a estar e viver com os mais pobres, ajudando-os
a encontrar trabalho e a devolver-lhes a dignidade perdida e a autoestima.
A história do espelho contou-a Pedro Meca, nessa passagem
por Lisboa, quando lhe fiz também uma entrevista (publicada no livro Deus Vem a Público, ed. Pedra
Angular/Sistema Solar).
Pedro-Maria Meca Zuazù nasceu em Villava, Pamplona (no País
Basco espanhol, perto da fronteira com França), em 1935. Aos 17 anos foi para
França com a família, acabando por se tornar frade dominicano. Conheceu ainda o
Abbé Pierre, fundador dos Companheiros de Emaús, com quem trabalhou, como
empregado de bar, no Claustro, um bar
aberto para os sem-abrigo.
Em 1985, decidiu fundar a associação Companheiros da Noite que,
sete anos depois, inaugurou na rua Gay-Lussac, no
coração do Quartier Latin, de Paris, o bar La
Moquette. O espaço, aberto até às cinco da manhã, destina-se a quem vive na
rua e não tem sítios para conversar ou beber um café quente. Ali ninguém pode
dormir, mas apenas sentir que pode estar. Conversando, fazendo silêncio,
jogando às cartas, festejando aniversários, encontrando amigos e conhecidos ou,
até, participando em debates regulares ou oficinas de escrita.
Um café numa chávena de louça e com colher de metal
No La Moquette, o
café é sempre oferecido numa chávena com um pires e a respectiva colher de
metal. “Os sem-abrigo diziam muitas vezes que o que tocavam ia sempre para o
lixo”, explicava Pedro Meca.
Em cada Natal, recorda o serviço de imprensa das Obras
Missionárias Pontifícias (OMP) de Espanha, Pedro Meca celebrava eucaristia numa
tenda instalada no centro de Paris, e na qual participavam mais de mil pessoas
sem casa. O La Moquette passou também
a assegurar que as pessoas que morriam na rua, e cujo corpo não era reclamado
por ninguém, tivessem um funeral digno. Muitos companheiros de rua do falecido
participam nessas celebrações, proporcionando uma despedida digna ao falecido.
Usando muitas vezes lenço branco ao pescoço, cabelos
grisalhos e compridos, Pedro Meca dizia que “a dignidade, para muita gente, passa hoje
mais pelo aparentar do que pelo ser – no vestir, no trabalho”. Por isso prefere
inverter esses modos de ver. “Ninguém consegue ser solidário com alguém se não
sujar as mãos com ele. Foi por isso que optei pela rua, o único lugar que
Cristo nunca abandonou.”
No obituário publicado pelo Le Monde, recordam-se outras afirmações dele: “Continuo a dizer que a
fé cristã é revolucionária. (...) O eixo da minha vida é a relação social com
os pobres, os rejeitados. O Papa Francisco disse que quer uma Igreja que esteja
na rua. É o que tento viver... No céu, ninguém nos perguntará pelo número de
orações que recitámos, nem quantas velas acendemos. Seremos julgados pelas
nossas relações com os outros. A questão será: ‘Que fizeste tu pelo teu
irmão?’”
“Estou aqui, sem
recursos e sem poder”
Em 2005, Pedro Meca
deixou o seu trabalho social, mas continuava a aparecer, de vez em quando, no La Moquette. “Ainda que não possa fazer
nada, estou aqui. Sem recursos nem poder. A minha fé diz-me que Deus ama a
todos. Se Ele ama a todos, é porque Ele o vê como algo formoso e adorável.
Assim, trato de ver o que é formoso naquele que está diante de mim, destruído
pelo álcool, as drogas, os revezes da vida. E isso pode levar muito tempo”,
contava, em 2009, ao La Croix.
Em 2012, numa
passagem por Madrid, insistia, citado pela OMP-Espanha: “Os sem-abrigo podem
ensinar muitas coisas. Das pessoas pobres, normalmente só se vêem as
necessidades e como preenchê-las: não têm casa, não têm que comer nem que
vestir. A minha relação não é essa, é encontrar-me com alguém com as suas
potencialidades, o seu saber, a sua cultura, os seus gostos, as suas paixões, o
que lhe interessa. Há que atender à totalidade da pessoa, tendo em conta que
todos temos potencialidades e riquezas e que todos podemos contribuir com algo.
Eles podem e têm algo com que contribuir.”
Pedro Meca considerava que as mudanças não virão tanto pela
conquista do poder, mas pela alteração de mentalidades. A exclusão, por
exemplo, está na nossa cabeça, dizia. E é preciso esconjurar as etiquetas com
que estigmatizamos tanta gente...
“Alguém que não trabalhe, não tem identidade, não conta.” A
economia tomou um lugar errado, acrescentava. “Um especulador não trabalha, não
produz”, afirmava, mas “é muito considerado” socialmente.
Reproduzo a seguir alguns excertos da entrevista já citada,
publicada em Deus Vem a Público.
P. - Um rapaz que foi
abandonado pela mãe, órfão de pai pouco depois; um basco, que viveu
clandestinamente, que foi antifranquista e empregado de bar, que trabalha para
os sem-abrigo e que também é padre. Que relação tem tudo isto?
PEDRO MECA – Para mim o importante é que a vida de cada um
está construída ao redor de um eixo central. Eu tive a sorte de descobrir a
humanidade numa dimensão que vai mais além do que, aparentemente, é o homem.
Quer dizer, para mim a humanidade é a humanidade de Cristo – eu sou crente.
Tudo o que vivi, tudo o que pude integrar e integro na minha
vida tem um sentido de unidade ao redor de uma humanidade cujas aspirações vão
mais além do que cada um pode sonhar. É da ordem do crer. E não está em
contradição com o racionalizar, com o lutar para que o mais-além se possa
alcançar aqui o mais possível.
Na medida em que alguém luta pela fraternidade, contra um
regime de opressão, ou luta por libertar o homem do que o oprime, cada homem
que se liberta e, diria mais, cada acto libertador do homem – nesses actos,
Deus revela-se. Toda a minha vida, se tem um sentido, é descobrir que vale a
pena viver a humanidade. Sou um trabalhador social feliz, mas descontente: as
coisas não estão como eu gostaria, mas não é porque as coisas estão mal que eu
não creio que podem estar melhor. O grande problema de hoje – e, para mim, a
tarefa de cada dia – é aprender a distribuir o que somos capazes de fabricar.
E isso aprende-se
na rua? A rua é um mundo diferente?
Na rua encontra-se muita gente que, antes, não estava na
rua. Ninguém nasceu na rua sozinho, ninguém está sozinho na rua. Há abandonos e
gente que cresceu e até tem formação. Creio que isso se aprende em todos os
sítios. A rua também permite, desde muito jovem, encontrar situações fortes de
violência e de ternura.
A noite é o seu
grande tema, incluindo ao nível teológico. Mas a noite foi quase sempre o
símbolo das trevas, do lado pior da vida...
Do melhor também...
Como?
O importante não é opor o dia à noite, mas integrar os dois.
Primeiro houve a noite e depois a manhã. No mundo judeu e na liturgia católica,
o dia começa na véspera. Não é a noite que acaba o dia, isso é na nossa época
industrial.
Em todas as metodologias religiosas – incluindo na bíblica –
a noite é primordial. Os momentos mais importantes da revelação bíblica são
nocturnos: na criação, o separar a luz das trevas. A noite de Jacob, a luta com
o anjo, é de noite. A libertação do Egipto é nocturna. O povo espera o messias
como o vigia vê o horizonte ou como Henrique o Navegador olhava as marés, em
São Vicente. O Natal é de noite. A ressurreição é nocturna.
A noite é, ao mesmo tempo, o momento em que estamos mais
próximo do absoluto. Os místicos sempre falaram da noite. É um momento de
crise, no sentido de decisão (crise, em grego, quer dizer decisão; nós quando
dizemos que estamos em crise é para dizer que estamos indecisos). Nos grandes
momentos, os místicos decidem de noite, porque nessa ocasião estamos próximos
de tudo ou de nada.
Incluindo na rua?
Em todo o sítio. O homem da rua não deixa de ser um homem.
Na rua, não há tempo para a noite, para o descanso. Porque há que estar
vigiando: não se dormem oito horas, dormem-se duas ou três, mais tarde outras
duas. Quem está na rua, de noite, não tem tempo para a intimidade do nocturno.
Esse é o momento privilegiado do encontro com o absoluto e
consigo mesmo. Nesse sentido, a noite é primordial. Mais que o dia, em que o
nosso papel social nos distrai, com frequência, do que somos no mais íntimo.
“Não se pode fazer teologia sentado”
Qual é o
contributo de um trabalho como este para a teologia católica ou para os
cristãos?
Na medida em que, na noite, se encontra gente com
dificuldade, gente na rua, gente pobre de relações – que está só –, na medida
em que encontramos os preferidos de Deus, a teologia tem de ser feita a partir
daí.
A teologia mais elaborada e na qual não conseguimos entrar
são os evangelhos. E estes nasceram de uma comunidade de excluídos. As
primeiras comunidades cristãs foram, primeiro, excluídas da sinagoga. Eram
judeus excluídos da sinagoga e, depois, foram cidadãos excluídos do império.
Não eram judeus e tão pouco eram romanos. Pergunto-me se não é uma tarefa nossa
apoiar a teologia numa vivência da fé. Não se pode fazer teologia sentado.
Mas há hoje muitos
preconceitos sobre estas pessoas.
Sim, porque vê-se sempre o sem-abrigo como alguém que não é
apenas isso, mas que engloba uma série de coisas. Era o mesmo que dizer que
alguém que tem gripe também tem cancro, sida. Não, tem gripe. Vai morrer? Eu
também vou morrer, mesmo com saúde.
O sem-abrigo está na rua. E isso desqualifica tudo aos
nossos olhos. As circunstâncias da vida – perdeu o trabalho, entregou-se à
bebida, o marido ou a mulher foram embora – fazem com que não seja capaz de
seguir em frente e pode desfazê-lo. Mas isso não tem a ver com o ter ou não
abrigo.
Onde está, então,
o mais importante?
O fundamental para quem não tem abrigo não é poder dormir
coberto, mas o ter um local onde se possa viver a intimidade. Num albergue
nocturno, não passo a minha noite. Durmo, mas não é a minha noite. Não há a
confiança que se tem no próprio quarto, onde se pode estar nu, só, onde se pode
ressonar ou fazer barulho para os vizinhos de cima ou de baixo. Ou, sequer,
fazer alguém participar da minha intimidade. Não se pode ter uma relação
amorosa ou uma relação sexual estando na rua.
Estar na rua é um aspecto que agrava outras coisas. Uma
pessoa com abrigo não quer dizer que seja maravilhosa, solidária, amiga, que
tem companhia.
A exclusão não é tanto a realidade, a exclusão está na nossa
cabeça. E conforme catalogamos, fechamos e estigmatizamos situações, fazemos
pagar as consequências da exclusão que temos cá dentro. Excluímos da nossa
cabeça ao pôr etiquetas e ao fechar as pessoas com etiquetas. E fazemo-las
viver as consequências.
Há muitas
iniciativas de apoio às pessoas da rua, mas elas estão marginalizadas do
sistema económico e político. Como se pode fazer chegar à economia e à política
a criatividade dessas organizações e iniciativas?
A economia não pode fazer caso disso. Se estamos assim, é
por causa da economia. Ou talvez não tanto da economia, mas do lugar que se deu
à economia nas relações sociais. Na nossa sociedade, alguém que não trabalhe
não tem identidade, não conta. Porquê? Há muitos que não trabalham e que
contam. Porquê? Um especulador não trabalha, não produz. Que produz? Nada,
nada, só vento. Todavia, é muito considerado.
A economia tem que ser posta ao serviço do homem e não o
contrário. Um plano social de uma empresa quer dizer pôr gente na rua. Reestruturar
a empresa quer dizer mandar gente embora, pôr máquinas para produzir mais e
melhor para fazer gente inútil. Isso é a economia de hoje, é a economia de
mercado. Não há lugar senão para o mais forte e fala-se mesmo em termos de
guerra, de guerra económica. Os inimigos são os Estados Unidos, o Japão, e a
Europa tem que ser forte para ser mais forte que os inimigos.
Nós é que colocamos a economia num lugar que não é o dela e
que estropia todas as relações sociais e pessoais. O que conta é ganhar dinheiro,
o meio é pouco importante. Diz-se que o dinheiro da droga é dinheiro sujo, mas
o dinheiro da exploração não é mais limpo.
E como podem as
pessoas lutar?
Com uma tomada de consciência pessoal e actuando em
conjunto, em solidariedade. Em vez de perguntar que posso fazer, perguntar que
podemos fazer eu e tu. E como diz a canção, a dois somos muitos mais que dois.
O bem comum, a propriedade radical é a comum, não é a
privada. Se os cristãos tomassem isto um pouco a sério, que Deus dá a terra à
humanidade e não a uns quantos, valeria a pena.
“Creio que o homem o ganhou. Se não, não acreditaria em Jesus Cristo”
As pessoas activas
neste tipo de associações não estão nos lugares de decisão. Faz falta a
imaginação ao poder?
Não sei se é uma questão de poder. A pergunta mais radical
que me faço é: “Que palavra pode substituir a palavra revolução?” A revolução é
a tomada de poder? De que poder? Para exercer que poder? A partir do poder pode
garantir-se mudanças sociais que procurem a felicidade? Cada vez que se quis
organizar a felicidade das pessoas tudo terminou em campos de concentração... E
onde se decide? O que quer dizer poder? Poder, para mim, é serviço. Não há
revolução que nos dê a solução.
Acredito muito na inteligência colectiva, nas experiências
que as pessoas vão vivendo, aprendendo e fazendo para o bem comum. Hoje, com os
meios de comunicação, podemos estar muito mais atentos para aproveitarmos a
experiência dos outros. Mas muitas vezes só interessam as notícias que se
vendem, que se escolhem como notícia, mas a realidade fica ao lado.
O caminho da
história diz que é inevitável uma sociedade mais justa?
É mais justo o que temos hoje ou a civilização grega? Creio
que hoje é mais justo, porque vamos descobrindo a dignidade pessoal de todos. A
mensagem de Cristo dizia que já não há judeu nem grego, nem homem nem mulher,
mas depois ficou cada um no seu sítio. A Revolução Francesa afirmou que cada
pessoa é cidadão, que toda a gente tem os mesmos direitos. E isso é um
progresso importantíssimo na história da humanidade, que a Igreja Católica não
soube fazer.
A terra é para toda a gente. Temos o princípio. Há um passo
a dar, importante, mas esse passo virá pouco a pouco. Eu sou optimista. Creio
que ganhámos. É como um jogo de futebol: ganhámo-lo, mas temos a sensação de
viver um prolongamento muito longo. Creio que o homem o ganhou. Se não, não
acreditaria em Jesus Cristo.
Postado por Antonio Araujo
Fonte:Religionline.fr.
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