Por Paulo Delgado*
Uma época copiadora, que se distancia cada vez mais das fontes das épocas criadoras e das gerações e ideias que não são mais levadas em conta
O cinismo dos costumes tira dos vícios a energia e está criando outro mundo. Muito do que anda por aí mostra uma debilidade do nosso tempo. Comodismos vocabulares procuram ajustar o confuso cenário de guerra, juros, desigualdades, tirania a uma compreensão automática das situações de conflito, medo e injustiça ao topo compreensível do lugar-comum. Situação de língua em retrocesso que não toma mais consciência de si mesma e que usa a palavra como gíria. A linguagem alfabética nada mais sabe dos poderes que um dia teve. Alfabeto, esse velho beato, torturado pelo flagelo que é a inteligência artificial, perdeu a luta diante da prontidão de um mundo vazio, massificado, manipulado. Palavra e efeito sumiram da linguagem sem espaço para a compreensão dos signos do vocabulário, invertebrada, no exílio do espírito. Palavra sem paladar é floresta desfolhada, faísca de fósforo molhado. Vida encadernada não é modificada.
Artigos testemunhais como este são melhor compreendidos como sentimento e não pura explicação. Joe Biden, o pobre Biden, não conseguiu superar o acaso e se fez imoral. Nocauteador grogue confundiu nomes e logo é atacado mortalmente de Londres a Nova York como o velho de andador que perdeu o controle das pernas, a ser descartado. Indigna falta de memória por dois países liderados por um destemido bom de copo e um majestoso paraplégico que derrotaram um ditador vegetariano e genocida. Bizarro e simétrico, o preconceito contra o idoso passa por cima de qualquer política de diversidade e direitos humanos se defendido por premiadas famílias de cônjuges badalados de seu partido. Enquadre-se Biden, ou não encontraremos mais o caminho diante do monstro que criamos com nosso egoísmo. E Biden, humilhado, escreveu seu próprio necrológio.
Aversões apaixonadas, situações bárbaras revelam infortúnios. A hipocrisia sepulta qualquer opinião livre de quem não se guia por dogmas geopolíticos da moda. Pesquisas e estatísticas pretensiosas querem enquadrar o pensamento, bancadas por financiadores do status quo, podres de ricos, provocam rombos e estouros jogando valores fora. Um mundo ao pé da letra de economia predadora, motor das ambições tecnológicas. Não é bem um mundo de grandes. Sem vontade própria é o destino que enquadra a política como caminho do fracasso sem culpa. A escalada é de sucatas.
Um submarino russo visita o Caribe e logo é seguido por um norte-americano. Não quer dizer nada, mas é melhor não correr o risco de deixar de acreditar que pode ser alguma coisa. O mau gênio espreita a democracia. No continente americano, onde cada líder justifica com louvor sua participação e responsabilidade nesse caos, alguém que se acha maduro, de instinto carnívoro, decidiu comer a carne dos irmãos. Ditador é um tipo da elite dos políticos medíocres que, com o dom de fraudar eleição, perseguir bispo e falar tolice, é mais regra do que exceção hoje. Diante do risco de desmoralização total da democracia adiantam pouco táticas diplomáticas cerimoniais de morder/soprar, xerife bom/xerife mau. São obscuras as consequências de qualquer eleição diante de ogro eleitoral que se alimenta do eleitor virtual. Onde fatos e não a tradição, trabalho ou convicção definem a riqueza do sistema de poder, respeitar as leis é algo próximo da piedade. Filhas do tempo e da cultura, não se improvisa nem nobreza nem hierarquia.
Não é mais possível criar incapazes de qualidade melhor. O progresso se corrompeu para si mesmo. Como o incompetente tem tido muito sucesso no mundo atual e, também, como nada vem do céu sem um propósito, é bom ficar atento à aspereza que existe no ar. Há uma doença na alma do mundo. Um mundo de trilha sonora do Abba onde o vencedor fica com tudo, o perdedor fica pequeno. Vivemos um presente que não contém a ideia de transição. Estática, crua ou cozida, a realidade se move por fatos criados por seus beneficiários, não por ideias ou convicções.
Como a convivência humana só visa ao interesse imediato, a luta pelo dinheiro está no centro da vida. Em tal situação a inventividade é substituída pela avassaladora força do negócio. A injustiça atravessa ilesa diante da justiça, que precisa se abrigar nos aviões da defesa para se locomover. A geração que deu sentido à democracia desapareceu sem se tornar uma elite espiritual. Em todos os lugares somos obrigados a sofrer banalidades.
A agudeza e a severidade com que se formula uma ideia produz no ar, irresistivelmente, o desejo de se contrapor a ela. Tese e antítese sem síntese possível é a lógica do pugilista, não afeta o horizonte do futuro. A instrução não é mais instrução, a tecnologia é mística desprovida de vida, volúpia, costume sem probidade, método, disciplina, escrupulosidade. Uma época copiadora, falsificadora que se distancia cada vez mais das fontes das épocas criadoras e das gerações e ideias que não são mais levadas em conta. E que ninguém está nem mais disposto a invejar. A única vantagem em tudo isso é que não é mais necessário pensar tolice. Os vícios doentios de políticos e internautas fazem isso muito melhor por nós.
*O sociólogo Paulo Delgado escreve mensalmente na seção Espaço Aberto
Fonte: https://www.estadao.com.br/opiniao/paulo-delgado/a-energia-dos-vicios/
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