sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Silvio Santos personificou o atraso do nosso capitalismo inconcluso

 Por José de Souza Martins*

 — Foto: Carvall

— Foto: Carvall

A morte do empresário e comunicador Silvio Santos tem tido a previsível repercussão que deve ter o desaparecimento de uma pessoa com extraordinária influência na alteração de costumes mercantis. De certo modo, ele foi o criador de uma versão da pós-modernidade brasileira.

Desmercantilizou a mercadoria, separou-a das relações de compra e venda, situou-a no terreno antimercantil da incerteza, da sorte e mesmo do acaso. Sobretudo o de um imaginário de festa.

Despiu-a da fria racionalidade própria do mercado para dotá-la de uma racionalidade tropical e calorosa, numa sociedade em que o dinheiro e a mercadoria, historicamente, são excepcionais, usados como se destituídos de seus atributos próprios, mesmo na vida cotidiana como se cotidianos não fossem. Silvio Santos chegou a isso de maneira meramente intuitiva.

Fez do comprador um cúmplice, em vez de mero freguês, aliciado através de recursos próprios da televisão, em que é reduzido à condição de coadjuvante das relações de compra e venda, espectador e ator de um enredo de teatro e não de mercado.

Seus programas domingueiros tinham muito de um encontro de feira livre, dominado pela performance teatral do camelô, que reveste a mercadoria de características de um imaginário complexo. O que mobiliza o comprador, muito mais do que é próprio do ato da compra e da venda.

Uma obra fascinante de artimanhas para incluir multidões no mercado de consumo. Uma forma peculiar de inclusão social fantasiosa do comprador realmente excluído pelas insuficiências da sua relação com a mercadoria e o dinheiro. Em particular pela protelação e a demora em fazer do pagador o dono do bem comprado. Em vez de pagar as prestações depois da obtenção do que foi comprado, pagá-las antes de tê-las, usá-las ou consumi-las, como se fosse um investimento.

Silvio Santos recalibrou o capitalismo mercantil do varejo, ajustou-o às limitações de um país atrasado, cujo modelo de economia possível é dominado por insuficiências. Ele conseguiu transformar em grande negócio a economia do pequeno negócio.

Há cerca de 50 anos, presenciei quase na esquina da rua Nova Barão com a Barão de Itapetininga, em São Paulo, um encontro casual de Silvio Santos com uma espectadora de seus programas. No meio da multidão, uma mulher de meia-idade exclamou bem alto, falando com ninguém: “Olha o Silvio!”. E foi na direção dele para cumprimentá-lo, como se fosse velho conhecido. Ele reagiu como ator bajulado por admiradora. Nem frio nem empolgado, cortesmente, de maneira a não estimular nela nem a confirmação da proximidade nem a desilusão da distância.

São poucas as sociedades que dispõem de personagens capazes de semelhante proeza. Porque o fenômeno Silvio Santos só é possível em sociedades economicamente atrasadas. Ele personificou e disfarçou o atraso do nosso capitalismo inconcluso.

Ocorre com Silvio Santos a mesma coisa que ocorreu com Francesco Matarazzo, imigrante vindo para o Brasil nos finais do século XIX, que aqui se tornaria um dos nossos maiores empresários industriais. Benito Mussolini comia na sua mão, a quem fizera generosas doações pessoais, sem contar suas contribuições financeiras para o movimento fascista. Foi o que lhe valeu o título de conde.

Nos anos 1930, poucos anos antes de sua morte, já circulava sua biografia pronta e acabada, que remontava à história de sua família aos tempos de Carlos Magno. O mesmo está acontecendo nestes dias com a biografia de Silvio Santos.

Quem morreu não foi o camelô de extraordinário sucesso, mas o descendente de um judeu rico, Abravanel, do fim da Idade Média. O milionário do passado é a esponja que remove da biografia do falecido de agora a mácula de alguém que se fez pelo trabalho duro como comerciante tosco e esperto.

Esse é o lado fascinante da história pessoal de muitos novos ricos no Brasil. Expressão de um capitalismo de desenvolvimento anômalo e lento, muito distante do capitalismo propriamente dito.

Já não é o camelô vulgar das ruas de São Paulo, que comprava quinquilharias baratas para vender um pouco mais caras, obrigado a artimanhas para escapar da polícia pelo comércio ilegal. Na época, morador no porão da Pensão Maria Teresa, da família Fiora, no que é hoje um belo casarão de um sindicato na avenida Duque de Caxias.

O camelô era uma combinação estranha e muito popular de pequeno comerciante, artista de circo e trapaceiro, que mais vendia ilusões do que objetos. Precisava enganar para vender.

Silvio Santos foi ator de uma versão brasileira do que clássicos dos estudos econômicos chamavam, no século XIX, de fetichismo da mercadoria. O dinheiro e a mercadoria despojados do pe ado original da cobiça e da acumulação.

Silvio Santos foi ator de uma versão brasileira do que clássicos dos estudos econômicos chamavam, no século XIX, de fetichismo da mercadoria. O dinheiro e a mercadoria despojados do pecado original da cobiça e da acumulação.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, São Paulo, 2022).

FONTE: https://valor.globo.com/eu-e/coluna/jose-de-souza-martins-silvio-santos-personificou-o-atraso-do-nosso-capitalismo-inconcluso.ghtml

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