Por Manuela Cantuária*
Ilustração de Silvis para coluna de Manuela Cantuária de 19 de agosto de 2024 -Por ser humano, complexo, mortal, pode ser herói e vilão ao mesmo tempo
Cresci em uma família de classe média. Se classe média alta ou baixa, é complicado rotular. Talvez por isso o termo classe "média" se aplique tão bem, como a expressão "mais ou menos". Se aqueles que proviam meu lar preferiam assistir ao SBT, isso pode ser uma dica da classe à qual eu pertencia. O SBT é uma emissora das massas. E a massa nos remete ao que é superficial, antítese do que é sofisticado e complexo.
Silvio Santos foi o maior comunicador deste país —porque sabia falar com a massa. Liderava na frente e atrás das câmeras. Ser amado e ser respeitado são coisas bem diferentes. Uma coisa é ser o vocalista da banda. Outra é ser o dono da gravadora. Brilhar é diferente de governar. E ele conseguia fazer as duas coisas ao mesmo tempo.
Minha infância ficou no passado: morreu. Mas posso revivê-la por memórias. Silvio Santos, bem ou mal, está lá. Outra etapa da minha vida, que também ficou no passado, é o período em que cursava comunicação. Foi quando um professor exibiu o documentário "Muito Além do Cidadão Kane", que denunciava a aliança da Rede Globo com o governo militar, na época da ditadura.
No power trio das maiores potências televisivas brasileiras, temos a Rede Globo, o SBT e a Record. Sendo a Record atualmente gerida por um pastor evangélico, o SBT, bem ou mal, se situa em uma zona cinza quando o recorte é poder. Seu fundador, Silvio Santos, era camelô. Aqui estamos estamos diante de uma narrativa de ascensão de classe. Nessa narrativa, Silvio é um herói.
No entanto, recentemente, acompanhamos a batalha judicial de Silvio Santos com o dramaturgo Zé Celso pelo controle de um terreno no entorno da sede do Teatro Oficina. De um lado, o Grupo Silvio Santos queria transformar o espaço em uma iniciativa privada. Do outro, Zé Celso defendia transformá-lo em um espaço plural e democrático. Nessa narrativa, Silvio é o vilão.
Em meio às tantas homenagens ao mito, me deparei com momentos sombrios de sua brilhante trajetória. Humilhando uma criança negra por ter o cabelo crespo. Assediando convidadas e assistentes de palco —todas elas mulheres (como eu), e algumas delas, meninas (como fui).
Silvio Santos morreu. E, por ser humano, complexo, mortal, pode ser herói e vilão ao mesmo tempo.
* Roteirista e escritora, é criadora da série 'As Seguidoras' e trabalha com desenvolvimento de projetos audiovisuais
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/manuela-cantuaria/2024/08/quando-morre-um-mito.shtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newscolunista
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