Artigo de Raúl Zibechi*
16 Agosto 2024
“Penso que é hora de pôr de lado as ilusões de que existem diferenças substanciais entre democracias e ditaduras (elas existem, mas são cada vez menores) e, acima de tudo, de não nos deixarmos enganar pelas políticas do ‘mal menor’ e de acreditar que as eleições são decisivas na vida dos que estão abaixo”.
Eis o artigo.
Ava M. foi multada em 600 euros por entoar um slogan pró-Palestina num comício na cidade alemã de Berlim. Esta é a primeira sentença contra uma manifestante que usou um slogan pró-Palestina (“Do rio ao mar, a Palestina será livre”) durante um protesto contra Israel. O tribunal alegou que Ava endossava os crimes do Hamas, sem levar em conta a suposta liberdade de expressão ou mesmo o genocídio que denunciava.
A ministra dos Esportes francesa, Amélie Oudéa-Castéra, anunciou em setembro de 2023 a proibição de atletas franceses competirem com seu hijab nas Olimpíadas de Paris. A regra aplicava-se apenas às atletas francesas, apesar da posição das Nações Unidas e da Human Rights Watch que rejeitam esta proibição.
Um relatório recente da Anistia Internacional intitulado Não podemos mais respirar. Mesmo esportes, não podemos mais fazer, denuncia as violações dos direitos humanos das mulheres e jovens muçulmanas devido à proibição do hijab nos esportes na França.
Um artigo de Ángeles Ramírez publicado no Ctxt salienta:
“Os últimos 20 anos estão sendo muito difíceis para as muçulmanas – e também para os muçulmanos – nessa França das liberdades. Na linha cronológica da islamofobia no país, o primeiro marco é o ano de 2004, data da promulgação da ‘lei do lenço’, que proíbe sinais religiosos nas escolas públicas, mas que é dirigida contra o hijab; em 2010, foi proibido o uso do niqab em espaços públicos e, em 2016, o traje de banho de corpo inteiro – chamado burkini – em algumas praias da França, proibição que acabou sendo estendida às piscinas”. (1)
Estamos falando de racismo e de restrição severa das liberdades em dois países (Alemanha e França) que se dizem democracias avançadas, que respeitam os direitos humanos e se permitem dizer quem não o faz. É muito curioso ver que enquanto se rejeita o “uso de símbolos religiosos” das muçulmanas, temos visto atletas que fazem o sinal da cruz antes ou depois das competições, ou usam correntes com a cruz católica, sem que ninguém interfira nesse costume.
Certamente, estamos diante de casos flagrantes de racismo e perseguição ao Islã, talvez porque certas práticas realizadas por “outros” continuam a ser consideradas perigosas para a segurança do Estado.
“Usa-se o medo do Islã para eliminar a dissidência política e reforçar a segurança e o controle. Por exemplo, esta lei, que serviu para colocar na ilegalidade o Coletivo Contra a Islamofobia, também serviu para pressionar o movimento ecossocial Les Soulevements de la Terre (2) até que fosse jogado na ilegalidade, processo que o Conselho de Estado interrompeu”, escreve Ramírez.
Quando surgem situações como estas, comuns em todos os países da Europa que afetam movimentos na Grécia, Itália (Não ao Trem de Alta Velocidade ou TAV) e no Estado espanhol, além dos países já mencionados, costuma-se mencionar a “crise da democracia”. Penso que não é o caso. As democracias já não existem, pelo menos para as e os que estão na base, como demonstram os casos de protesto contra o genocídio palestino e a perseguição às muçulmanas que já não podem entrar em muitas piscinas sem as roupas “apropriadas”.
Como Emmanuel Todd analisa em profundidade em A derrota do Ocidente, as democracias estão implodindo devido à ascensão de uma “oligarquia liberal” que domina nações e Estados, que no seu niilismo destruiu “a própria noção de verdade” e “qualquer descrição razoável do mundo” (p. 24).
Esta nova/velha cultura oligárquica está associada à guerra que o Ocidente (apenas 15% da população mundial) declarou contra as maiorias do planeta, em geral os povos indígenas, negros, camponeses e pessoas da cor da terra. A opção pela guerra está, além disso, intrinsecamente ligada ao racismo e ao neocolonialismo, moeda corrente das oligarquias ocidentais que desta forma esperam manter os seus privilégios, mesmo à custa da destruição da humanidade e do planeta.
As “democracias” ocidentais cerram fileiras, evitando a dissidência nas suas sociedades porque precisam da homogeneidade para travar a guerra. Consideram-se democráticas não porque acreditem nas liberdades, mas porque é a melhor forma de controlar as pessoas diferentes, especialmente as e os migrantes que são bem-vindos para fazer os piores trabalhos, mas a quem se nega os direitos. Sem estes contingentes, o Norte Global não seria capaz de colocar em marcha a sua maquinaria econômica, que funciona para a guerra, como é cada vez mais evidente.
Penso que é hora de pôr de lado as ilusões de que existem diferenças substanciais entre democracias e ditaduras (elas existem, mas são cada vez menos) e, acima de tudo, de não nos deixarmos enganar pelas políticas do “mal menor” e de acreditar que as eleições são decisivas na vida dos que estão abaixo.
Notas
1 Hijab é o véu que cobre a cabeça. Niqab é um véu que cobre o rosto.
2 “Revoltas da Terra” é um movimento ambiental radical francês que se opõe à apropriação de terras e a projetos de “desenvolvimento”, tais como as megabacias, as autoestradas ou as linhas de alta velocidade, através de manifestações e sabotagem. É composto por uma centena de associações ou grupos e conta com a adesão de cerca de cem mil pessoas, dependendo do movimento.
* A reflexão é de Raúl Zibechi, em artigo publicado por Desinformémonos, 12-08-2024. A tradução é do Cepat.
Fonte: https://www.ihu.unisinos.br/642464-as-democracias-guerreiras-artigo-de-raul-zibechi
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